À medida que os dias se transformam em apenas horas antes da viagem, sempre que penso na disputa dos vinte garotos de Frankie não posso ignorar a sensação em meu estômago, acompanhada da expressão que Matt faria, pálido e decepcionado.
Nunca a vi num biquíni, imagino-o dizendo.
Você não viveu o suficiente para isso, penso.
Mas vinte, Anna? Tem de ser vinte? Que tal cinco? Ou três? Ou um?
Por que você se importa? Você está morto, lembra?
Balanço a cabeça e guardo na bolsa as últimas coisas de minha lista. A não ser que papai mude de ideia na última hora, vamos viajar amanhã pela manhã.
— Meninos mortos não falam, Anna — digo em voz alta. — Lembra?
— O quê? — Mamãe bate na porta e já vai entrando em meu quarto. — Você disse alguma coisa, querida?
— Ah, não. Só estava revendo minha lista.
Vejo papai atrás dela e espero que os dois não estejam ali há muito tempo. Depois, percebo o olhar sério deles e engulo em seco, esperando que estejam ali para me lembrar do protetor solar e do salva-vidas, além de me orientarem a ser uma menina comportada na presença do tio Red e da tia Jayne.
— Podemos conversar por um minuto? — Papai pergunta, ajeitando-se na cadeira.
— Humm, tudo bem. — Tiro e dobro coisas da bolsa para dar a impressão de que estou ocupada.
— Então a Frankie está fumando de novo — diz ele.
Não sei se é uma pergunta ou uma afirmação, por isso me faço de boba.
— Como assim?
— Vim para casa mais cedo hoje e a vi — ele continua.
Papai é corretor de imóveis, por isso sua agenda é imprevisível. Frankie deveria saber — sua janela dá para nossa casa. Faz alguns meses que ele a pegou fumando e me deu uma bronca por causa do meu hábito, que não existe, de fumar e me fez prometer que a faria parar.
— Ela só... ela achava... é que... não sei, papai. — Eu desisto. A única justificativa em que consigo pensar é a verdade: ela está destruída. Até que alguém descubra como consertá-la, o que mais ela pode fazer?
Papai suspira.
— Anna, você acha que a viagem é uma coisa que a família Perino precise fazer junto, como uma família?
— Eles vão viajar como uma família — confirmo. Essa linha de raciocínio me deixa nervosa. Quando os Perino me convidaram, foi necessário convencer papai a me deixar ir. Antes da morte de Matt, meu pai tinha dificuldade para aceitar atividades “perigosas”, como me ver saindo de cabelo molhado no inverno, tirar o tênis sem desamarrar o cadarço e ir para a cama sem passar fio dental. As coisas pioraram depois do acidente, e eu de fato achava que papai me negaria uma viagem de verão do outro lado do país — principalmente reforçando seus comentários sobre passar tempo demais na companhia de Frankie. Mas, depois de um argumento convincente, citando minhas notas finais e me comprometendo a fazer as lições de casa adicionais sem que me pedissem, eu o venci. Depois disso, sempre que alguém falava na Califórnia eu mudava de assunto. Como eu disse a Frankie, até que estivéssemos no avião meu pai ainda podia mudar de ideia quanto à viagem.
— Eu sei que eles vão como família — reiterou papai. — Eu quis dizer... sem a vizinha deles pegando no pé.
Ele diz “a vizinha” como se eu fosse uma craca que nem mesmo produtos químicos industriais poderiam remover do corpo de sua tragédia familiar.
— Papai, ela precisa de mim lá, sabia? — digo, obrigando-me a manter a voz firme, pensando na “visualização positiva” de Frankie. Estou na praia. Há meninos babando e cartões-postais e algo sobre belas sereias...
— Eu entendo, Anna. Só que... Você já parou para pensar que talvez Frankie não esteja melhorando... porque você não deixa?
Tento pedir ajuda para mamãe, mas seus olhos estão repousados em mim, ansiosos, como se a qualquer minuto eu percebesse a lógica irrefutável deles e desfizesse minha mala. Sei que mamãe e papai se preocupam com Frankie, mas não foram eles que se esconderam no andar de cima com ela nas semanas seguintes à morte de Matt, enquanto parentes bem-intencionados e amigos apareciam, trazendo infinitos cartões, alimentos e dizendo as coisas erradas: “Ele está num lugar melhor, agora”; “Deus deve ter um plano para ele”; “Pelo menos ele não sofreu”; “Você ainda é jovem, Jayne, talvez possa ter outro filho”; “Você deixará de pensar nele se tirar todas as fotografias de vista”. Eles não estiveram ao lado de Frankie enquanto ela chorava durante horas a fio. Eles não foram ver se ela estava se alimentando mesmo sem fome. Eles não fizeram sua lição de casa quando ela não conseguia se concentrar nem explicavam à professora por que ela chegava atrasada em todas as aulas.
— Como você sabe que Frankie não está melhorando? — perguntei.
— Anna — ele falou, com delicadeza —, só estou dizendo que, desde que você esteja por perto, Red e Jayne não precisam se preocupar com a filha. Você está fazendo isso por eles. E a três mil quilômetros de distância, numa viagem, vai ser bem difícil para eles. Isso complica as coisas. Só queremos ter certeza de que você está preparada para lidar com isso.
Lidar com isso? Eles não só reduzem o estado emocional de minha amiga a algo parecido com uma coceira irritante como plantam uma nova semente em meu cérebro já atribulado.
Será que é por minha causa que Frankie não está melhorando?
Desde a morte de Matt, a Terra deu mais do que uma volta completa ao redor do sol — tempo de sobra para superar, de acordo com os livros e terapeutas e conselheiros escolares que tentaram falar comigo sobre meu papel de “protetora” na vida de Frankie.
Mas Frankie até agora não superou.
Eu não superei.
Não quero falar nisso, porque um dia o nome Matt sairá de meus lábios na presença dela e, rubra, de olhos marejados, com a respiração profunda ou com uma única lágrima no rosto, o segredo que eu deveria manter para sempre será revelado.
— Querida — diz mamãe. Ela me olha com sua expressão de “Você pode conversar comigo”, que só é um pouco mais tolerável do que a cara dela de “Eu também já fui jovem”. Ao contrário da expressão ETJFJ, que em geral significa que ela sabe o que estou tramando e é melhor não mentir, a expressão VPCC é metade culpa e empatia com um punhado de “ainda somos amigas?” e “seu pai não é uma pessoa má”. — O papai e eu só estamos preocupados com a Frankie. Sabemos que ela está sob pressão, e você está administrando emoções difíceis, com as quais Red e Jayne talvez devessem se envolver mais.
Penso em tia Jayne sempre comprando objetos de decoração com o cartão de crédito de tio Red.
— Bem, eles não estão envolvidos.
— Sabemos disso, Anna — retruca papai. — É por isso que a mamãe e eu estamos preocupados. A Califórnia vai ser difícil para eles, e sabe lá como isso afetará Frankie. Você talvez vá precisar ser o elo forte ali, certo?
Reprimo uma risada, lembrando algo que Matt me dissera em seus últimos dias de vida. Frankie estava trabalhando de babá e Matt e eu estávamos no quarto dele separando os livros e discos em pilhas de “ficar em casa” e “levar para a faculdade”.
— Sei que não estou indo para longe — disse ele, remexendo nos CDs que ficariam em casa —, mas estou preocupado com a Frankie, não quero que ela pense que não a desejo por perto ou que ela está sozinha. Acho que vai ser difícil quando ela ficar sabendo de nós. Você terá de ser o elo forte, Anna.
— Como? — Finjo ignorar sua ideia de que nós, as meninas, não sobreviveríamos à falta de sua presença superprotetora. — Não é como se você fosse para a guerra. Acho que podemos lidar com a situação.
— Eu não quis dizer isso — ele conserta, se aproximando de mim na cama e segurando meu rosto.
Olhei para ele fingindo estar magoada. Depois o abracei, puxando-o para a cama com outro beijo.
— Quem é o mais forte agora? — perguntei.
— Certo, você venceu. Você venceu — ele riu. Fiquei em cima dele, descansando minha cabeça em seu peito enquanto ele brincava com meus cabelos até que Frankie voltasse para casa.
— Anna? — chama papai, interrompendo minhas lembranças. — Você está bem?
Faço que sim com a cabeça.
— Eu sou o elo forte, papai.
— Eu sei, Anna. Mas...
— Deixando isso de lado — interrompe a mamãe —, acho que a viagem vai ser boa para você também. Ela pode ajudá-la, não sei, a revisitar Matt de novo. Faz sentido? — ela me olha com tanta compaixão que, por um segundo, esqueço que se trata de minha mãe e penso que ela sabe, como se meus sentimentos estivessem expostos em meu rosto e tudo o que ela precisasse fazer fosse tirar meu cabelo de lado para lê-los.
— Sim — respondo, na esperança de que eles não percebam meu rosto queimando.
— Certo. — Papai se levanta da cadeira. — Termine e vá para a cama. Você vai acordar cedo amanhã.
Até que enfim.
Os temores pré-viagem se desfazem, eu os abraço e reviso minha bolsa. Tudo parece em ordem. Só há um problema.
Não consigo tirá-lo de minha mente.
Desligo a luz e acendo a luminária de leitura. Encolhida na cama, vejo a chuva que cai na janela e torna tudo lá fora ameno e embaçado. Penso no mar de novo e olho para os potes cheios de vidros coloridos que ganhei de Frankie e Matt, do outro lado de meu quarto.
Matt podia ter morrido de mil maneiras diferentes, mas, sempre que olho para os potes, repasso a história de nossa amizade à procura de coisas que teria feito diferente ou dito antes para interromper a sequência de eventos que levaram àquele dia no carro, o dia em que seu coração parou. Oi, Matt, estou apaixonada por você. Não vamos tomar sorvete hoje. Vamos só procurar um lugar para nos escondermos.
Quando éramos “apenas amigos”, eu costumava escrever sobre ele no meu diário, que me acompanhava aonde quer que eu fosse. Escrevia sobre como sair com ele e Frankie no fim de semana, sobre ele parar na frente de meu armário entre as aulas ou sobre os livros que ele me dava para ler para que pudéssemos conversar sobre eles mais tarde. Apenas algumas vezes eu admitia meus sentimentos por ele no papel — tinha medo de que alguém encontrasse meu diário e lhe revelasse meus segredos.
Escrevi minha primeira carta para ele naquele diário que me deu de presente — mesmo que eu não quisesse que ele a lesse. Foi depois que ele me beijou no quintal de casa, quando eu já estava sozinha no quarto, com todas as células do corpo vibrando, ainda o sentindo em meus lábios. Imprimi a foto que papai tirou depois da guerra de bolo e a colei dentro da capa roxa do diário, com a legenda “Feliz Aniversário”.
As semanas seguintes foram um borrão de felicidade, encontros secretos à meia-noite, conversas sobre o restante do verão, sobre como ele me escreveria todo dia da Califórnia, como Frankie e eu o levaríamos para Cornell com os pais dele... Eu queria estar com ele o tempo todo, em cada segundo que estivesse acordada. Vê-lo e conhecê-lo sob a nova luz da nossa relação — no que quer que ela se transformasse —, de forma diferente dos anos da nossa infância como melhores amigos.
Não tive tempo para pensar no que estava acontecendo, muito menos de escrever cartas que ele nunca leria.
Alguns meses depois de sua morte, comecei a lhe escrever de novo — de vez em quando. Não como uma comunicação com os mortos, mas de um jeito que me ajudou a me sentir próxima dele, ainda mais depois de uma noite difícil com Frankie ou nas noites em que não conseguia deixar de pensar nele.
Como nesta noite, véspera da nossa partida — para as férias familiares que começariam cedo demais e para as quais faltava alguma coisa.
Querido Matt,
Em menos de um dia estarei na mesma areia que você pisou tantas vezes. Bem, não a mesma areia, com as marés, o vento, a erosão e tudo o mais, mas a mesma areia em termos simbólicos. Estou tão empolgada e assustada que não consigo dormir — mesmo tendo de acordar daqui a cinco horas!
Sabe, guardei todos os seus cartões-postais. Eles estão numa caixa embaixo da minha cama — todas as histórias que você mandou, como se fossem pedacinhos da Califórnia. Como o vidro do mar que vocês sempre me traziam. Às vezes os coloco na mesa e os pressiono contra os meus ouvidos, tentando ouvir o oceano. Tentando ouvir você.
Mas você não diz nada.
Lembra quando você voltava das férias na praia e me dizia como se sentia? Como o mar soava ao nascer do sol, quando a praia estava deserta? Qual era o gosto do seu cabelo e da sua pele depois de nadar na água salgada o dia todo? Como a areia queimava seus pés enquanto você caminhava, mas, se você enfiava os dedões do pé nela, era fria e úmida lá embaixo? Quando você passou três horas sentado na Ocean Beach só para observar o sol mergulhar na água a milhões de quilômetros? Se eu fechasse meus olhos enquanto você falava, era como se eu estivesse lá, como se suas histórias fossem minhas histórias. De várias formas, sinto como se suas memórias de lá fossem também minhas. Será que sou louca?
Matt, não se sinta mal quanto ao comportamento da Frankie. É apenas um joguinho tolo. É tão típico dela, não acha?
Não, acho que você não acha. Você a mataria se pudesse.
Ela sente a sua falta. Todos nós sentimos. Vou cuidar dela também. Prometo.
Por favor, cuide de nós amanhã e nas semanas seguintes, enquanto estivermos fora. Você vai habitar meus pensamentos o tempo todo, como sempre.
Vou encontrar alguns vidros vermelhos para você.
Sinto tanto a sua falta... mais do que você imagina.
Com amor,
Anna
Passo os dedos pelo nome dele e fecho os olhos, imaginando que, quando chegarmos à Califórnia, ele estará lá esperando por nós, sorrindo com seu cabelo cheiroso de maçã e seu colar de vidro azul.