Capítulo 24

Caminhamos pela praia ao nascer do sol, de braços dados, as cabeças baixas, verificando a areia úmida que passa sob nossos pés. Meus bolsos ficam mais e mais pesados a cada pedaço de vidro do mar que coleto — verdes, azuis, brancos e cor de âmbar. Depois de três semanas na praia, ainda me sinto maravilhada ao notar que coisas que já foram um todo, já fizeram parte de alguma outra, possam se quebrar e cair no mar, viajar milhares de quilômetros e acabar aqui, passageiras nos bolsos de meu moletom branco.

O restante da praia ganha vida, preparando-se para os turistas matinais. Os funcionários dos hotéis andam pela praia como formiguinhas em bermudas cáqui e camisas polo em tons pastel, limpando, endireitando as coisas, se antecipando. Enquanto os guarda-sóis bocejam e espreguiçam suas pétalas brancas e amarelas contra o sol, Sam sorri para mim.

— Está tudo bem, Anna? — ele pergunta.

Enfio as mãos nos bolsos, sentido os vidros frios e lisos entre meus dedos, me lembrando de algo que lera numa das lojas de ninharias na Moonlight Boulevard com Frankie e Jayne.

— Dizem que os vidros do mar são lágrimas de uma sereia apaixonada — comento. — Ela foi banida para o fundo do oceano por toda a eternidade pelo Rei Netuno porque se apaixonou pelo capitão de um navio e o salvou de uma tempestade.

Sam faz que sim.

— É, já ouvi isso. Há todo tipo de história como esta por aqui. Mas às vezes você tem que ver as coisas apenas como elas são e admirá-las, sem rotulá-las ou explicá-las. As explicações acabam com o mistério, não é?

— Acho que sim. — Abaixo-me para pegar um vidro azul-turquesa que vejo sob meus dedos, e é então que vejo, escuro e profundo, emergindo da areia molhada. — Ah, meu Deus, olhe!

Levanto-me e estendo a mão para que Sam possa ver.

— Uau — ele diz, pegando o vidro do mar e o erguendo contra o sol. — O vermelho é tipo a cor mais rara que existe. Você tem muita sorte de tê-lo encontrado.

Pego o vidro do mar vermelho-escuro da mão dele e sorrio, olhando para o oceano. Eu havia dito a Matt em minha carta, antes de sairmos de Nova York, que encontraria um vidro assim só para ele. Mas, agora que ele está aqui, brilhando em minha mão, sei que Matt gostaria que eu fizesse outra coisa com ele.

Eu o ergo sobre a cabeça e o jogo o mais longe que consigo no mar.

Que outra pessoa tenha seu dia de sorte, Anna.

Sam ri.

— Ei, louquinha, por que você fez isso? É bem capaz de você não encontrar nada parecido pelo resto da vida.

— Certo. Mas eu vi. E agora outra pessoa também poderá vê-lo.

— Não entendi.

Dou de ombros e sorrio.

— As explicações tiram a graça da coisa, certo?

— Hummm, certo. — Ele ri e me dá um abraço quente.

Andamos o restante do caminho até a casa de Eddie de braços dados, um cansaço feliz ameaçando nos superar. Minha pele se arrepia com o friozinho da manhã, mas estou quente e leve por dentro, tonta pela falta de sono, pela maneira como me sinto perto de Sam e pelo episódio do vidro do mar vermelho — sinal do universo ou não.

Ao nos aproximarmos da casa, cabelos castanhos surgem na escadaria que leva até o jardim dos fundos. Quando vejo a camiseta azul, reconheço-a.

— É a Frankie. Ela deve ter esperado por mim ou coisa do gênero. Onde será que está o Jake?

— Ele ia dar aula logo cedo, deve ter ido embora. Por falar nisso, tenho que estar no trabalho dentro de três horas. Tenho turno duplo esta noite.

— Você mal consegue ficar de pé! — Empurro-o de leve, desequilibrando-o para provar meu argumento.

— Não. Só preciso de uma hora de sono e de um pouco de café. Vou ficar bem.

— Tá bom — Aceno para Frankie. Ela está sentada na escada nos olhando, esperando que eu preste atenção nela.

— Nós vamos vê-las mais tarde? — pergunta Sam.

— Talvez passemos por lá para tomar smoothies. Se não, com certeza nos veremos hoje à noite. — Ele sorri e me abraça, beijando-me nos lábios e na testa antes de seguir pela praia, e eu me pego sorrindo.

Só porque posso vir a.

Amá-lo.

Para sempre.

A julgar pelo lixo no pé das escadas, a festa migrou do jardim para a praia depois que saímos. Ando por entre garrafas e pratos de papel até alcançar Frankie. Ela tem a cabeça apoiada na mão sobre o corrimão e parece que dormiu quase tanto quanto eu.

— Ei — digo, esperando que ela note algo diferente em mim. — O que você...

Você — Ela não se move ao falar e não há nada de cálido ou feliz em seu tom de voz. — Fique longe de mim.

— Frankie, do que é que você está falando? — Tento me lembrar de algo que eu tenha feito ou dito na noite anterior para irritá-la, mas nada me vem à mente. Ela estava bem quando saí com Sam. E fazer eu me livrar do A.A. era sua missão. — O que há de errado com você?

Ela se ergue para me encarar. Sua expressão, assim como sua voz, é vazia e plana. A maquiagem preta e seca mancha a pele sob seus olhos. Na mesma hora meu coração se encolhe.

— Frankie, o que aconteceu? Foi o Jake? Aconteceu algo com ele? Ele a machucou?

Ela me encara sem piscar, a respiração calma. Seus olhos estão mais do que irritados. Mais do que magoados. Mais do que preocupados.

Eu só a vi assim numa outra ocasião: na recepção do hospital, quando o médico saiu com o capelão para nos dizer que não haviam conseguido salvar Matt. A mãe dela desmaiara e o pai, segurando um saco cheio de coisas de Matt, gritara “Não! Não! Não!” repetidas vezes. Frankie só ficou olhando para eles, com a mesma expressão fantasmagórica, sem fazer barulho algum, apenas as lágrimas rolando pelo rosto.

— Frankie, fale comigo. Aconteceu alguma coisa na festa? O que está havendo? Devemos ligar para alguém? — Minha voz está trêmula e rápida. Se a tocar, ela pode se estilhaçar. Queria que Sam estivesse aqui. — Por favor, fale comigo.

Arrisco-me e coloco a mão sobre seu ombro, acionando um botão invisível. Ela recua, voltando a seu corpo de onde quer que estivesse. Seus olhos vibram, raivosos. Seu rosto fica vermelho e seus ombros tremem com violência, mal contendo o conflito dentro dela.

— Falar com você? Falar com você? — ela pergunta. — Certo, vou falar com você, Anna Reiley. Então, onde você estava na noite passada? — Sua voz é fina e forçada, tirando sarro de mim.

— Frankie, estava com Sam na Vista. Eu lhe disse isso antes de sair. Lembra?

— Com ele? Tipo, com ele mesmo?

De repente, sinto-me envergonhada. Não esperava que minha melhor amiga reagisse daquele jeito quando lhe contasse sobre a noite passada.

— Estava tentando lhe contar...

— Ah, por favor. Deixe isso para lá. Você não vai me contar esse tipo de merda.

Frankie, você sabe que eu não esconderia uma coisa dessas de você.

— É mesmo — ela diz, em vez de perguntar. — Assim como você me contaria sobre isto? — Ela então pega algo atrás de si e esfrega em meu rosto, suas mãos esbranquiçadas e trêmulas. Quando vejo o retângulo roxo, demoro um minuto para perceber o que é, para juntar as coisas. É como quando tia Jayne reorganizou o quarto de Frankie pela última vez. Todas as suas coisas ainda estavam lá, mas não da forma como deveriam estar. Nós acordávamos e nos esquecíamos de onde estavam as coisas.

A imagem dos dedos bronzeados de Frankie em torno de meu diário parece um filme de ficção científica. Aqueles são mesmo seus dedos. Aquele é mesmo meu diário. Mas a justaposição dos dois objetos antes desconectados não pertence a esta dimensão.

— Este é o meu... meu... — Não consigo falar. Meus joelhos tremem. Aquela velha sensação irascível sobe pelas minhas costas e nuca. O som das ondas na praia é amplificado. Sinto o sangue correndo das minhas veias para o coração. Estou hipersensível. Em câmera lenta. Culpada e com raiva.

Jogo-me contra ela para pegar meu diário, mas ela é mais rápida e recua, rumo à água.

— Eis aqui um bom texto — ela lê de um registro aleatório. — “Querido Matt, há tanto quero lhe falar. Todos os dias algo acontece na escola e eu quero voltar para casa e lhe contar, mas não posso”. Ou que tal este? “Querido Matt, às vezes me pergunto se algum dia vai deixar de doer.”

Frankie está folheando as páginas, gritando meus temores e sonhos para o vasto oceano, liberando-os de suas prisões do papel e me partindo em pedacinhos.

— Frankie, por favor, pare! — digo num sussurro.

— “Querido Matt, sua irmã está fora de controle. Queria que você estivesse aqui... Não sei como ajudá-la. Na noite passada ela saiu com esse cara da escola e foi até o campo de futebol e...”

— Pare! — tento gritar, mas ainda sai como um sussurro.

— Você acha que sabe de tudo? — ela grita. — Para sua informação, não dormi com Johan! Fomos até lá, mas ele não quis ficar comigo.

— O quê?

— Nada aconteceu. Não dormi com ele! E, já que estamos falando a verdade, também não dormi com Jake. Está feliz agora? Quer escrever isso no seu caderninho?

Não acredito no que estou escutando. Abro a boca para dizer algo frio e raivoso, mas nada sai. Tudo o que consigo fazer é tentar pegar meu diário, meus pensamentos escritos como os filhos perdidos de minha alma.

Frankie recua mais um passo, ainda folheando as páginas.

— “Querido Matt, enfim chegamos à Califórnia, e é exatamente como você me falou. Sinto que você está aqui com a gente — e acho que a Frankie sente também.” Como você ousa escrever sobre mim aqui? Como você ousa escrever para o meu irmão? Você acha que só porque saíram algumas vezes ele se preocupava com você? Você acha que ele não a teria dispensado assim que encontrasse uma menina nova na Cornell? Se liga!

As lágrimas rolam quentes em meu rosto. Minha garganta se fecha. Meu coração está partido e eu estou paralisada por inteiro.

Frankie puxa a capa e tenta retirá-la da espiral de metal, conseguindo apenas em parte. A capa pende na brisa como uma asa quebrada, revelando a imagem para a qual olhei todas as noites desde a morte dele. O braço de Matt sobre meus ombros, pedaços de bolo e doces coloridos e grama presos às nossas roupas e cabelos, tudo quente e rosado sob o pôr do sol, o verão todo se estendendo diante de nós.

Depois que ele morreu, passei horas olhando para aquela fotografia, reproduzindo a festa em minha mente, desejando que as imagens bidimensionais ganhassem vida, que nos levassem de volta para lá. Podíamos contar a Frankie na mesma hora. Podíamos estar juntas. Podíamos deixar a Custard’s de lado e ir direto para o hospital e pedir que salvassem Matt antes que algo ruim acontecesse.

Pigarreio e encontro minha voz de novo, mais firme desta vez.

— Devolve, Frankie. Você não tinha o direito de ler isso e não tem o direito de rasgar. Devolve.

Ela me olha com seus olhos loucos e perdidos.

— Não, acho que não.

Estou desesperada.

— Frankie, por favor devolve meu diário. Por favor. Desculpe não ter lhe contado, mas é tudo o que me resta de...

— Anna, ele era meu irmão. Meu. Você não tem o direito de ter nada dele! — Ao dizer isso, ela dá as costas para mim e caminha para a praia, arqueando seu braço para trás, a mais rara lágrima da sereia brilhando em seu bracelete, como o vidro que devolvi ao mar há pouco tempo.

— Frankie, não! — Corro na direção dela, mas minhas pernas parecem pesadas como se eu estivesse paralisada num terrível pesadelo. Eu a alcanço e agarro a parte de baixo de sua camiseta, derrubando-a na areia.

Mas o diário não está mais em suas mãos.

Ele está no ar, caindo na água com um simples plop.

Ele flutua por um instante, indo e vindo na corrente, dando-me uma última chance de recuperá-lo. Levanto-me e corro para a água, atravessando a maré com braços e pernas pesados, nadando e me esticando para pegá-lo.

— Anna! Deixe-o! Deixe-o ir! —Frankie grita, de joelhos na água.

Ainda nado em direção ao diário, mas a corrente é forte demais, puxando minhas pernas e braços e queimando em meus pulmões até que eu não consigo mais manter a cabeça acima da água sem lutar. À medida que nado em direção ao raso, a maré afasta por completo o diário, contornando-o, dando tempo apenas de eu dar uma última olhada em suas páginas antes que elas mergulhem nas profundezas do mar revolto.

Meu coração se parte em milhares de pedacinhos, cada qual batendo separado e de maneira dolorosa.

Eu o perdi de novo.

Quando saio da água, sento-me na praia, coloco a cabeça entre as mãos e choro até não aguentar mais. Não me importo com o que Frankie pensa. Não me importo se os convidados da festa ou os funcionários do hotel me virem. Não me importo nem mesmo se Sam voltar e me encontrar, de olhos inchados, o nariz escorrendo e o coração partido.

Minha melhor amiga está encolhida na areia a meu lado como uma boneca de papel.

Minha virgindade se foi.

O mar engoliu meu diário.

E eu preciso me esforçar muito para não mergulhar e segui-lo até o fundo do mar, perdido em toda a eternidade, como a sereia apaixonada e banida.