CAPÍTULO TREZE 

A mansão 

Tornou-se hábito eu ir a casa da Linda todas as terças-feiras, depois das aulas, e ela vir à minha todas as quintas. Não era fácil encontrar um sítio onde pudéssemos brincar dentro de portas. A Linda partilhava o quarto com a Grace, no primeiro andar. Tinham um beliche e uma estante atafulhada de livros antigos. Eu queria muito explorar aquela estante, mas o quarto em si dava-me falta de ar. Acho que, em parte, era porque a Grace estava sempre lá enfiada, fosse a ler na cama de cima, recostada na almofada, ou com uma amiga qualquer, a fazer trabalhos de grupo para a escola ou assim. 

No quintal da Linda também não havia muito espaço. Não era mais do que uma língua negligenciada de terreno, numa encosta, com duas faixas de arbustos bravos de ambos os lados e ao meio uma corda de estendal. A Linda tinha um baralho de cartas, e nós costumávamos jogar ao Burro ou à Memória na mesa da cozinha até ao dia ela em que ela me mostrou um jogo chamado Monopólio. 

Com as cartas, podíamos jogar vários jogos no período de uma ou duas horas, mas o Monopólio era um jogo muito mais demorado. Às terças-feiras, a camioneta da quinta deixava a Marusia em casa da Linda, depois do trabalho, e era exatamente à hora que ela chegava para me ir buscar que o jogo começava a ficar interessante. 

– Porque é que não vens cá a casa no sábado? – perguntou-me a Linda. – A minha mãe disse que podíamos jogar o dia inteiro, se quiséssemos. 

A Marusia e o Ivan concordaram. A mãe da Linda sugeriu que eu fosse de manhãzinha cedo e convidou-me para almoçar. O Ivan andava a fazer uns trabalhos de jardinagem na igreja ucraniana, por isso acompanhou-me até à casa da Linda e combinámos que, quando eu terminasse, iria ter com ele à igreja, para voltarmos juntos para casa. 

Cheguei a casa da Linda pouco antes das nove da manhã. A Sra. Henhawk estava na cozinha a fazer compota de maçã. 

– A Linda está quase a descer – disse-me. 

Ofereceu-me uma maçã, mas eu tinha acabado de tomar o pequeno-almoço. 

– Senta-te aí, ao lado do George. – Apontou para uma cadeira ao lado do marido. – Ele não morde. 

Sentei-me. O Sr. Henhawk baixou o jornal e piscou-me o olho. Parecia tão simpático como a Sra. Henhawk. 

Deve ter entrado comigo uma mosca, pela porta das traseiras. A maldita não parava de me zumbir aos ouvidos. Enxotei-a com a mão, mas ela voltava sempre. Nisto, senti uma pancada de jornal num dos lados da cabeça. 

Pestanejei uma vez, depois outra. Porque é que o Sr. Henhawk me tinha batido daquela maneira? Mal conseguia ouvir o que ele me estava a dizer… 

– Não te empanturres, Eva – ralha a Mutter, tentando tirar-lhe o prato da frente. 

Mas a Eva agarra-o com as duas mãos e puxa-o para si. 

– Sabes muito bem que são os meus preferidos, Mutti – responde, cortando uma enorme garfada de Eierkuchen9 com compota de maçã e enfiando-a na boca. 

Um pedaço de maçã escorrega e cai em cima da mesa. Ela apanha-o e devora-o de um trago. 

– Se ao menos aquela comesse metade do que tu comes! – A Mutter olha para mim. – Se o Führer ouve dizer que andamos a matar à fome a sua queridinha, estamos feitos. 

Fito o prato à minha frente e pego no garfo e na faca. Corto um pedaço da Eierkuchen e levo-o à boca, mas o cheiro a gordura deixa-me enjoada. Lembro-me das mulheres e das crianças com as estrelas amarelas. Como posso eu comer aquilo quando aparentemente elas não têm nada? Empurro o prato. 

A Mutter dá-me uma bofetada. 

– Estás bem, Nadia? 

A voz do Sr. Henhawk puxou-me de volta para o presente. Estou em pé na cozinha dos Henhawks, com a cadeira virada de pernas para o ar, ao meu lado. Levo a mão à face. Quase conseguia sentir o formigueiro daquela estalada longínqua da Mutter. 

– Sim, estou bem – respondo. 

Mas não me sentia nada bem. Aquelas cenas do passado deixavam-me nauseada e confusa. 

A Linda surgiu nesse momento à porta da cozinha, com a caixa do Monopólio na mão. 

– Que má cara, Nadia. 

A cozinha estava abafada e o aroma a maçãs era avassalador. Achei que ia vomitar. 

– Podemos antes ir lá para fora brincar? – pedi. 

– Claro – disse a Linda, pousando a caixa do jogo na mesa da cozinha. – Nós vamos lá para fora, está bem? – disse aos pais. 

– Não vão para longe! – avisou a Sra. Henhawk. 

Quando saímos para o quintal estreito e denso da Linda, inspirei uma golfada de ar puro. 

– Vamos ao parque? – perguntou ela. 

Eu não sabia que havia um parque. Caminhei ao lado da Linda pelo passeio da casa dela, ao longo da Rua Usher, em direção a oeste. À medida que nos afastávamos do sítio onde ela morava, deu-me a impressão de que as casas se iam tornando mais pobres. Da Rua Usher virava-se para a Rua Rushton, e eu reparei num portão imponente, de ferro forjado, quase oculto pelos arbustos. Parecia algo saído de um livro de histórias. Estaria a sonhar ou seria real? Aproximei-me para lhe tocar. 

– Anda por aqui, que eu mostro-te uma coisa ainda melhor – disse a Linda, agarrando-me na mão. 

Então sempre era real. 

Virámos a esquina. Por entre os arbustos, conseguia ver-se que o portão estava ligado a uma vedação igualmente requintada, também ela praticamente escondida pelas folhas. Mas, às tantas, havia uma aberta na vegetação. Fiquei tão chocada com o que vi, que me agarrei ao ombro da Linda para me equilibrar. Uma mansão decrépita, no topo de uma colina. Parecia fora do tempo e do espaço, como algo saído de um sonho – ou de um pesadelo. Tinha um aspecto um tanto sinistro, com a tinta das gelosias a descascar e as cortinas esfarrapadas, penduradas no interior de janelas escaqueiradas. 

– Aquilo é o Castelo Yates – disse a Linda. – Acho que já não vive lá ninguém, a não ser os vagabundos. 

Alguma coisa naquela vasta mansão abandonada puxou o fio da minha memória. Mas porquê? Não tinha nada que ver com o casarão bem conservado da quinta onde eu vivia com a Eva, a Mutter e o Vater. E não havia nenhum edifício semelhante no campo de deslocados. Veio-me à garganta bílis quente e dobrei-me, com vómitos. 

– Está tudo bem, Nadia? – perguntou a Linda. 

Respirei fundo umas quantas vezes e procurei acalmar-me. Passados uns minutos, consegui tornar a endireitar-me. 

– Sim… estou bem – disse a custo. 

– O que é que se passa? Aquela casa assusta-te? – perguntou a Linda. 

Eu não sabia responder. 

– Lembra-te alguma coisa do tempo da guerra? 

– Deve lembrar – admiti. – Mas não sei o quê. 

– Anda – disse ela, puxando-me pela mão. – Vamos sair daqui. 

Ao passarmos em frente à propriedade, não consegui desviar os olhos da mansão – ou castelo, ou casa assombrada, ou lá o que era aquilo. Parecia-me horrível e maravilhosa ao mesmo tempo… 

Estou a gritar e a espernear enquanto me levam por uns degraus pintados de branco acima. «Baba! Baba! Eu quero a minha Baba!» Enfiam-me num quarto, sozinha. Tento abrir a porta, mas está trancada. Desato aos murros até ficar a sangrar dos nós dos dedos, mas ninguém responde. 

A Linda chamava o meu nome, mas eu corria desarvorada pelo quarteirão, arrastando-a comigo. Não sabia para onde ia; só sabia que precisava de me afastar daquela casa. 

– Abranda! – gritou ela, puxando-me a mão. – Já estou com dor de burro. 

Quando parei de correr, apercebi-me de que arfava e pingava suor. A Linda tornou a pegar-me na mão e levou-me por um carreiro entre as árvores. Chegámos a um relvado cuidado, numa ladeira – um sítio arejado e nada assustador. Era impressionante que houvesse um parque tão bonito, longe da vista de quem passava na Rua Usher. 

A Linda conduziu-me até ao meio da clareira e estirámo-nos na relva. Durante um bom bocado, ficámos ali deitadas, lado a lado, a olhar para as nuvens, sem dizer palavra. 

Às tantas, a Linda perguntou: 

– O que é que o Castelo Yates te fez lembrar? 

Fui invadida por um sentimento de pavor. Sentei-me e olhei para ela. Já lhe confidenciara alguns pormenores do meu outro passado. Queria muito poder conversar com ela sobre aquelas cenas que me assaltavam a mente. Mas será que a Linda iria entender? Mais importante ainda, será que contaria a alguém? O Mychailo tinha-me avisado para não falar com os canadianos acerca do assunto. Ao mesmo tempo, a Linda era a minha melhor amiga: alguma coisa precisava de lhe contar. 

– Só me lembro de estar trancada numa casa luxuosa – desabafei. – Disso, e do medo que sentia. 

– Quem te teria trancado? – perguntou-me ela, com uma expressão intrigada. 

– Não sei. 

– Terão sido os teus pais? 

– Não! – Nem conseguia imaginar a Marusia e o Ivan a fazerem-me tal coisa. 

Não disse mais nada, por isso a Linda deixou o assunto morrer. Entretivemo-nos a jogar vários jogos, como as Vinte Perguntas, e a descobrir formas nas nuvens, até que, por fim, ela disse que era melhor irmos ter com o Ivan à igreja. 

– Depois do susto que apanhaste, de certeza que te apetece ir para casa. 

Olhei para a Linda com uma admiração renovada. Que amiga tão querida! 

– Temos de passar por aquele castelo outra vez? – perguntei-lhe. 

– Não é obrigatório. – Apontou para o topo da colina. – Aquela é a Rua Terrace Hill. Podemos cortar caminho por ali até à tua igreja. 

– Tens a certeza de que não te importas de não jogarmos Monopólio? 

– Claro que não me importo, Nadia – garantiu a Linda. – Jogamos noutro dia qualquer. 

Do topo da encosta que dava para a Rua Terrace Hill, tinha-se uma vista magnífica da estação de comboios e mais além. Dava para ver quase até à minha casa, mas o castelo ficava escondido pelas árvores. 

Quando descemos a Rua Terrace Hill, surpreendeu-me que a igreja ucraniana fosse tão perto e perturbou-me perceber que as traseiras do Castelo Yates davam para as traseiras da igreja. Na verdade, ao longo da lateral da igreja havia umas escadas e uma rua estreita que levavam diretamente ao castelo. Fiquei com o coração apertado. Aquela igreja era um dos poucos sítios onde me sentia verdadeiramente segura, mas agora que a sabia tão próxima da mansão sinistra, perguntava-me se alguma vez voltaria a dar-me a mesma sensação de segurança. 

Encontrámos o Ivan no relvado em frente à igreja, a juntar folhas com um ancinho. Reparei que o Mychailo estava a ajudar o pai a plantar uma fileira de arbustos ao longo do caminho da entrada. Quando nos aproximámos, o Ivan olhou para mim, surpreendido: 

– Já acabaram o jogo? 

– Não, mas… – Fitei a Linda. 

Ela percebeu o olhar e acenou com a cabeça. 

– Estávamos aborrecidas – disse, encolhendo os ombros. – Jogamos noutro dia. 

O Ivan olhou para o monte de folhas que juntara e em seguida para o resto do relvado. 

– Ainda vou demorar pelo menos mais uma hora. 

– Eu posso ajudar-te – ofereci-me. 

– E eu também – disse a Linda. – Há mais ancinhos? 

Eu olhei para ela e sorri em jeito de agradecimento. 

O Ivan riu-se. 

– Entre os três, isto vai num instantinho. 

Quando terminámos o trabalho, o Ivan deu-me a mão e encaminhou-se para aqueles terríveis degraus que levavam à Rua Usher, passando pelo Castelo Yates. 

– É o caminho mais perto para a casa da Linda – disse. – E eu quero mostrar-te um casarão interessante. 

O Ivan sabia! Claro que sabia. Pois se andava a fazer jardinagem na igreja! Como poderia não ter reparado num castelo que ficava logo atrás? Na verdade, achava surpreendente eu própria nunca o ter vislumbrado por entre as árvores. 

Finquei os pés no chão. 

– Aquele sítio assusta-me. 

O Ivan franziu o sobrolho, surpreendido. Olhou para mim e depois para a Linda. Ela encolheu os ombros. 

– Então não queres ir por ali, é? – perguntou-me ele. 

– Não. 

Descemos a Rua Terrace Hill, depois a Rua Principal e deixámos a Linda em casa. 

Quando já íamos a caminho de casa, os dois sozinhos, o Ivan perguntou: 

– Aquele casarão antigo faz-te lembrar alguma coisa? 

Assenti com a cabeça. 

– A casa daquela quinta alemã? 

Abanei a cabeça. 

– Tens a certeza de que não queres ir lá comigo, dar uma vista de olhos? 

– Absoluta. 

– É pena – disse o Ivan. – Porque é um lugar interessante, e eu achei que ias gostar de o explorar. 

Estremeci só de pensar nisso. 

– Aquela casa foi construída no século XVII, por um homem que era dono dos caminhos de ferro – contou. – Queria que ficasse parecida com… 

Apertei-lhe a mão com tanta força, que ele se calou a meio da frase. 

9 Em alemão, no original: «panqueca». (N. da T.)