Estendida de bruços no novo edredom roxo de Frankie, usando camiseta e calça de ioga, li a entrevista da Helicopter Pilot na Rolling Stone três vezes.
— Brandywine — Frankie fecha o batom e admira seus lábios diante de seu chamado espelho das vaidades. — Pode ser muito escuro para você — diz ela, me dando o batom. —, mas tente, se quiser.
Não preciso tentar. Vai ser escuro demais. Minha pele é tão branca que chega a ser quase azul, exceto por dezenove sardas que eu odeio, todas imunes a peelings e tratamentos de esfoliação.
— Frank, por favor — volto ao início da entrevista. Deveríamos estar fazendo nossas listas de bagagem e definindo todas as coisas legais que faríamos na Califórnia mês que vem, mas passei a última hora observando Frankie se enfeitar. — Eu me recuso a me arrumar toda só para isso.
— Quem está se arrumando? — pergunta Frankie. — Estou só... Ah, fica quieta, Anna.
Frankie se arruma para qualquer coisa — planejamento de viagem, cinema, compras e até mesmo para tirar o lixo do quintal. A terra podia sair de órbita por uma dobra no continuum espaço-tempo e, enquanto a América do Norte se aproximasse da Europa à metade da velocidade da luz, com casas e flamingos de jardim e cães voando, Frankie diria: “Espere um pouco, Anna. Tenho alguma coisa nos dentes?”
Frankie sempre foi a lindinha, mesmo quando nossas mães nos vestiam com o mesmo vestido de alcinha ou calça jeans. Mas ela costumava ser tímida e doce, e se sentir até um pouco embaraçada.
No último ano, quando o choque da morte de Matt passou e ela deixou de chamá-lo do lado de fora do quarto, Frankie encolheu-se num casulo como uma lagarta, solitária e insegura. Não falava com ninguém — seus pais, meus pais, nem comigo. Não de uma forma que importasse. Às vezes eu me perguntava se perderia meus dois melhores amigos de ataque cardíaco. Mas quando a escola recomeçou, no outono, ela emergiu, metamorfose concluída, uma borboleta toda novinha que deixara de chorar, que adorava meninos, usava muita maquiagem e fumava Marlboro light em segredo na janela do quarto.
Agora, para onde quer que fôssemos, Frankie entrava no ambiente como um buraco negro e, de acordo com o Quinto Teorema da Física Quântica e das Meninas Bonitas, sugava toda a atenção ao redor.
— Anna, você quer ou não? — perguntou.
— Não. Muito escuro.
— Fique à vontade, fantasminha — ela fechou a boca, limpando-a com um lencinho e jogando um pó translúcido por cima.
O remix Frankie. Sombra impecavelmente aplicada, unhas pintadas à francesinha, cabelos castanhos com reflexos ruivos caindo pelo queixo e cintilando. “Anna” e “cintilar” não pertencem à mesma frase. Meus cabelos são encaracolados, desgrenhados e parecem uma palha se eu não aplicar bastante gel. Além do básico de hidratar e de fazer a higiene adequada, a última vez que passei algum tempo em contato com minha diva interior foi quando fiquei com Matt. Agora, minha maquiagem ficava escondida no banheiro, sob uma camada cada vez mais espessa de poeira rosa.
— Você adorava isso — ela comentou, procurando um tom mais leve. — Aqui, tente este, Moonlight Madness. Tem cristais ou coisa assim.
Dei de ombros e me voltei para as imagens do autodenominado mascote da Helicopter Pilot, o Air Guitarist, até que ela se distraiu, misturando tons de sombra nas costas da mão com um cotonete. Não a culpo por tentar. Ela não sabe de Matt, o fantasma que entra e sai de meu coração assombrado e não resolvido.
Não se preocupe. É o nosso segredo.
— Você gosta desta cor? — ela me encara e sorri. Alguma coisa em seu sorriso me faz lembrar dele, e tenho de desviar o olhar para impedir a inundação de lembranças. É oficial, já faz mais de um ano agora. Sei que deveria deixar para trás, mas é algo que nunca me larga. Todas as manhãs, eu acordo e me esqueço só por um segundo de tudo o que aconteceu.
Quando abro os olhos, a lembrança me enterra como um deslizamento de rochas tristes e afiadas.
Quando abro os olhos, estou pesada, como se houvesse gravidade demais pressionando meu coração.
Nunca falo com Frankie sobre isso. Matt é seu irmão de verdade, não seu melhor amigo-menino que é tipo um irmãozão. Nunca falo nada sobre ele.
Apenas engulo em seco.
Faço que sim e sorrio.
Um pé diante do outro.
Estou bem, obrigada por não perguntar.
— Esta cor está ótima em você, Frank — digo.
— Você viu meu pincel maior? — ela pergunta. — Não encontro nada desde que a mamãe transformou meu quarto no hotel Sahara.
— Veja naquela caixinha na sua mesa. — Aponto para um conjunto de caixas douradas enfileiradas em ordem de tamanho.
Frankie encontra o pincel na caixa do meio.
— Preciso trancar a porta, senão não encontrarei mais nada.
Nos últimos seis meses, tia Jayne ficou obcecada com assuntos de decoração. Sempre que eu entrava na casa de Frankie, algo estava diferente — novas almofadas ou móveis trocados de lugar, mais plantas ou menos plantas, paredes coloridas ou tons neutros minimalistas, um redemoinho de véus, objetos e cortinas. Na semana passada ela transformou o quarto dos anos 1920 de Frankie num oásis marroquino, envolto em tons de roxo, vermelho e contas de madeira como cortinas.
— É como uma nova aventura todos os dias — disse Frankie mês passado, quando seu banheiro de libélulas se tornou uma central sexy quase da noite para o dia, incluindo prendedores de cortina de lacinho. Acho bom que tia Jayne se empolgue com alguma coisa de novo — e corra para a loja de tecidos ou para a loja de artigos de casa e jardim sempre que a inspiração baixar, ou seja, sempre que um daqueles programas de redecoração total feita por estranhos em quarenta e oito horas passe na televisão. Só no último mês ela ocupou metade da garagem com caixas de revistas, tecidos para almofadas, pincéis, antiguidades, espelhos de luz e peles falsas. Só há um quarto em que ela não ousa tocar — o quarto no fim do corredor. Ele fica sempre com a porta fechada, como se não existisse mais.
— Frankie, você está pronta? — sei tudo o que há para saber sobre a banda Helicopter Pilot, incluindo o fato de seu baterista, Scotty-O, ter passado por um transplante de fígado aos quatro anos, e estou cansada de ver a cabeça de Frankie de um lado para o outro. — Já li esse artigo tantas vezes que sinto que estou na HP.
— É — ela disse —, mas eles são a melhor banda do universo e você desafina até para cantar “Parabéns a Você”.
— Talvez não. Mas eu passei na prova final de inglês, o que é mais do que eu posso dizer para algumas pessoas neste quarto.
— Ei! Setenta e sete ainda é nota para passar. E, para sua informação, inteligentona, acabei de me inscrever num serviço de e-mails de uma palavra por dia para expandir meu vocabulário.
— Ah, é mesmo? — perguntei.
— A palavra de hoje é judicial. Tipo, só porque Anna é uma supernerd, não significa que ela tenha de ser tão judicial contra pessoas que não são.
— Crítica. Você quer dizer crítica. E eu não sou.
— Criti... droga. — Ela pega um caderno espiral e escreve: Crí-ti-ca. Crítica. Você — diz ela, tampando a caneta e jogando o caderno de volta na mesa —, você adora estar certa, não é?
Jogo a revista no chão.
— É doloroso, mas alguém precisa ser a inteligente nesta operação toda.
Frankie dá de ombros, levando o pincel de maquiagem ao nariz.
— Acho que vou ter de contar com a minha aparência. Estou pronta. — Ela se levanta da cadeira da vaidade e sorri com as mãos na cintura, como se estivesse esperando por uma direção de palco. Minha borboleta. Assim como seu irmão. Quando ela sorri, seus olhos azuis se iluminam e encantam todos ao redor.
— Perfeito — digo, prendendo meus cabelos com um lápis. — Agora, por favor, será que podemos começar a planejar esta viagem, de preferência antes do fim?
Frankie me joga uma caneta roxa e um papel que estavam na mesa. Enquanto trabalho em minha lista do que levar na bagagem, ela anda pelo quarto gritando itens em potencial, indo para a frente e para trás com sua câmera de vídeo. Uma de suas tias lhe deu a câmera depois que Matt morreu para “a distrair”, e ela não largou o brinquedo desde então. Acho que ela teme perder algo importante — ou não ser capaz de se lembrar depois, quando importar.
Em menos de uma hora, listamos roupas (casual para o dia, moda para o dia, casual para a noite, moda para a noite, pijamas e trajes de banho), biquínis (que ainda precisávamos comprar), itens de banheiro e maquiagem (para Frankie), jogos, música e livros (para mim). Também escolhemos o nome oficial de nossa vindoura aventura — Melhor Verão de Todos os Tempos (M.V.T.T.) —, porque é isso que exatamente será, de acordo com minha recém-nomeada guia turística.
— Você está bem, Anna? De repente não parece mais tão empolgada — Frankie se senta diante de mim e inclina a cabeça, franzindo a testa. Matt costumava fazer a mesma coisa sempre que estava preocupado com uma de nós e precisava analisar mais de perto a situação.
— Não, eu estou bem — digo. — Só não parece real ainda. Você sabe como o papai estava estranho. Não quero me empolgar demais antes de estar de fato no avião.
Papai já acha que passo tempo demais na casa dela. “Red e Jayne precisam se envolver mais no luto de Frankie”, ele disse em mais de uma ocasião, acrescentando em seguida algo como “ainda mais porque esta será a primeira viagem deles sem o Matt”. Mas o que papai sabe? Sua ideia de apoio é tomar cerveja com tio Red e não mencionar o nome de Matt.
Frankie balança a cabeça e desliga a câmera.
— Não se preocupe. Ele já disse que você pode ir. Você só precisa de um pouco de... ah, como se fala? Envisionação, acho.
— Envisionação? — pergunto.
— Sabe quando você pensa numa coisa que quer e se imagina conseguindo?
— Visualização, Frankie. E não vai dar certo.
— Visualização. É, isso mesmo. Mas tente. — Ela fecha os olhos e leva os dedos às têmporas, mudando para um tom monótono: “Anna está chegando à Califórnia. Ela e sua amiga Frankie são mágicas e belas, como sereias na água. Elas estão andando na praia e vários meninos estão acenando e babando porque elas são irresistíveis demais.”
Ela abre os olhos.
— Está vendo?
— Na verdade, não — digo. — Mas estou ficando com muito sono.
— Fala sério, Anna. Você não está se esforçando. Feche os olhos.
Faço o que ela pede e tento imaginar a paisagem que ela desenhou. Ela fala de se deitar ao sol, do cheiro de coco e de escrever cartões-postais para meus pais, e em pouco tempo estou pensando nos cartões-postais. Matt costumava me mandar postais com imagens de leões-marinhos usando óculos de sol ou mulheres bem gordas com biquínis cor de néon. Guardei todos, bem protegidos numa caixa, debaixo de minha cama.
Se ele tivesse me beijado um ano antes, será que eu teria recebido cartas de amor?
— Está vendo? — Frankie bate em minha perna, me trazendo de volta ao presente.
— Vamos ver — desfaço-me da imagem dos beijos azuis escritos por Matt.
— Anna, isso vai ser ótimo! — Frankie prende nossa lista no painel de cortiça, na parede sobre sua mesa, e procura cigarros guardados na primeira gaveta. Ela só fuma em seu quarto, pela janela. Nunca em público. Nunca na escola. Nunca lá fora. Ela nega sempre que toco no assunto, mas às vezes acho que ela nem gosta de cigarros; só quer mesmo que seus pais a peguem e façam... não sei. Alguma coisa.
No mês passado, quando tio Red e tia Jayne sugeriram a viagem para seu lugar de veraneio preferido comigo a tiracolo, Frankie surtou. Ela ficou em silêncio por um longo tempo, e ninguém sabia o que aconteceria a seguir. Era como na escola ou na família depois do acidente, quando as pessoas mencionavam Matt. Sua mente se fechava e vagava. Ou ela ficava com tanta raiva que começava a tremer. Outras vezes, no começo, ela simplesmente corria e caía em prantos. Cair em prantos é diferente de chorar. O pranto consome seu corpo todo e, quando acaba, você sente como se não tivesse ossos para mantê-lo em pé.
Mas ela não caiu em prantos na noite em que falamos sobre a viagem. Só ficou furiosa e saiu como uma tempestade para o quarto, deixando os pais atrapalhados nas desculpas comigo. Dava para ver que era difícil para eles, mas eu não sabia o que mais eles esperavam. À medida que o anúncio saía da boca de Red e caía sobre a mesa, esperando por uma resposta, tudo o que eu podia pensar era Um ano depois continua sendo cedo demais.
Contudo, na manhã seguinte Frankie começou a acalentar a ideia e no fim da semana era como se ela tivesse planejado a viagem para a baía de Zanzibar desde sempre, imaginando palmeiras e bons momentos ao sol.
Frankie se ajoelhou diante da janela, abrindo as venezianas e se apoiando contra o peitoril para acender o cigarro. O bracelete vermelho de Matt pendia de seu pulso, brilhando em meio à fumaça e ao sol. Seus pés estavam sujos embaixo, da poeira do verão, e, quando ela se virou para soprar a fumaça para o céu, não consegui me desvencilhar da impressão de que era de fato cedo demais.
— Frankie, você acha que a viagem para a Califórnia está indo rápido demais? Quero dizer, cedo demais? — falo baixo. Não tenho certeza se me expressei bem.
— Não — ela diz, jogando a meia bituca do cigarro numa lata velha de Cola Zero e se juntando a mim no chão. — Ainda temos uma, duas... quatro semanas antes que o M.V.T.T. comece de verdade. Isso significa que nosso cabelo crescerá quase dois centímetros — ela mantém a mão sob o queixo, indicando o comprimento esperado. — Além disso, vamos tomar Ultra Quick-Skinny.
— Aqueles milk-shakes falsos? — pergunto. Engolir minha própria língua parece melhor do que tomar milk-shake no café da manhã, almoço e jantar. — Você só pode estar brincando.
— Anna, você tem de tomar. Podemos perder uns cinco quilos até lá. Pense nas praias. Pense nos biquínis. — Ela ergueu a camiseta, segurando a gordura não existente em sua barriga. — E — completou, batendo na barriga duas vezes — não se esqueça do A.A.
A.A. — o Albatroz da Anna, do latim Anna, eu, e albatroz, significando “algo que atrasa ou limita”; por exemplo: “era um albatroz ao redor do seu pescoço”. É o código que demos para minha virgindade depois que Frankie perdeu a dela para o estudante alemão após o baile de primavera, há dois meses, tornando-se uma especialista nessas coisas.
— Mas, Francesca — digo, em minha voz com ar de romance —, quero que seja... especial! — O que é uma meia-verdade. Bem, talvez um pouco mais. Não mais de 68 por cento. A verdade é que sempre imaginei que seria com Matt. Estava apaixonada por ele antes mesmo de saber como chamar isso, e, depois que ficamos juntos no verão passado, era coisa certa em minha mente. Vi todo o meu futuro naquele primeiro beijo, até a parte em que eu o ajudaria a arrumar as coisas na véspera da escola, e uma coisa leva a outra, e ele me daria um beijo apaixonado de adeus, me derrubando em sua cama, e daí iríamos enfim...
Quando ele morreu, esse sonho morreu também. Meninos? Intimidade? Esse tipo de intimidade? Dói demais pensar no assunto. Se eu beijasse outra pessoa, o encanto se perderia e minhas lembranças com Matt e tudo o que o envolvia desapareceriam. Não, muito obrigada.
— Especial? Ah, certo! — Frankie joga uma almofada com elefantes dourados bordados em cima de mim. — Eu lhe disse, não é tão bom da primeira vez. É mais um ensaio para a coisa real; um ensaio nu. Peguei Johan porque ele estava indo embora na semana seguinte e eu sabia que jamais o veria de novo.
Peguei Johan. Se eu procurasse peguei no dicionário, não encontraria qualquer referência a Frankie e Johan. Teria de seguir adiante, até perseguir. Durante todo o ano Frankie intimidou a namorada de Johan, Maria, com olhares maldosos na aula de educação física, deixando bilhetes diários em seu armário e dando uns amassos nos amigos dele no estacionamento para que a notícia o alcançasse. Johan era o único cara não disposto a pôr um fim em seu relacionamento para ficar com Frankie, e isso a deixava perplexa e frustrada. Assim, depois que Maria terminou com ele, uma semana antes do baile de primavera, Frankie fingiu não saber de nada até a noite do baile, quando se aproximou com sua melhor expressão de “Estou Todinha Aqui para Você”. Meia hora mais tarde eles saíram para o campo de futebol escuro, fazendo sua dancinha, deixando-me sozinha com um ginásio cheio de adolescentes felizes.
Faz dois meses. Johan voltou para a Alemanha e não respondeu nenhum dos e-mails de Frankie.
Isso não a impede de planejar o fim de minha inocência na próxima viagem. Na mente dela, vamos ignorar uma carta direta do Deus das Férias de Verão se eu não me livrar da grande “V” de uma vez por todas em algum lugar da costa do Pacífico.
— Como posso me esquecer do albatroz? — pergunto. — Você fala nisso a cada cinco minutos.
— Só tentando manter a coisa fresca. — Ela se ergue e estende a mão. — De qualquer modo, sua virgindade é o menor dos seus problemas. Vamos: sua casa.