Já tinham passado mais de duas semanas desde o infeliz telefonema para o Alex e ia jantar nessa noite com o Ricardo.
Ele tinha aparecido de surpresa em minha casa na segunda-feira. Convidou-me para jantarmos juntos no sábado, era a última coisa que me pedia na vida e depois ia deixar-me em paz para sempre.
Era um pedido irrecusável, mas na altura pensei que os cinco dias demorassem mais tempo a passar... Tinha-me transformado numa procrastinadora crónica de que não me orgulhava.
Voltei do passeio matinal com a Gwen e encontrei o Vasco no jardim, acabadinho de acordar e ainda de boxers, a fazer-me sinais para entrar na garagem discretamente.
A nossa garagem era um caos desde que me recordo de existir, onde o meu pai acumulava tralha inútil e para onde a minha mãe enviava os restos das remodelações que fazia. Como era um espaço demasiado confuso para a sua sensibilidade estética, ela nunca lá entrava, pedia sempre ao meu pai ou ao Vasco para levarem os objetos descartados.
Assim que nos apercebemos de que a garagem era o único espaço que a nossa mãe não «organizava», eu e o Vasco fizemos dela o nosso quartel-general. Servia para nos reunirmos em segredo, planear malfeitorias e esconder artigos variados, começando nos cocós do Fizz, que metemos nos sapatos da empregada, até maços de Marlboro e garrafas de bebidas alcoólicas «subtraídas» de um «restaurante próximo».
Ele entreabriu a porta basculante, baixei-me para entrar e senti-me reconfortada pelas paredes familiares, cobertas de prateleiras cheias de caixas. O cheiro estava diferente do que eu me recordava, cheirava a coco, do wax que o Vasco usava nas pranchas de surf. Havia pranchas por todo o lado, algumas em bom estado, outras partidas, e uma deitada em cima de dois cavaletes, provavelmente a ser reparada.
Achei aquilo um exagero e encarnei a irmã mais velha.
− Precisas destas pranchas todas para quê, Vasco?
Respondeu-me enquanto mudava algumas de sítio para nos arranjar espaço livre ao pé do cavalete.
− Não são todas minhas, há pessoal que mas deixa aqui para ver se eu as consigo arranjar. Outras comprei porque estavam a bom preço e vou voltar a vender a seguir...
Abriu caminho entre as pranchas, desencantou duas cadeiras que já tinham sido da nossa cozinha e sentou-se numa delas.
Assim que também me sentei ao seu lado, encarou-me com uma expressão séria.
− O Ricardo ligou-me há uns dias para irmos beber um copo.
A garagem tornou-se menos acolhedora...
− E tu foste?
− Claro, o Ricardo é bom tipo, não me ia recusar a ir beber um copo com ele.
Senti o meu coração acelerar e perguntei-lhe de que tinham falado.
− Ele queria saber o que se tinha passado «ao certo» contigo em Moçambique. Como é que levaste um tiro e quem te pôs a cara naquele estado. Não te queria perguntar a ti porque percebeu que não gostavas que ele tocasse no assunto e podias estar traumatizada, mas dava tudo para saber quem te tinha batido para «dar cabo dele».
Gemi e abanei a cabeça.
− Não lhe contaste nada, pois não?
O Vasco olhou para mim com o rosto franzido num esgar de desilusão.
− Achas que o teu brother alguma vez se chibava? Fosse do que fosse?
Sorri aliviada, o Ricardo tinha batido à porta errada. Os manos Mendonça orgulhavam-se de uma taxa de indiscrição próxima de zero, mesmo sob as difíceis condições de tortura psicológica e chantagem emocional da menina Madalena, que para nós parecia ter feito formação em Guantánamo.
− Fica descansada que não lhe disse nada sobre o teu polícia troglodita. Contei-lhe que tu e uma aluna foram raptadas quando descobriram uma rede de tráfico humano, a polícia apareceu, levaste um tiro dos maus quando foste a salvar miúda, blá blá blá.
Acenei a aprovar a sua versão resumida e ia-me levantar, aliviada por aquela conversa enervante ter terminado. O Vasco pousou a mão na minha perna e encarou-me com uma expressão séria, como ele raramente fazia.
− A questão é que ele está decidido a ter a «sua Sofi» de volta e... − Levantou a mão da minha perna e apontou para a minha barriga. − Vais-lhe contar quando fores jantar com ele hoje?
Respondi com toda a firmeza que consegui.
− Claro.
O Vasco aconselhou-me com um semblante preocupado.
− Algum dia tem de ser, Sofi. Quanto mais cedo melhor, para ele não continuar a alimentar esta ideia de que vocês vão voltar a ser um casal.
Concordei em silêncio, com os lábios contraídos. Ele fez um pequeno sorriso e levantou-se num movimento repentino.
− Tenho uma coisa para ti.
Voltou a embrenhar-se no meio da tralha, tirou um saco de desporto antigo detrás de uns azulejos e regressou com uma lata pequena, como as de spray desodorizante mas ainda menor.
Pousou-a no meu colo com uma expressão de pequeno transgressor, que tinha muito mais a ver com o meu irmão do que a conversa ajuizada.
− Gás lacrimogénio.
Sobressaltei-me enquanto segurava o pequeno objeto aparentemente inocente.
− Estás doido, Vasco?! Isto é para quê?!
Ele fez-me uma careta, típica de quando achava que sabia mais do que eu sobre algum assunto importante, o que era raríssimo acontecer.
− A mãe está preocupada contigo. Aquela cena de o Ricardo te obrigar a assinar um acordo de divórcio que afinal não era a valer... Não lembra a ninguém!
Revirei os olhos, desagradada com o rumo cada vez mais lamentável da nossa conversa.
− Ele não me obrigou a assinar nada. Ele não queria que eu assinasse e nunca imaginou que eu o fizesse. O Ricardo só queria que eu voltasse para casa e não fosse para Moçambique. Eu é que me passei completamente e assinei os papéis sem pensar...
O meu irmão cruzou os braços e falou-me como se fosse ele o mais velho.
− Pois, não me interessa como é que foi, mas agora ele está mortinho para te ter de volta. Quando souber que regressaste de Moçambique com um brinde que não é dele, pode ser o Ricardo a passar-se...
Assim que acabou de falar, tirou-me a minilata e exemplificou.
− É muito fácil, não tens de abrir tampa nenhuma. É só apontares-lhe para a cara, fechares os teus olhos e carregares aqui. Não tem nada que saber e não o vais matar. Isto depois passa e ele fica a ver normalmente.
Tirei-lhe a lata da mão, não parecia nova nem estar completamente cheia.
− Vasco, o gás lacrimogénio é ilegal. Como é que tu arranjaste isto?
Ele esquivou-se na direção do cavalete antes de me responder.
− Tem cuidado com isso, Sofi! Não a apontes para mim! Foi um amigo meu que é segurança numa discoteca que me deu. Ele tem várias que confiscou e não deitou fora. Pedi-lhe uma para ter no carro, mas depois nunca usei.
Falei pausadamente para ter a certeza que ele compreendia.
− Tu e a mãe estão a delirar. Eu conheço o Ricardo muito, muito bem. Ele nunca, jamais, me faria mal.
O Vasco fez um ar de entendido.
− Conheces o Ricardo muito bem, mas nunca lhe disseste que estavas grávida de outro, pois não? Aposto que também nunca pensaste que lhe ias atirar um copo com canetas à tromba, mas atiraste, não foi? E ainda por cima não lhe acertaste... – Fez um esgar de reprovação e continuou no mesmo tom de superioridade. − Tantos anos a jogares basquete não sei para quê!
Franzi o sobrolho e examinei a pequena lata. Era do tamanho de um marcador preto, com palavras prateadas em alemão e outras vermelhas em inglês: Pepper Fog. A tampa era aberta em cima e na face oposta à do pulverizador. Em caso de emergência, não se corria o risco de apontar o spray na direção errada.
Apesar de ter a certeza absoluta de que não a iria usar com o Ricardo, aceitei ficar com ela e guardei-a na minha mochila. Achei útil possuir um artigo assim, provavelmente devido ao meu passado recente de rapto e agressões.
O Vasco aprovou a minha decisão.
− Fica sempre com isso à mão, se vires que há risco de ele se passar, dás-lhe uma borrifadela, de preferência a mais de um metro. Não te preocupes, se ele fizer queixa à polícia eu digo que isso era meu e que tu nem sabias que era ilegal. Estás grávida e ninguém te vai chatear por te defenderes...
Olhei para o meu irmão e lembrei-me do quanto gostava dele. Adorei que ele se preocupasse comigo e abracei-o, metade do gesto era sincero e a outra metade era para o provocar. Era instintivo e irresistível.
− Obrigada, Vaquinho querido.
Ele desenvencilhou-se rapidamente de mim, metade irritado e metade a brincar.
− Odeio que me chames isso!
O Ricardo apareceu às oito em ponto. Chegou na sua versão informal e a irradiar charme, de calças de ganga e uma camisa de manga curta, que deixava à mostra os músculos bem definidos e os pelos louros dos antebraços...
Cumprimentou a minha mãe com um grande sorriso que ela não retribuiu e elogiou-me a toilette, enquanto me apreciava com aquelas lanternas verdes que já me tinham guiado por caminhos muito felizes.
Como eu não sabia se iríamos a um restaurante mais elegante e estava muito calor, vesti um top de seda branca com uma saia curta estampada. Era um paradoxo muito irracional, mas nem tentei compreender o facto de me ter esforçado bastante para ficar atraente, quando o meu objetivo era convencê-lo a acabarmos de vez com a nossa relação.
Em teoria, deveria ter-me apresentado horrenda e a cheirar mal; na prática, usei base para disfarçar uma borbulha no queixo, arranjei as sobrancelhas, pus rímel nas pestanas e um batom rosado discreto.
Sugeri um restaurante de praia a dez minutos de carro mas, como imaginei que seria provável, o Ricardo já tinha decidido de outra maneira.
Quando insisti que não fazia sentido ele atravessar a ponte quatro vezes para jantarmos em Lisboa, ele sorriu com o seu olhar de felino matreiro e cheio de truques na manga. Aquele olhar atravessava-me, aquecia-me a alma e o corpo.
− Já tenho uma reserva noutro sítio.
− Onde?
− Um sítio giro. Vais ver que vais gostar.
Claro que eu ia gostar, o Ricardo tinha ótimo gosto, estava sempre a par das novidades e deviam ter aberto vários restaurantes excelentes em Lisboa durante a minha ausência. O problema era que quanto mais longe estivéssemos quando eu lhe contasse que estava grávida de outro homem, maior era o intervalo de tempo em que teria de conviver com a sua reação.
Passámos a ponte e saímos para Alcântara, apanhámos a Avenida de Brasília no sentido de Cascais e comecei a suspeitar do sítio giro a que me iria levar. Quando virou à direita na Avenida da Torre de Belém, tive a certeza.
Abanei a cabeça profundamente descontente, ele ia tornar a minha revelação ainda mais difícil, praticamente a rasar o insuportável.
Falei-lhe ao mesmo tempo que lhe fazia uma expressão suplicante, revisitar tantas memórias ia ser arrasador.
− A sério, Ricardo? Em tua casa não. Peço-te, por favor, vamos a outro sítio qualquer...
Fez-me um olhar reprovador quando eu disse «tua casa», depois inspirou fundo como se me perdoasse e respondeu-me com um sorriso acolhedor.
− Agora já tenho tudo preparado.
Não argumentei mais, mas senti-me terrivelmente apreensiva enquanto ele estacionava a carrinha na rua do meu antigo lar.
Só tinham passado seis meses desde que o tinha abandonado, mas pareceu-me que tinham passado muitos mais quando transpus a porta, que abri e fechei todos os dias durante sete anos da minha vida. Os primeiros, feliz e apaixonada, os seguintes, numa obsessão crescente por uma gravidez. Também contribuiu para a sensação de estranheza o facto de o Ricardo ter feito obras, uma das paredes laterais da sala e a porta da cozinha tinham desaparecido.
A parede onde antes estava o fogão tinha armários brancos lacados e um frigorífico com um estilo retro. O balcão com a janela que dava para o jardim continuava para o centro da cozinha, onde fazia uma península com um fogão novo e uma mesa alta de madeira clara.
O Ricardo tinha um dom, a remodelação estava espetacular. Por cima da mesa pendiam três lâmpadas num candeeiro em metal e a parede ao lado tinha prateleiras novas, uma delas com a nossa jarra cheia de miosótis azuis, as flores do nosso casamento e que simbolizavam amor verdadeiro.
O meu cérebro gritou-me que estava a meter-me numa cilada, mas o meu coração só pensava em como ele era talentoso e das muitas vezes que lhe disse que fazer as refeições todas na sala era pouco prático.
Quando o elogiei, encolheu os ombros a desvalorizar a sua obra.
− Tive de me entreter com alguma coisa enquanto estiveste fora...
A mesa alta em frente ao fogão estava preparada para receber duas pessoas, ele fez uma vénia e puxou a segunda cadeira para eu me sentar.
Senti-me envergonhada comigo própria por o deixar continuar com todo aquele esforço para me reconquistar, mas não disse nada e preparei-me para subir para a cadeira.
Ele continuava a ler-me, porque percebeu que havia algo que me deixava desconfortável.
− Se calhar preferias comer numa cadeira almofadada da sala?
Olhei-o desconcertada e retive o ar nos pulmões, a pensar no segredo que escondia e que era quase impossível ele saber...
Ele continuou a falar num tom preocupado.
− Ainda te dói a perna, Sofi?
Deixei o ar sair, fiz um gesto de negação e engoli em seco enquanto me sentava.
Ele passou para o outro lado, tirou dois copos altos de um armário e uma garrafa de vinho produzida na herdade do avô. Piscou-me o olho e pousou-a em cima do balcão para que eu lesse o rótulo. Colheita de 2009, o ano do nosso casamento.
Serviu o vinho e estendeu-me um copo com um sorriso lindo, que eu conhecia bem e era uma promessa de memórias felizes.
− Ao teu regresso!
O meu cérebro gritou-me que eu não podia beber. O meu coração decidiu que eu podia molhar os lábios para disfarçar e deixar o Ricardo continuar o que tinha planeado. Estava curiosa e cheia de vontade de provar o que estava na panela em cima do fogão... ele era tão mau como eu na cozinha.
Poisei o copo e ele olhou-me com ternura. Eu era fraca, muito fraca, e achei que aquela beberricadela tinha valido os seus olhos contemplarem-me com aquela emoção boa só mais aquela vez.
Ele inclinou a cabeça de lado por alguns momentos, como habitualmente fazia quando me estava a ler os pensamentos, depois esfregou as mãos e bateu duas palmas. Falou como se fosse o proprietário do estabelecimento, o que em termos práticos era a verdade.
− Boa noite, minha menina. Hoje temos especialmente para si um menu de degustação intitulado... – Abriu as mãos para fazer um pouco de suspense antes do anúncio final. − Pratos preferidos da Sofi!
Não consegui evitar um sorriso lisonjeado e perguntar quais deles.
Ele ficou satisfeito com a minha curiosidade, fez um sorriso enigmático e não respondeu.
Pousou uma frigideira em cima do balcão e começou a descascar alhos.
Fiquei a vê-lo atirar alhos e depois coentros para dentro da frigideira, regou tudo com azeite e a seguir tirou um recipiente grande de um armário.
− Cadelinhas!
Enquanto ele cozinhava as cadelinhas, perguntei-lhe por novidades da vizinhança e outros assuntos triviais. Afinal, aquela ideia de jantar tinha sido uma boa opção, era mais fácil falarmos com ele entretido a tapar e a destapar a frigideira, do que se estivéssemos sentados frente a frente num restaurante chique.
Comemos as cadelinhas que ele tinha comprado no mercado de Alvalade e a seguir ligou a placa onde estava a panela. Não aguentei mais, fui para o seu lado e descobri que me ia fazer o arroz de lingueirão do Pardais, uma tasca na Ajuda que para mim fazia o melhor arroz de lingueirão de Lisboa.
− Pediste a receita à dona Lucinda?
− Estás lá perto... Pedi-lhe para me fazer tudo exceto pôr o arroz. Ela não queria, tive de dizer que tinhas voltado ferida de Moçambique e que te ia fazer uma surpresa para te sentires melhor.
Imaginei que a dona Lucinda não devia ter cedido por pena dos meus ferimentos, mas sim devido às suas maneiras gentis e ao seu olhar esverdeado...
− Primeiro, pensei no bitoque sem bife do restaurante do teu pai, mas isso implicava eu ter de estrelar o ovo e podia correr mal!
Sorriu com uma expressão insegura que me enterneceu.
Inspirei o cheiro a mar misturado com o refogado de tomate e talvez me tenha esquecido das minhas intenções originais quando saí de casa.
− Tenho comido muitos bitoques sem bife do restaurante do meu pai nos últimos tempos. Arroz de lingueirão do Pardais foi uma ótima escolha.
Desejei que o jantar durasse para sempre. Deliciei-me ao ouvi-lo falar sobre os seus projetos sustentáveis, rir e brincar como há muito tempo ele não fazia...
Aquele era o homem por quem eu me tinha apaixonado perdidamente, a minha alma gémea, que me tinha dado o seu coração. Aquele era o homem que depois disso tinha estado sempre ao meu lado durante dez anos, sem condições nem reservas, o meu porto seguro, que me acarinhava nos dias bons e nos dias maus...
Falei-lhe na terra avermelhada de Moringane, em como o céu parecia mais perto, nas gentes boas e sorridentes, na Zubaida, nos meus outros alunos e na Hermínia. Contei-lhe muitas coisas mas não tudo, camuflei a parte do Alex porque estava a gostar demasiado da noite e não quis estragar o momento.
O olhar dele enquanto me ouvia encorajava-me a descrever-lhe as pessoas maravilhosas que conheci, a sua simplicidade, a sua alegria, a sua pureza e o seu talento para dançar e cantar.
Fiz-lhe um retrato detalhado da minha querida Zubaida, descrevi-lhe a primeira vitória da equipa mista de futebol que a incentivei a criar e a minha emoção quando ela marcou o golo da vitória. Contei-lhe como era boa a comida da Joaquina e como a minha amiga Hermínia achou que eu era louca, quando lhe perguntei pelas condições em que viviam os frangos que a Joaquina servia no restaurante.
O Ricardo ficou encantado com as minhas peripécias, fazia-me perguntas e repetiu várias vezes que adorava ter lá estado comigo.
− Era a última coisa que queria que fizesses, mas tu, Sofi, quando metes uma coisa na cabeça... É impossível demover-te!
Mexeu-me nos cabelos, fez um sorriso que não foi muito completo e suspeitei que talvez se tivesse lembrado de que lhe confessei ter estado com outra pessoa, quando me ligou pela primeira vez.
− E o tiro na perna, como é que isso aconteceu? Liguei para a escola e disseram-me que foste alvejada a salvar uma data de mulheres apanhadas por traficantes de pessoas, mas não me explicaram como é que tinha acontecido...
Encolhi-me instintivamente. Aquele era um assunto muito mais difícil de abordar sem mencionar o Alex...
Ainda não me sentia preparada para confissões, estava a desfrutar do meu chocolate child labour free preferido e a fazer festas na minha gata Stefani, que entretanto tinha aparecido e saltado para o meu colo. Decidi ser vaga e usar a versão resumida do meu irmão.
Quando acabei, ele não me perguntou mais pormenores, encarou-me com uma expressão triste durante alguns segundos e repreendeu-me brandamente.
− Podias ter morrido, Sofi. – Levou a cruz de prata aos lábios com os olhos fechados e depois benzeu-se, um gesto que eu já o tinha visto fazer muitas vezes, mas me emocionava sempre. – Que Deus me livre e guarde!
Primeiro, sorri-lhe, irracionalmente satisfeita por continuar a ser preciosa para si. Depois, pela primeira vez desde que tinha descoberto que estava grávida, senti desejo e algo mais que não me atrevi a nomear. Um sentimento avassalador que me fez estremecer e recear pelo meu futuro.
O Ricardo retribui-me o sorriso, com os olhos brilhantes e carregados de emoções boas que eu conhecia bem, algumas delas castas e outras nem por isso. Eu sabia ver a diferença, conhecia aquele felino de cor e a volatilidade das suas «disposições».
Tirou-me a gata do colo enquanto a recriminava por nunca lhe fazer companhia e encarou-me confiante.
− Anda comigo lá acima, Sofi. Tenho uma coisa para te mostrar.
Subimos as escadas e parámos em frente à porta fechada do nosso quarto.
Fiz-lhe um olhar recriminador, que durou muito pouco tempo porque ele me tapou os olhos com uma das mãos.
− Ricardo, que disparate! – Protestei, mas não fiz nada para o impedir de se colocar atrás de mim e guiar-me para dentro do nosso antigo quarto.
Ouvi o barulho do interruptor e depois a sua voz ao meu ouvido.
− Pronta?
Estava muito curiosa, mas respondi numa voz desinteressada.
– Sim, Ricardo.
Ele tirou a mão da frente dos meus olhos como se me fizesse uma carícia, repousou-a no meu ombro e manteve-se atrás de mim para eu apreciar a surpresa. Uma cama de dossel, cheia de apontamentos românticos e digna de um conto de fadas.
Fiquei estupefacta e ao mesmo tempo muito divertida.
− Pensei que achavas as camas de dossel uma pirosice, Ricardo!
Aproximou o peito das minhas costas, passou os braços à volta da minha cintura e beijou-me no sítio onde me beijava sempre, uma pequena parte da minha pele que estava adormecida desde janeiro mas que reagiu imediatamente à carícia.
− E continuo a achar, mas se tu gostas, não me importo de dormir numa todas as noites. Para te ter de volta encho a casa de cortinados às flores, ganeshas, espanta-espíritos de corda e penas, rendas, mandalas e todos os artigos de gosto duvidoso que tu aprecias.
Senti o seu corpo cada vez mais junto do meu, ao mesmo tempo que me sussurrava as palavras junto ao meu ouvido. Senti-me tonta, perdi a capacidade de reação e tentei controlar o ritmo acelerado da minha respiração.
− Gostas, Sofi?
− Gosto muito.
Inspirei fundo para tentar recuperar o meu equilíbrio, mas o aroma familiar do seu aftershave destabilizou-me ainda mais...
− Uma cama nova para um novo começo.
As suas palavras relembraram-me da nossa cama antiga e de que outra mulher tinha dormido nela.
− Daquela vez aqui... foi a Mónica ou foi outra?
Pelo seu longo suspiro, percebi que a minha curiosidade o desagradava profundamente, mas não se afastou um milímetro. Encostou os lábios aos meus cabelos num movimento suave e suplicou num tom meigo.
− Sofi, não. Por favor, não...
Ouvi-lo suplicar comoveu-me, mas mesmo assim insisti.
− Não me vou zangar. Só quero saber. A incerteza faz-me pensar no assunto, se souber quem era acho que deixo de tentar adivinhar...
Manteve-se atrás de mim na mesma posição.
− Foi a amiga do Tomás. Só estive com a Mónica aquela vez e com a amiga do Tomás também só nessa noite. Não estive com absolutamente mais nenhuma mulher sem ser nessas duas vezes.
Lembrei-me de que, quando descobri que ele tinha dormido com outra mulher na nossa cama, eu já tinha assinado os papéis e pensava que éramos divorciados. Só que não éramos, e eu estive muito mais que uma vez com o Alex e engravidei...
Libertei-me dele, afastei os pensamentos perturbadores e aproximei-me da cama. Toquei na colcha de renda branca e apreciei as almofadas com cores vivas, às flores e com passarinhos... Tudo aquilo, juntamente com o apanha-pesadelos com penas coloridas que estava no sótão e ele pendurou na parede por cima da cabeceira, era um atentado ao bom gosto clássico do Ricardo. Eu não podia adorar mais.
Ele caminhou até um dos lados da cabeceira e acenderam-se várias luzinhas, enroladas nas tábuas superiores.
Não pude conter uma gargalhada. Nunca, em toda a minha vida, imaginaria que o Ricardo pudesse comprar uma cama assim. Abanei a cabeça enquanto me ria, desconcertada e maravilhada ao mesmo tempo.
Ele sorriu com a minha reação, voltou para ao pé de mim e apontou com a mão aberta na direção da sua composição decorativa fora de série.
− Fui sem medos, a dar tudo até ao fim do boho, do romântico e do hippie...
Acenei enquanto me perdia naqueles seus olhos como não havia outros iguais.
− Foste mesmo! Isto é muito... inesperado!
Colocou-se atrás de mim outra vez, com a cabeça ao lado da minha e as mãos nos meus ombros, como se também estivesse a apreciar a cama nova.
− A tua pirosice, Sofi... Não consigo viver sem ela!
Inspirou fundo e continuou num tom grave.
− Não consigo é viver sem ti. Consigo trabalhar, jogar ténis, sair à noite e ir a festas. Mas se não te tiver comigo, não é viver. É só fazer coisas, umas atrás das outras, para os dias se passarem até voltares para mim.
Senti os meus olhos a encherem-se de lágrimas e esforcei-me para que não transbordassem.
O Ricardo apoiou as mãos na minha cintura e virou-me para si. O meu corpo continuava a encaixar tão perfeitamente no dele...
Inspirou o ar atrás da minha orelha, beijou-me entre o canto do olho e os cabelos e senti aquele pedaço da minha pele quente e a latejar... Depois desceu os lábios pela minha face e recordei-me da sensação dos seus beijos, que me tiravam completamente as forças como se me vencessem por dentro.
Tentei impedi-lo do inevitável.
− Ricardo, eu sou uma pessoa diferente da que era há seis meses. Já não sou a Sofi que se foi embora.
Acariciou-me a face com os polegares enquanto os outros dedos me tocavam no pescoço. Em todos os sítios onde a minha pele estava em contacto com a sua, senti um calor intenso, que se alastrava ao meu peito e me fazia querê-lo para mim.
− Eu também já não sou o Ricardo que tu conheceste. Nunca mais voltarei a cometer o erro de estar com outra mulher que não sejas tu, a minha Sofi, a quem dei o meu o coração na primeira manhã de 2008. Lembras-te?
Era impossível esquecer, continuava a ser uma das melhores memórias da minha vida.
Eu perdi a coragem mas ele não, beijou-me os lábios com uma ternura doce que contrastava com a firmeza das mãos.
Tinha tanta saudade daqueles beijos, que era como se dependesse deles para continuar a existir... O meu corpo queria-o tanto, que o raro ar que nos dividia estava carregado daquela energia vibrante que era só nossa, que me transcendia e dominava, única no Universo.
Apesar disso, houve um instante em que fui mais valente do que pensava e tentei separar-me. O Ricardo percebeu-o, afastou os lábios mas continuou a segurar-me na face. Os seus olhos nos meus, duas pedras preciosas que me incendiavam a partir do meu centro.
− Peço-te por tudo o que há de mais sagrado, Sofi, volta para mim...
Antes de os seus lábios voltarem para os meus, eu já tinha desmoronado.
Era inato e mais forte que a minha razão. Resistir-lhe era como negar a minha natureza ou lutar contra a minha sobrevivência.
Só voltei a tomar consciência da minha parte racional muito tempo depois, quando o ouvi falar-me baixinho enquanto me depositava beijos leves no ombro. Estávamos nus, deitados na cama pirosa que ele tinha comprado para me impressionar. Eu de barriga para cima e com os olhos fechados. Ele deitado de lado e encostado ao meu corpo, com uma mão possessiva no meu ventre, onde ainda não se notava a nova vida que crescia dentro de mim.
− Estás a dormir, Sofi?
Percebi que tinha feito uma grande asneira, mas não tinha condições de elaborar frases nem de me mexer.
− Hum hum.
Ele riu-se do meu estado de inanição depois do prazer, afastou-se para mexer em qualquer coisa no chão e depois aconchegou-se novamente ao meu lado.
− Mandei uma mensagem à tua mãe a dizer que dormes cá, para ela não ficar preocupada.
− Hum hum.
Adormeci enquanto me deleitava com as suas carícias, a fantasiar que os últimos anos da minha vida não tinham acontecido.
Tinha sido tudo um pesadelo.
Eu afinal ainda tinha 29 anos, fui sempre feliz e engravidei do Ricardo pouco depois de decidirmos ter um bebé.