Capítulo 17

Querido Matt,

Qual é o período para se sentir culpada por trair um fantasma?

As palavras são negras e bagunçadas como formigas em meu diário e parecem ridículas como soam. Já se passaram quase 24 horas, e eu não consigo me desvencilhar da sensação quente que se acomodou em meu estômago. Não tanto por beijá-lo — noite romântica na praia, estrelas, fogueiras e cervejas. Essas coisas acontecem, segundo Frankie.

É que eu quero que aconteça de novo.

Não os vemos hoje. Prometemos passar a manhã com Jayne na praia, o que logo se transforma em almoço e jantar, e depois em um jogo noturno com tio Red. Depois ficou tarde demais para voltar para a praia — o sol estava baixo e de algum modo conseguimos passar o dia todo com os pais de Frankie em coisas familiares que não envolvem meninos, culpa ou coisas que fazem tremer à noite.

Parte de mim não quer ir. Matt e eu estamos caminhando pela vizinhança, sussurrando no meio da noite às duas da manhã. Eles iam viajar para a Califórnia dali a dois dias e, depois disso, teríamos um mês antes de ele se mudar para Cornell. Tentei não pensar nisso; tentei não contar os dias até ele ir embora ou os dias até visitá-lo ou os dias até ele estar em casa para as férias. Uma hora não era muito tempo, mas todos tínhamos escola e não podíamos ir até lá sempre que quiséssemos. Nada mais de mensagens de texto para se encontrar no meio da noite. Nada mais de deixar cair o açúcar apenas para ter uma desculpa para correr para a porta ao lado depois do jantar.

Você falava na faculdade desde que éramos crianças, Matt.

Eu sei, mas você não vai estar lá. Tudo vai ser diferente.

Não aqui. Seremos os mesmos.

E se eu voltar e estiver diferente, Anna? Às vezes você vai a um lugar onde tudo é diferente e tudo o que você conhece muda, e ninguém o vê do mesmo jeito.

De jeito nenhum. É tudo o que posso dizer. E depois o beijei.

Eu não sabia o que ele queria dizer naquela época. Achava que estava sendo sentimental, só preocupado por deixar sua casa pela primeira vez. Para Frankie, Red e Jayne, ele estava confiante e preparado, nascido para a faculdade, para ler e escrever e alcançar grandes desafios. Mas eu sabia que ele tinha medo. Era uma mudança tão grande — estar longe de mim e de Frankie, longe do trio inseparável, longe de sua família. Para ser sincera, eu estava tão assustada por vê-lo partir quanto ele mesmo, mas, naqueles momentos vulneráveis em que ele confessava suas inseguranças sob as estrelas, eu não concordava. Não conseguia fazer nada além de encará-lo e segurar suas mãos, esperando que ele soubesse no que eu estava pensando — que eu nunca o olharia de forma diferente ou sentiria outra coisa diferente do que senti naqueles momentos fugazes.

Agora, sob as cobertas e escrevendo para um fantasma em meu diário, sei o que ele queria dizer. Estou na Califórnia há pouco mais de uma semana e já estou diferente. Tudo em mim parece diferente. Dói lembrar de Matt, reviver seus cartões-postais, tentar ao mesmo tempo lembrar e esquecer sua voz. Estou lutando contra isso todos os dias.

Não consigo deixar de pensar em Sam.

E Frankie não tem ideia disso.

São dez e meia, Red e Jayne estão afinal dormindo. A hora da fugida se aproxima. Frankie está ansiosa para voltar aos braços de Jake, mas não estou pronta para ver Sam esta noite.

— O que houve? — Frankie pergunta, com gentileza surpreendente. — Você estava toda interessada nele na noite passada. Não quer ir?

Fecho meu diário e dou de ombros, sem saber como explicar. Ela se senta com os pés na borda de minha cama.

— Anna, aconteceu alguma coisa?

Penso na pergunta dela. Sim, alguma coisa aconteceu. Sam me beijou e foi louco e intenso, e até melhor do que foi com Matt, e agora quero que aconteça de novo. Pronto, é isso. Mas não digo nada.

— Não, não aconteceu nada. Só não quero assustá-los, é isso — convenientemente omito o restante. — Se continuarmos aparecendo todos os dias e noites, eles vão pensar que estamos desesperadas.

— E você não está? — ela provoca, arqueando as sobrancelhas para cima.

— Claro — sorrio. — Só não esta noite.

Frankie meneia a cabeça, brincando com o bracelete vermelho em seu pulso. Isso me rende uma noite, mas outro dia não fará mal também.

— Frankie, não passamos nenhum momento sozinhas durante esta viagem. Por que não acordamos cedo amanhã de manhã e vamos a algum lugar sem os meninos? São Francisco, talvez?

— Uau. Você não quer mesmo parecer desesperada.

— Só acho que seria legal sair da praia um pouco. Ainda temos duas semanas para sair com Jake e Sam. — O nome dele entala em minha garganta, e eu espero que Frankie não perceba minha pele se avermelhar.

Ela considera minha ideia e concorda.

— Há um ônibus que vai até a cidade — diz ela. — Mas meus pais nunca nos deixarão ir sozinhas, e eu não quero passar o dia inteiro com eles. Passei tempo demais com a família hoje, e valeu pelo resto da viagem.

— Então. Eles também não nos deixam sair à noite, mas fazemos isso.

— Bom argumento — Frankie admite. — Não está na hora de a Jackie nos convidar para passar o dia no barco? Com os pais dela, claro.

Talvez seja a única vez que Frankie me chama de brilhante, mas é o que ela faz. Assim, desligamos as luzes e nos cobrimos, com as rodas da Operação São Francisco em movimento.

Na manhã seguinte, acordo às sete, enquanto Red e Jayne saem para sua caminhada matinal. Pego meu diário e vou até a cozinha, esperando terminar de escrever sobre as noites anteriores e retrabalhar o restante da culpa que continua a revirar em meu estômago antes que Frankie acorde.

Preparo uma xícara de chá-verde em silêncio, procuro uma barrinha de cereais e vou para a varanda descalça, fechando a porta atrás de mim com toda a cautela.

A manhã é perfeita. Bem cedo, e só os atletas estão na rua, o que me dá uma vista até certo ponto intocada do mar. Abro minha barrinha e apoio os pés na cadeira ao lado, fazendo uma anotação mental para levantar cedo com mais frequência.

O cheiro do chá me faz lembrar de papai e da mamãe no jardim, trabalhando lado a lado, retirando as ervas daninhas sem conversar e ainda assim se comunicando — como eu estava vendo com meus olhos fechados na noite anterior com Sam. Não consigo imaginar mamãe e papai no mesmo pensamento comigo e Sam, por isso ignoro tudo, me perguntando o que eles estariam fazendo a milhares de quilômetros e três horas à frente. Enviei-lhes um cartão-postal de Alcatraz e falei com eles alguns dias atrás pelo telefone. Suas vozes estavam leves e distantes ao me falarem da última venda do papai e do jardim, negócios sendo fechados, ervas daninhas crescendo e a vida seguindo sem mim.

Fecho os olhos e tomo o chá, permitindo que Sam se insinue outra vez em meus pensamentos. O sol cai quente em minha cara, em raios alaranjados e amarelo-limão, lembrando-me das mãos dele enquanto fechava minhas pálpebras e me ensinava a ver as coisas de uma forma toda nova. É ao mesmo tempo uma lembrança dolorosa e incrível, mas me obrigo a voltar lá em pensamento, revivendo cada instante, cada toque, cada respiração. Quase posso sentir os lábios dele em minha boca de novo quando...

está você! — surpreende-me Frankie, interrompendo meus pensamentos como um elefante. — Por que não me acordou?

— Achei que você tinha me ouvido sair da cama — minto, esperando não parecer irritada demais.

— Anna — ela diz, tirando fios de cabelo da camiseta e os deixando cair no chão. — Você precisa me acordar, senão eu morro para o mundo e olha só o que acontece. Você tem de passar a manhã sozinha.

— Tá bom. — Fecho a história inconclusa em meu diário. — Trágica.

— O que você vai vestir hoje?

— Para quê?

— Anna! — ela suspira. — Você realmente me provouca às vezes!

— Você quer dizer “provoca”.

— Hum?

— Que eu a provoco.

— Foi o que eu disse! De qualquer forma, São Francisco, lembra?

Ah, isso. Enquanto estava em minha manhã pré-Frankie, tinha meio que me esquecido disso. De minha diversão em São Francisco.

— Tenho certeza de que você vai pegar algo legal para mim — digo enquanto ela volta para a cozinha a fim de pegar algo para o café.

Eu a observo pela porta. Sob o barulho de suas mãos na gaveta dos talheres, o baque da colher no prato de cereal, o bangue da porta do armário reagindo a sua mão descuidada. Frankie cantarola uma música de nossa infância. Pega uma caixa de cereal do armário, leite e uma lata de Diet Coke da geladeira, cantando baixinho, sem se dar conta da audiência.

If you could, would you ask

for moonbeans in a heart of glass?

For sun rays on the silver sea?

Or would you ask for me?”[3]

Eu não pensava naquela música há tempos. Quando estávamos na quarta série e Matt na sexta, fomos assisti-lo no espetáculo da escola Music Moves Me. Meus pais e eu nos sentamos com Frankie e Jayne, enquanto Red ficou na fila do fundo com outros pais filmando o musical para horas futuras de tortura familiar.

Agora me lembro como se tivesse acabado de sair do auditório. Matt fez um solo em “Ask For Me”. Ele usava smoking com uma faixa cheia de lantejoulas. As crianças menores estavam vestidas de sereias e peixes. Matt cantou o refrão e deixou que os colegas ocupassem o palco para cantar o restante. A maioria esqueceu a letra, por isso Matt continuou cantando como se fosse o papel dele.

Às vezes olhar para Frankie era como ver Matt por entre um copo com água — uma composição distorcida dele com todas as partes certas, mas misturadas e na ordem errada. Ao observá-la cantar aquela música, não consigo me livrar da sensação de que ele apareceu só para dizer olá.

Frankie apanha pratos e comida e continua a cantarolar. Quando afinal me flagra espiando, para e ri, e por um instante eu a vejo — não a composição distorcida de Matt, e sim a Frankie real, aquela que assava biscoitos para mim quando eu estava triste, aquela que pegava flores para sua mãe no caminho de volta da escola, aquela que se envergonhava ao ser surpreendida cantando.

— Não preste atenção em mim — ela diz baixinho, fingindo uma tosse.

— Não estava ouvindo — minto. — Acabei de ouvir você.

Ela coloca o básico do café da manhã na mesa e começa a refeição com um punhado de cereal. Satisfeita com a magnitude da sua fome, enche a tigela e derrama leite por cima.

Odeio o excesso de leite mais que qualquer outra idiossincrasia do café da manhã, mas Frankie é incapaz de tomar seu café de outra forma.

— Tenho quase certeza de que o ônibus para São Francisco sai a cada duas horas aos domingos. — O leite se acumula nos cantos de sua boca enquanto a colher mergulha para outro bocado de cereais, como uma garça pescando. — É tipo uma viagem de duas horas e meia. Podemos pegar o ônibus das dez e passar o dia lá.

Ao longo de nossas férias eu meio que me acostumei a mentir para Red e Jayne a fim de passar duas ou três horas a mais com Sam e Jake na praia. Não era uma grande mentira. Ainda estávamos na mesma praia, só alguns metros distantes de onde eles achavam que estávamos.

A viagem para São Francisco foi ideia minha, mas mentir para Red e Jayne por um dia inteiro parece pior do que nossas mentiras anteriores, ainda mais porque estaremos a cem quilômetros de onde deveríamos estar.

— Por que não voltamos antes do jantar? — pergunto. — Daí seus pais não ficarão desconfiados.

Frankie quase deixa cair a colher diante de minha sugestão.

— Deus, Anna. Você é tão provoquial às vezes!

— Paroquial. — E não, não sou. Só acho que não deveríamos...

— Olha, falar sobre o barco de Jackie foi ideia sua. Se voltarmos para o jantar vai parecer falso. Passear de barco é coisa para o dia todo. Além disso, tenho certeza de que os pais de Jackie nos convidarão para o jantar.

— Acho que sim.

— Vamos lá, Anna. Você está certa. Precisamos passar um tempo juntas. Agora termine aí e vamos nos preparar. Temos de ficar ótimas hoje.

Pego meu diário, a caneca e a embalagem da barrinha de cereais, olho para o céu e amaldiçoo o Deus das Férias de Verão por me deixar entrar nesta coisa toda de me livrar do albatroz, de Sam e da confusão para ajudar Frankie.