— Anna, o que houve? O que aconteceu?
— Frankie... e... eu... Não estamos. Nos falando. — As palavras saem numa série de soluços.
— Vocês brigaram?
Faço que sim, abrindo a boca para lhe contar, mas meu cérebro intercepta um telegrama urgente: Ei, sua boba. Pare. Sam não sabe sobre Matt. Pare.
— Há muita coisa que não lhe contei, Sam. Não sei nem por onde começar.
Afasto-me e me apoio contra o corrimão do deque para respirar fundo, observando a lua sobre o mar. Queria que tudo fosse diferente. Queria ser outra pessoa. Anna, a viajante transcontinental, mulher de paixões e aventuras! Não a Anna patética amiga que quebra promessas e escreve cartas para meninos mortos.
— Vamos caminhar — ele diz, a mão quente e confortadora sobre meu ombro. — Quando você se sentir melhor, pode me dizer o que quiser.
— Certo.
Andamos até a casa do Eddie antes de eu me tranquilizar o suficiente para começar a falar.
— É uma história longa e louca, Sam.
— Tudo bem, Anna Abby. Estou aqui.
— Certo. Então... Há mais de um ano, havia um cara. Eu gostava mesmo dele. Digo, de verdade, desde criança.
— A Frankie o conhecia?
— Nós três éramos grandes amigos. Pode-se dizer que crescemos juntos.
— Complicado.
— Muito. De qualquer modo, no ano passado, no meu aniversário, ele enfim me beijou. — Sam fica quieto, focando em seus pés sobre a areia. É estranho falar sobre isso por vários motivos, mas as palavras estão vindo rápido demais para que eu as detenha, mesmo que quisesse. — Começamos a nos ver o tempo todo, mais do que antes. Todas as noites. Só não sabíamos como dizer à Frankie, porque não queríamos que ela enlouquecesse ou se sentisse excluída ou coisa parecida.
— Faz sentido — diz Sam.
— Ele achava que seria melhor se ele mesmo contasse, por isso eu lhe prometi que não diria nada. Mas, antes que ele pudesse contar a ela, ele... — quase engasgo, pousando a mão sobre o braço de Sam para deter nosso caminhar pela praia.
— O que ele fez? —Sam pergunta.
— Ele só... ele... desculpe. Espere. — As palavras dessa história se passaram milhares de vezes de minhas mãos para as páginas de meu diário, mas nunca de meus lábios para os ouvidos de outro ser humano. Respiro fundo antes de ser capaz de encarar Sam e dizer. — Ele morreu, Sam. Ele morreu por causa de uma doença cardíaca sobre a qual ninguém sabia.
Conto-lhe sobre o acidente de carro e espero pela desculpa automática, o gaguejo esquisito, o silêncio, o “adeus, não consigo lidar com isso”. Mas Sam só enxuga meu rosto com seus dedos e me abraça.
— Mantive minha promessa para ele. Nunca contei a Frankie sobre nós. Mas, quando estávamos na Vista, na noite passada, ela leu meu diário e descobriu tudo.
Sam se afasta de mim.
— Espere aí. Ela está com raiva de você por causa disso? Mas e quanto...?
— Tem mais, Sam. — Balanço a cabeça. — Frankie estava no carro também. Foi por causa do acidente que ela ficou com aquela cicatriz na sobrancelha. Nós três éramos inseparáveis. Matt é... Matt era... ele era irmão de Frankie.
Sam me encara, de olhos e boca abertos.
— Cara... quero dizer, uau.
— Ele ia contar para ela durante as férias aqui, quando tivessem algum tempo a sós. Ele estava tão preocupado com ela... Queria ter certeza de que ela ficaria bem com a notícia. Era para eles partirem, tipo, um mês depois que ficamos juntos. Eu odiava fazer as coisas escondido dela, mas prometi a ele. Um mês não parecia muito tempo para manter um segredo.
Quando ele morreu, acabou. Tudo o que eu sentia deixou de importar. Frankie perdera seu irmão e eu era a melhor amiga deles. Era simples. Eu ia manter o segredo para sempre. — Respiro fundo, olhando nos doces olhos de Sam.
— Anna, não acredito nisso. Não sei o que dizer. Não tenho a menor ideia.
— Frankie e eu não queríamos contar para vocês. Era para ser... você sabe, diferente aqui.
— Como assim?
— É difícil explicar. Acho que as pessoas se assustam com a coisa toda da morte, e, uma vez que sabem disso, ela se torna, tipo, a única coisa à qual elas a associam, e tudo o que são capazes de sentir é pena. Sua existência toda se resume a esse evento.
Uma nova onda de tristeza me invade quando penso naquelas noites no quarto de Frankie, sem falar ou fazer nada. Às vezes, depois da escola, nós nos sentávamos no chão com nossas mochilas, olhando para a parede e chorando.
Os primeiros meses na escola foram os piores — pessoas sussurrando ou com expressões compassivas quando passávamos pelos corredores. Professores e meninas deixando flores e bilhetes diante do armário de Matt e desviando o olhar quando faltávamos às aulas. A maioria das pessoas em nossa turma — incluindo os chamados amigos — nos evitava, como se a morte e tristeza fossem contagiosas. A maior parte não sabia sobre a condição cardíaca de Matt, e ninguém sabia o que era pior: perder um irmão e amigo ou sobreviver ao acidente de carro que em teoria o matara. Ninguém conhecia as regras — o que dizer, se era certo rir ou reclamar de coisas como os pais e as notas ou sapatos quando Frankie e eu tínhamos problemas “sérios”. Mas, no meio do ano, Frankie virou a chave para o modo caçadora de meninos, as coisas voltaram ao normal para todos e a lembrança da morte de Matt murchou como flores secas enfiadas nos buracos de ventilação de seu armário.
— Meu Deus, Anna — diz Sam, os olhos ainda arregalados.
Concordo com a cabeça.
— Perdemos muitos amigos depois disso. No ano passado, éramos basicamente eu e a Frankie. E agora, quem sabe?
— Ela só deve estar chocada. Talvez você devesse tentar conversar sobre isso.
— Sam, ela roubou e leu meu diário. Depois o jogou no mar. E depois eu descobri que ela mentiu para mim sobre... bem, um monte de coisas sobre as quais ela não deveria ter mentido. Acho que não conseguiremos resolver agora. Acho que estamos... rompidas — Minha voz treme, entre a raiva e a tristeza.
— Venha cá — Sam me abraça, me envolvendo em seu cheiro. Ficamos diante do mar por muito tempo, sua mão fazendo círculos em minhas costas enquanto ouço seu coração bater, firme e forte, como as ondas.
— Obrigada — digo, afastando-me para enxugar os olhos e soltar cerca de quatorze meses de suspiros contidos. — Você é a única pessoa para a qual falei sobre Matt. Irônico, não?
Sam sorri.
— Sem dúvida não é o “O que Fiz nas Férias de Verão” com o qual eu estou acostumado.
Ficamos em silêncio, observando as ondas por um tempo, de mãos dadas. Seu dedo acaricia a palma de minha mão com delicadeza, embalando-me como as ondas diante de nós.
No caminho de volta, Sam diz que devo dar a Frankie uma nova chance.
— Não estou justificando as atitudes dela, mas pense nisso. Vocês são amigas, Anna.
— Não sei se consigo. Ela mentiu para mim sobre uma coisa muito importante. E ela violou e destruiu meus segredos.
— Só estou dizendo que vocês duas se magoaram. E vocês duas perderam alguém que amavam. Não percam uma à outra também.
— Claro. Acho que vi esse Especial Depois das Aulas.
Ele sorri.
— Só pense nisso, tá?
Fazemos planos de nos encontrar na noite seguinte para nossa despedida. Numa rua perto da casa, Sam me beija e espera que eu esteja segura na porta antes de acenar e voltar para a extremidade da praia.
A porta continua destrancada, e presumo que Frankie não voltou ainda, embora esteja surpresa por não a encontrarmos com Jake em nosso caminho de volta. Mas, quando chego lá em cima, Frankie está dormindo em sua cama como se estivesse lá o tempo todo, seu corpo subindo e descendo sob o lençol branco. O luar que entra pela claraboia projeta sua silhueta contra a parede e me faz lembrar de quando éramos crianças, de como ficávamos deitadas na cama e fazíamos shows de sombras no teto com nossas mãos e uma lanterna, conversando e rindo até que Matt batesse na parede do quarto ao lado e nos mandasse dormir.