CAPÍTULO DEZASSEIS 

As Irmãs Castanhas 

Estou a tremer junto à nossa cama, abraçada aos joelhos para tentar aquecer-me. Costumamos vestir várias camadas de roupa, mas o frio acaba sempre por passar. Temos um cobertor tão puído que nem conseguimos trocá-lo por comida. Enrolo-o carinhosamente em volta da minha Baba, mas os lábios dela continuam roxos. A Lida entra no quarto com uma tigela lascada na mão. Contém aquilo a que insistimos em chamar sopa, embora ambas saibamos que não há nada de muito alimentício lá dentro: água, um ligeiro paladar de ossos fervidos uma dúzia de vezes, restos de batata ou de couve e tudo o mais que encontremos para a incrementar. 

A Lida pousa a tigela na mesinha de cabeceira e ampara a cabeça e os ombros da Baba com uma almofada. Ela pestaneja e abre os olhos. Olha para mim, depois para a Lida. 

– Minhas queridas netas – diz. – Não desperdicem comida comigo. Eu já não duro muito. 

Eu e a Lida sabemos que a Baba tem razão, mas como podemos não tentar salvá-la? É toda a família que nos resta. O Tato foi levado pela polícia soviética, no início do verão, como tantos outros homens ucranianos. Passadas algumas semanas, a Mama foi presa pela polícia nazi. Os idosos e as crianças não têm direito a senhas de racionamento. As poucas provisões que a Baba conseguiu guardar aguentaram-nos durante o outono. Mas agora que chegámos ao pino do inverno, estamos desesperadas. Já queimámos a maior parte da mobília para nos aquecermos e trocámos os nossos preciosos livros por comida. Até o nosso adorado arbusto de lilases foi esquartejado e transformado em lenha. 

A Lida inclina-se e estende uma colher de sopa à Baba, mas ela recusa-se a abrir a boca. A Lida suspira. 

– E se partilharmos? 

A Baba acena com a cabeça. 

– Comam vocês primeiro. 

Vamos passando a colher entre nós e partilhando a sopa aguada, um sorvo de cada vez. 

Assim que a Baba volta a adormecer, saímos e vamos mendigar para a rua. Primeiro sentamo-nos em frente à padaria. Quando a Sara e os pais estavam vivos, arranjavam-nos sempre alguma coisa – ainda que fosse só um pão bafiento. Mas eles foram dos primeiros a ser levados pelos nazis. 

A mulher que sai de lá agora fala alemão. Enxota-nos com uma vassoura. Vamos sentar-nos diante dos degraus da igreja entaipada, bem juntinhas para nos mantermos quentes. Recordo a altura em que podíamos entrar. A Mama e o Tato ainda estavam connosco. O cheiro do incenso fazia-me sentir segura. Mas já não vem aqui ninguém. Até porque há demasiados pedintes e a comida escasseia. Nem uma côdea de pão nos dão. 

Reparo que, de um momento para o outro, se formou uma fila serpenteante de crianças diante dos portões da antiga sinagoga. Sempre que há uma fila, nós corremos automaticamente para lá. Não importa o que estão a dar. Qualquer coisa é melhor do que nada. 

Quando nos aproximamos, vemos duas mulheres de fato castanho com golas e punhos brancos. 

– Talvez sejam freiras – digo, esperançada. 

A Lida olha para mim, surpreendida. 

– Os nazis correram com as Irmãs há muito tempo. 

Uma das mulheres está a tomar notas num caderno de couro preto. A outra enfia a mão dentro de um saco e tira uma mancheia de guloseimas. O meu estômago ronca só de olhar para elas. Não me lembro da última vez que comi algo que não fosse pão bolorento ou sopa aguada. 

Ponho-me em bicos dos pés e vejo a Sofia, que vive ao fundo da rua, a falar com uma das Irmãs Castanhas. Dá um gritinho de alegria ao receber os doces. Finalmente, chega a minha vez. A Lida está atrás de mim, com as mãos pousadas nos meus ombros. 

– Que lindo cabelo louro que tu tens – diz-me a mulher em alemão, baixando-se para ficar cara a cara comigo. – E que olhos azuis! 

Sorrio educadamente. O meu cabelo louro costuma ajudar quando pedimos esmola aos alemães. 

– Vocês são irmãs? – pergunta a mulher que está a tirar notas. 

– Sim – respondo. 

– E onde é que vivem? 

– Ali. – Aponto para a nossa casa caiada de branco, ao fundo da rua. 

– Ela está a dizer a verdade? – pergunta a mulher à Lida, com um sorriso. 

– Sim. 

A outra mulher leva a mão ao saco e tira três guloseimas. Dá-mas todas a mim. A esperança desvaneceu-se no rosto da Lida. A mulher torna a enfiar a mão no saco e tira mais três doces. Põe-nos mesmo debaixo do nariz da Lida. 

– Diz-me a tua idade e a da tua irmãzinha. 

– A Larissa tem cinco – responde ela. – E eu, oito. 

A mulher sorri e entrega-lhe as três guloseimas. 

A Lida dá-me a mão e voltamos para casa, por entre risinhos. Quando chegamos, encontramos a Baba a dormir. Cada uma de nós pousa uma guloseima em cima da mesinha de cabeceira e depois sentamo-nos, encostadas à salamandra gelada, a saborear os nossos doces. 

Dormimos as três no quarto grande, para ficarmos mais quentinhas. A Baba costuma abraçar-nos e cantar-nos a kolysanka. Mas, como ela já dorme, eu e a Lida cantamo-la baixinho para nós próprias. 

Quando ouço as primeiras pancadas na porta, julgo que estou a sonhar. Só percebo que são reais no instante em que a Baba se senta na cama e nos rodeia com os braços ossudos. 

– Não abram – sussurra. 

Ficamos as três sentadas no escuro, agarradas umas às outras, a rezar para que quem quer que esteja do outro lado se vá embora. Mas as pancadas continuam. A porta da rua abre-se de rompante. Um feixe de luz varre a sala e descobre a entrada do quarto. A soleira enche-se com a silhueta de dois soldados: um aponta-nos a lanterna; o outro, a espingarda. Quando os meus olhos se acostumam à luz, distingo uma terceira pessoa – a mulher de castanho que nos deu as guloseimas. 

Ela aproxima-se da cama e agarra-me bruscamente pelo braço, mas a Baba não me deixa ir. A mulher volta-se para os soldados: 

– Levem-na. 

A Baba segura-me com tanta força que me deixa com nódoas negras durante vários dias, mas não consegue oferecer resistência aos dois homens armados. Um deles põe-me ao ombro. O outro faz o mesmo à Lida. 

Baba! – grito, enquanto nos carregam para fora do quarto. 

A Baba deixa-se cair para trás na cama, entre os lençóis rasgados, com um fio de sangue a escorrer-lhe pela face. Estende os braços na nossa direção, e o seu olhar parte-me o coração. Segundos antes de a lanterna se apagar, reparo nos dois doces em cima da mesinha de cabeceira. Intactos. 

Eu e a Lida somos atiradas para as traseiras de um camião. Fede a urina. Várias crianças choram. Conseguimos encontrar-nos na escuridão e agarramo-nos uma à outra, com a força do medo e do desespero. 

Senti uma mão no ombro. Depois chegou-me uma voz. 

– Está tudo bem, Nadia? 

A Sra. Barry. 

Esfreguei os olhos, pestanejei duas vezes e olhei em volta. Estava encolhida num canto da sala dos livros juvenis, na secção infantil da biblioteca pública. Em Brantford. Estava em segurança. Aquela rapariga era a Lida. A minha irmã. Que seria feito dela? 

Eu não sou a Nadia. Nem a Gretchen. O meu nome é Larissa! 

Senti qualquer coisa quente sobre as costas e os ombros. 

– Estás a tremer – disse a Sra. Barry. – Onde tens o teu casaco? 

Olhei para ela, mas não respondi. A minha mente continuava povoada de imagens do passado. 

– Vamos para a sala dos funcionários – tornou a Sra. Barry. – Há lá um sofá onde te podes deitar. 

Pegou-me gentilmente ao colo e levou-me para a outra divisão. 

– Vou contactar os teus pais. 

Via que os lábios dela continuavam a mexer, mas não compreendi mais nada do que disse. A minha mente regressara ao passado… 

Estou numa sala grande, pintada de branco e com uma luz fortíssima. Talvez seja o quarto de um hospital, mas não há ali crianças doentes, só assustadas. Chega a minha vez e a enfermeira obriga-me a despir tudo menos a roupa interior. Sinto as bochechas quentes de vergonha. Grito quando ela aproxima da minha cara um instrumento metálico. 

– Pronto, pronto – diz-me em alemão. – É só um compasso de calibre, para fazer medições. Não precisas de ter medo. 

Aquelas palavras não me reconfortam. Enquanto ela me mede e tira notas, outra mulher tira-me fotografias – de frente, de lado e de costas. 

Que estão elas a fazer? Que é que se passa? 

Medem-me o nariz em três sítios. 

– Vira-te – ordena-me a mulher. 

Sinto as pontas frias de metal a apertar-me os lados da cabeça. Ela aponta mais números no caderno. Depois mede-me as pernas, os braços e a cintura. Não ofereço resistência, estou demasiado assustada. 

No fim, a mulher vira-me a palma da mão para cima e injeta-me cuidadosamente umas pintinhas pretas no pulso. Fico em pânico. Será veneno? Quando ela termina, aproximo o pulso da cara para ver melhor. Parece um sinal pequenino. 

A seguir, ela agarra-me bruscamente o cabelo e eu sinto uma picadinha atrás da orelha. 

– Pronto – diz. – És uma Lebensborn. 

Que raio é uma Lebensborn? Eu sei que desaparecem crianças. Um dia, andam a pedir na rua e no dia seguinte é como se nunca tivessem existido. Também serão Lebensborn? 

É a vez da Lida. Medem-na e tiram-lhe fotografias, mas não lhe põem marcas pretas. 

Depois de nos medirem a todos, dividem-nos em dois grupos: os que têm marcas pretas e os que não têm. Eu estou num, a Lida, no outro. O grupo dela é levado para fora da sala. 

– Por favor! – grito. – Deixem-me ir com a minha irmã! 

– Tu és a sortuda – diz a mulher de branco. 

– Lida! – torno a gritar. 

A Lida vira-se e olha para mim. O seus olhos transbordam de desespero. É empurrada porta fora. Tento correr atrás dela, mas sou agarrada. 

Os dias tornam-se indistintos. Crianças a marchar. Crianças a saudar o Führer. Todos recebemos pequenas rações de comida simples. A princípio, devoro-as, mas depois começo a sentir-me culpada por não poder guardar nada para a Baba e para a Lida. A ideia de comer aquilo deixa-me nauseada. Tento falar em ucraniano com uma das outras crianças, mas uma mulher de branco dá-me uma bofetada. 

– És alemã – diz-me. – Fala em alemão. 

A vez seguinte que falo na minha língua sou arrastada dali. Empurram-me por uma escada de madeira abaixo, e eu aterro no chão imundo. Está escuro, e tudo o que consigo ver são os olhos reluzentes das ratazanas. Abraço-me aos joelhos para tentar manter-me quente. Quando a mulher de branco me vai buscar, a luz do exterior quase me cega. 

Começo a ter aulas com as outras crianças. Uma mulher que não sorri ensina-nos as regras que devem pautar a nossa vida. Os ucranianos e os polacos são sub-humanos. Os que forem deixados vivos, serão escravos dos arianos. 

– Vocês são arianos – diz-nos. – Aqueles que julgavam ser os vossos pais são ladrões. Roubaram-vos aos vossos pais arianos, e agora nós vamos devolver-vos a eles. 

Eu sei que tudo aquilo é mentira. 

– Os judeus são umas ratazanas – continua ela. – Nenhum merece viver. 

Lembro-me da Sara e da família dela. Eram judeus e foram levados. A mãe da Sara arranjava-me sempre pão. O pai da Sara nunca fez mal a uma mosca. 

– Está a mentir! – grito. 

Levo as mãos à boca, mas é tarde demais. 

Os outros alunos observam-me com os olhos arregalados de medo. 

Sou enfiada num camião e levada para longe das outras crianças. Um soldado põe-me ao ombro e carrega-me por uns degraus brancos e altos acima, entrando numa mansão. Desato a dar-lhe murros nas costas e a gritar pela minha Baba. Trancam-me num quarto branco, despido, sem nada para comer ou beber. Farto-me de bater na porta, mas ninguém vem. No dia seguinte, chamo em alemão. Alguém me traz água… 

De repente, fiquei consciente do cobertor que me aconchegava os ombros. Exalava um aroma suave a lavanda e pó de talco. Aconcheguei-me nele, grata pelo seu calor. A torrente de memórias desvaneceu-se e eu olhei ao meu redor. Estava deitada num sofá, perto da secretária da Sra. Barry. Ela sentara-se num banco, à minha frente, com um copo de água apertado entre as mãos. Nesse instante, a imagem da inspetora invadiu a minha mente. 

– Por favor, não me mande para a escola! 

– Estás segura aqui comigo – sossegou-me a Sra. Barry. – Telefonei para a fundição e falei com o teu pai. Ele pediu-me que cuidasse de ti até chegar. 

Estendeu-me o copo de água. Bebi um pouco, agradecida. A minha boca sabia a serradura. Fechei os olhos.