O pânico começa nos dedos de meus pés e logo sobe pelos pés e joelhos, de modo que preciso me sentar no banco de metal no ponto de ônibus. Antes que o medo alcance meu já tumultuado estômago, respiro fundo, pego o celular e ligo para a central de informações.
— Smoothie Shack — digo. — Baía de Zanzibar.
Frankie e eu nos escondemos numa cafeteria, atrás do ponto de ônibus, e esperamos. Duas horas mais tarde, um carro para diante de nós. Sam abre a porta do passageiro e corre em nossa direção, segurando uma das mãos sobre o rosto para se proteger da chuva, que agora cai meio que de lado. Seu avental verde da Smoothie Shack se prende na parte de baixo de sua blusa vermelha e eu me arrepio quando penso em tirá-lo e me envolver nele. Seus cabelos se emaranham na chuva, como acontece quando ele está dentro do mar, e, ao me segurar num abraço molhado, não lembro por que o estava evitando.
Sam nos acompanha até o carro, deixando o banco do passageiro para Frankie e entrando comigo atrás.
— Estávamos nos perguntando sobre vocês duas — diz Jake ao sair para a rua.
Antes que Frankie diga alguma coisa para me envergonhar, falo que estávamos ocupadas demais fazendo coisas de família e queríamos vê-los esta noite, mas, como ficamos em São Francisco mais tempo do que prevíamos, não podíamos correr o risco de dar uma escapada.
Eles riem quando lhes contamos sobre nosso dia, tirando sarro da câmera de Frankie, da mudança mágica no vestiário e terminando com a falta de ônibus e o telefonema desesperado para a lanchonete Shack. Por sorte, o amigo de Sam pôde cobrir o turno dele.
— Vocês ainda deveriam vir hoje à noite — diz Jake. — Mesmo que a chuva não pare. Ficaremos na varanda da Shack. Ninguém estará por perto.
— Nós devemos ir — diz Frankie. Enquanto a perna de Sam se esfrega na minha no banco de trás, eu concordo. Ela podia prometer matar e esconder o corpo de alguém; bastaria Sam me manter aquecida para eu fazer o que fosse preciso.
Depois de quase duas horas na estrada, chegamos à placa de boas-vindas de Zanzibar. Jack para diante da piscina comunitária para que possamos nos vestir de novo com nossas roupas de passeio de barco.
Infelizmente, o universo quer nos ensinar outra Importante Lição Sobre Segredos e Mentiras, e a piscina comunitária — assim como seu vestiário — está fechada. Trancada. Luzes desligadas. Obrigada, por favor voltem amanhã.
— Vocês podem dizer que enfrentaram uma onda gigante e molharam todas as suas roupas, de modo que tiveram que usar as das amigas — diz Jake.
— Melhor ainda — diz Sam. — Digam que alguém caiu no mar e vocês tiveram de pular na água para salvá-lo.
— Ou que o barco virou e vocês tiveram de usar suas mochilas para flutuar até que a guarda costeira aparecesse.
— Ou...
Frankie ergue a mão para impedi-los de falar sobre bombas ou agentes antidrogas ou qualquer outra fantasia à la James Bond.
— Ou podemos dizer apenas que voltamos mais cedo por causa da chuva, trocamos de roupa na casa de Jackie e ficamos para um churrasco, deixando as roupas aqui por acidente.
Ensaiamos a história de novo antes que Jake e Sam nos deixassem a poucas casas da nossa. Senão, os pais de Frankie podiam nos ver saindo de um carro cheio de meninos estranhos e querer convidá-los para tomar chá com biscoitos. Teríamos de fingir que eles eram os irmãos supergays e responsáveis de Jackie e Samantha, meninos que não gostavam de meninas e que “por coincidência” tinham quase os mesmos nomes das irmãs. Que pais malucos!
Os caras estacionam e saem do carro para se despedir. Fazemos planos hesitantes de nos encontrar à meia-noite no Shack, presumindo que consigamos nos sair bem da situação. Dessa vez, depois que Sam me beija e nos separamos, o calor do corpo dele permanece no meu, bloqueando o frio como um cobertor numa manhã nevada de sábado no leste.
Vou vê-lo hoje à noite, custe o que custar.
O carro se afasta e observamos as luzes de freio se acenderem no sinal antes de virar a esquina. Frankie e eu andamos os quinze metros até a casa, ensaiando nossa história mais uma vez para que ela tenha consistência. Red e Jayne não estariam na cama — eles jamais dormiriam antes que Frankie e eu estivéssemos em casa, em segurança. Mas se hoje é uma boa noite para assistir televisão, há uma chance de conseguirmos entrar sem sermos notadas, subir as escadas, nos escondermos no banheiro para tomar banho e vestirmos o pijama, tudo sem que eles façam muitas perguntas. Faço um pedido ao Deus da Televisão e abro a porta da cozinha.
Deveria pensar melhor antes de invocar o universo quando na verdade ele está mais é disposto a nos dar lições de moral. Hoje é um péssimo dia para assistir à televisão na região da baía, e Red e Jayne estão nos esperando na cozinha, tomando chá, jogando baralho e ansiosos por ouvir sobre as aventuras das meninas piratas no mar.
— Uau, vocês caíram na água? — pergunta Red. Banhadas pela luz fluorescente da cozinha, parecemos duas criaturas do mar pegas por uma rede. Faltam apenas estrelas-do-mar, algas e cracas.
— Voltamos andando da casa da Jackie — Frankie explica. — Queríamos nos molhar na chuva.
— Vocês ficaram na água hoje? Mesmo com este tempo? — Jayne pergunta.
Frankie dá de ombros.
— Em parte. Não ficamos tanto tempo quanto queríamos. Mas o pai dela nos convidou para um churrasco na casa, e ainda assim foi divertido.
— Onde estão suas roupas desta manhã? — pergunta Jayne, olhando-nos com desconfiança.
Por que as mães sempre notam essas coisas? Tio Red está sentadinho lá com seu chá, segurando as cartas do baralho, esperando com toda a paciência até que tia Jayne volte para o jogo. Mas ela está nos avaliando. A qualquer instante vai soltar um suspiro, pegar o telefone e dizer a minha mãe como sua filha é malcriada.
Frankie se mantém tranquila sob a pressão da mãe e repete a história como a praticamos. O passeio de barco prematuramente interrompido por causa do tempo. De volta à casa para o jantar. Roupas trocadas porque se molharam na chuva. Os pais de Jackie se ofereceram para nos trazer de volta para casa (porque eram pais muitomuitomuito responsáveis e preocupados), mas nós recusamos, insistindo em andar na chuva porque estava quente. Nós nos divertimos tanto com Jackie, Samantha e suas famílias que nos esquecemos de nossas roupas — mas as pegaremos amanhã pela manhã. Por sinal, se eram mesmo biscoitos de limão no prato diante do papai, será que poderíamos pegar alguns?
Jayne pegou os biscoitos na mesa para expressar empatia por nosso passeio de barco, que acabou cedo demais por causa de uma tempestade.
— Mas parece que vocês ainda assim se divertiram.
Nós lhe garantimos que sim, pegamos mais biscoitos e corremos para o quarto, onde fechamos a porta e explodimos em risadas.
— Pais... — Frankie diz, com a boca cheia de migalhas de biscoito — Eles acreditam em qualquer coisa.
— Talvez os seus. — Tiro as roupas molhadas, visto uma bermuda e um moletom, afastando o frio da chuva. — Você sabe que Helen e Carl jamais nos deixariam sozinhas. E um passeio de barco com estranhos? Eles exigiriam os números de telefones para ligar antes e verificar os fatos de nossa história com um adulto responsável, iriam exigir uma contagem precisa dos salva-vidas disponíveis a bordo, depois ligariam para a guarda-costeira a fim de garantir que haveria alguém cuidando de nós.
— Nem me lembre — Frankie dá de ombros. — Então, quanto tempo até sairmos?
— Talvez duas horas — digo. — Precisamos descer e parecer cansadas até seus pais irem para a cama. Sabe, estar num barco o dia inteiro é cansativo.
— Anna, você está se transformando numa menina levada.
— Ah, não sou a Anna de sempre — eu garanto. — Sou a Louca Anna, a do espelho. Tudo culpa sua.
Frankie ri. Acho que ambas gostamos da Louca Anna um pouco mais do que da Anna normal. É como mágica — enquanto estava experimentando biquínis no mês passado ela resvalou em meu traseiro e deu origem ao Gênio do Biquíni do M.V.T.T., realizando todos os meus desejos.
— Isso me lembra... —Frankie começa, trocando de roupa. — Acho que devemos alterar as regras do concurso. Nossas férias já passaram da metade e não chegamos nem perto.
— Não planejamos Sam e Jake. — Sento-me na beirada da cama enquanto ela retoca a maquiagem para nosso encontro no sofá lá embaixo.
— Não. Quero dizer, ainda podíamos conseguir mais dez, mas não quero ficar muito à sua frente. Você gosta mesmo do Sam, não é? Dá para ver — ela diz enquanto passa o delineador.
— Talvez — dou de ombros. — Mas e daí? Você também gosta de verdade do Jake.
— Ele é legal. Acho que vamos... você sabe. Hoje à noite.— Ela joga o rímel na penteadeira e mexe a cabeça para balançar os cabelos, como se tomar essa decisão não fosse mais complicado ou importante do que escolher entre granulado ou recheio no rótulo da caixa de rosquinhas.
— Frankie, você está falando sério?
— Pode ser — ela meio que ri, como se o demônio estivesse sentando em seus ombros, aquele dos velhos desenhos animados. Um demônio mais bonitinho do que assustador e, portanto, que causa mais destruição e caos.
Eu a encaro com a boca aberta, mas detalhes adicionais não estão disponíveis. Em vez disso, ela revê seu rosto no espelho, limpa o excesso de batom com um lencinho e nos leva para baixo, para o Ato Dois, no qual a filha e a amiga fazem uma interpretação digna de Oscar de duas meninas sonolentas, deixando todo o temor de comportamento ilícito para lá.
Duas horas mais tarde, ao sairmos pela varanda, com câmera, toalhas de praia e a lanterna de confiança, descobrimos o anteriormente não resolvido e potencialmente perigoso furo na trama.
— Não conseguem dormir, meninas? — tia Jayne pergunta do escuro, entre as sombras solitárias do mar, usando uma manta de crochê sobre os ombros contra a brisa.