Domingo, 23 de julho de 2017

Senti que era beijada entre a raiz dos cabelos e o canto do olho. Abri os olhos e as minhas pulsações aceleraram com a constatação de que a sua presença era real.

Vi-o sorrir e pousar ao meu lado um tabuleiro com duas chávenas de café, sumos de laranja e os meus croissants preferidos, fabricados a três quarteirões daquela casa.

Sentou-se na cama, fez-me uma festa nos cabelos e senti-me a mulher mais especial do Universo.

− Sabes uma coisa, Sofi? A noite passada foi... Tu sabes como foi. – Fez uma pausa e a sua expressão de felino satisfeito. – Mas ver-te aqui ao meu lado quando acordei, ainda me fez mais feliz...

Não fui capaz de dizer nada e deixei-o abraçar-me enquanto mordia os lábios com força. A seguir, tomámos o pequeno-almoço enquanto o Ricardo me falava sobre a vida maravilhosa que íamos voltar a ter, bem como a sua decisão de aceitar que eu fizesse o tratamento com óvulos de dadora.

Veio-me à ideia de como a minha querida Rita tinha muita razão, quando me disse que a vida nunca é como planeamos. Eu tinha tentado tudo para convencer aquele homem a deixar-me engravidar com óvulos de dadora, mas ele só o tinha aceitado depois de eu já estar grávida por milagre, com os meus óvulos, mas de outro homem.

Podia não lhe contar nada.

Podia dar-lhe uma grande novidade dentro de duas semanas. O Ricardo não sabia como se contavam as datas da gravidez, não seria difícil enganá-lo. Bastava ir acrescentando as semanas lentamente e depois o bebé nasceria um pouco antes do tempo, só tinha de arranjar maneira de ir sozinha às consultas com a Dra. Margarida e faria do meu marido um homem muito feliz. Ele era um homem com uma fé inabalável e ia acreditar que as suas preces finalmente tinham sido atendidas.

Dez semanas era uma diferença grande, mas a data do parto era uma estimativa e o Ricardo ia acreditar no que eu lhe dissesse.

− Porque é que não me dizes nada, Sofi?

Falei rapidamente antes que mudasse de ideias.

O Ricardo era um homem bom e amava-me. Eu também era uma mulher boa, pelo menos na maior parte dos meus pensamentos.

− Estou grávida.

Ele pousou o copo no tabuleiro e encarou-me atónito.

− Como assim grávida?

Lembrei-me de um dos momentos mais inesquecíveis da minha vida e parafraseei o Dr. Álvaro.

− Assim como... de ficar muito gorda porque tenho um filho a crescer dentro da barriga.

Fez uma careta de incompreensão e ficou em silêncio durante longos segundos antes de me questionar.

− Fizeste mais tratamentos, lá em Moçambique?

Senti as batidas do meu coração na garganta e vacilei novamente. Podia dizer-lhe que tinha feito um tratamento com embriões doados pouco antes de ser ferida. Não tinha relatórios porque regressei à pressa e sem nenhuns papéis.

− Não. Engravidei da maneira normal.

O Ricardo levantou-se num movimento súbito e percorreu o quarto em círculos como um animal aprisionado.

A fantasia com que adormeci tinha acabado. Alcancei a minha roupa interior e vesti-a.

− Como é que isso aconteceu?! Como?!

Retraí-me contra as almofadas e encolhi os ombros num gesto tímido, demonstrativo de que ele sabia como as pessoas engravidavam.

− Foste para Moçambique e engravidaste do primeiro homem que te apareceu? Foi isso?

Abracei os joelhos e respondi-lhe com dificuldade, tinha os lábios muito secos e a voz falhava-me.

− Nunca pensei que fosse possível, depois de tudo o que tentámos...

Abanou a cabeça numa recriminação profunda e silenciosa, depois virou-se de costas para mim e encostou a testa à parede.

− Se calhar o problema foi sempre meu.

Tentei ignorar o nó que me fechava a garganta. Falei aos solavancos, a tentar conter os soluços e numa voz estranha que não reconhecia como minha. Senti-me uma espectadora em choque, ao invés da personagem principal.

− Claro que não, Ricardo. O problema foi sempre meu, foi uma espécie de milagre o meu ovário ter funcionado de repente. Era muito difícil, mas pelos vistos não era impossível...

Ele voltou-se de novo para mim e deu uma palmada forte na coluna da cama.

− Eu sabia! Eu sabia que podia acontecer. Pedi a Deus tanto, mas mesmo tanto para que tu engravidasses... – Parou de gritar e suspirou como se a última palavra o tivesse deixado exausto. Sentou-se no extremo oposto da cama e limpou as lágrimas antes de correrem. – E aconteceu. Só que não foi comigo, foi com um homem qualquer.

Comecei também a chorar, não de arrependimento, porque não me podia arrepender do que tinha vivido em Moçambique e culminado numa gravidez, mas por assistir ao seu sofrimento.

− Eu também queria mais que qualquer outra coisa na vida ter tido um filho contigo Ricardo, mas não foi assim que aconteceu.

Destapou a cara, sem pudor que lhe visse os olhos a transbordar, acusadores e carregados de ressentimento.

− Não foi assim que aconteceu por tua culpa, porque saíste de casa e foste para Moçambique. Se tivesses ficado comigo, ERA EU o pai dessa criança e não um cabrão de um gajo qualquer. Quem é ele?

Foi a primeira vez na minha vida que ouvi o Ricardo dizer palavrões quando se dirigia a mim.

Não respondi e ele não insistiu, mas eu teria preferido mil vezes que tivesse continuado aos gritos e se zangasse comigo, em vez do que fez. Baixou a cabeça e cobriu a cara com as mãos. Ficou assim, sem me dizer mais nada e a tentar ocultar-me toda a dor que sentia.

Vê-lo em silêncio e naquela posição de desespero, fez-me sentir insuportavelmente infeliz. Deslizei pela cama, aproximei-me e tentei tocar-lhe.

Afastou-se com uma firmeza que não deixava margem para uma segunda tentativa.

− Veste-te para eu te levar a casa, Sofi. Desta vez passaste todos os limites.