CAPÍTULO DOIS
Brantford… a minha verdadeira casa?
Naquela primeira noite, foram várias pessoas a nossa casa, com presentes. Havia todo o tipo de comida – pão de centeio do bom, holubtsi2, salsichas. Ofereceram à Marusia frascos de beterraba em picle, compota de morango e mel, assim como ovos e uma saca de farinha. Alguém levou uma peça de um tecido azul-claro, e o Ivan recebeu uma garrafa de vodca. O padre deu-me um livro de orações e uma senhora inglesa com um sinal na bochecha ofereceu-me uma caixa de lápis de cera. Quando a maioria das pessoas já estava de saída, chegou um casal com um rapaz de cabelo escuro, que parecia irritado.
– Este é o Mychailo – apresentou a mulher, empurrando-o para a frente. – E anda na Escola Central.
Os pais do Mychailo entraram e deixaram-no comigo, no quintal.
– O que é a Escola Central? – perguntei-lhe.
– Vais para lá em setembro – respondeu-me ele. – E vais detestar.
– Porquê?
– Vão gozar contigo porque não és canadiana.
– Também gozam contigo? – perguntei.
– Agora já não – disse ele, mostrando-me os punhos cerrados. – Se gozarem, levam.
Não me parecia que aquela estratégia resultasse comigo. Talvez o Mychailo não se importasse de bater nas pessoas por mim, se nos tornássemos amigos…
Depois de toda gente se ir embora, o Ivan anunciou:
– Tenho outra surpresa para ti. – Pegou-me na mão e levou-me até aos arbustos que serviam de vedação entre o nosso quintal e o do vizinho. – Sabes que plantas são estas? – perguntou-me.
Não havia flores – os arbustos pareciam acabados de plantar –, mas reconheci o formato das folhas.
– Lilases! – exclamei.
– Plantei-os para ti – disse o Ivan. – Quando florescerem, na próxima primavera, acordarás todos os dias com o perfume das flores.
Eu fiquei tão emocionada, que mal me saiu um obrigada.
– Esta é a tua casa, Nadia – continuou ele, apertando-me a mão. – Queremos que sejas feliz aqui.
Arrastámos os colchões até ao quintal das traseiras e dormimos sob as estrelas. Eu adorava estar ao ar livre e a brisa fresca acalmava-me. A princípio, assustei-me com os ruídos que se ouviam no escuro, mas o Ivan explicou-me que eram as rãs a coaxar e até apanhou uma para me mostrar. Nós também tínhamos rãs no nosso país, mas eu não me lembrava da última vez que vira uma. O coaxo de uma rã é tão diferente do som das minas, dos disparos da artilharia, das bombas. Quantas vezes tentara eu dormir no meio de todos esses sons, durante os anos de guerra. E no campo, mesmo sem o bulício da guerra, vivíamos tão em cima uns dos outros, que eu não conseguia ouvir mais do que roncos e soluços.
Ali deitada, a olhar para as estrelas e a ouvir as rãs, comecei a descontrair – ligeiramente. Talvez corresse tudo bem. Inspirei fundo várias vezes o ar fresco da noite e fechei os olhos, mas o sono não vinha. A Marusia também dava voltas na cama. Às tantas, virou-se para mim e começou a cantar uma canção de embalar que eu conhecia desde sempre.
Kolyson’ko, kolyson’ko
Kolyshy nam dytynon’ku
A shchob spalo, ne plakalo
A shchob roslo, ne bolilo
Ni holovka, ni vse tilo
Ao escutar aquelas palavras, senti o medo a esvair-se do meu corpo. Fui embalada pelo aconchego do colchão e dos lençóis e pela proximidade das duas pessoas que, até então, me tinham mantido a salvo.
Adormeci a sentir-me amada e segura.
Estou rodeada das pessoas que mais amo, aninhada com elas debaixo de um edredão, num quarto acolhedor. De repente, ouço pancadas na porta. Tento acordar as pessoas que dormem a meu lado, mas elas desapareceram. Estou sozinha. O meu coração bate, descompassado. A porta abre-se de rompante, mas eu não consigo ver quem é.
Acordei a agitar os braços e aos gritos:
– Deixem-me em paz!
Duas mãos fortes ajudaram-me a sentar. Abri os olhos. Reconheci o meu quintal, em Brantford. Vi a Marusia sentada ao meu lado. Eu estava em segurança. Mas, mesmo às escuras, consegui distinguir a ruga de preocupação que lhe franzia o sobrolho. O Ivan também lá estava, ajoelhado perto de mim.
– Tiveste um pesadelo? – perguntou-me a Marusia.
Parecera tudo tão real, mas, sim, fora certamente um pesadelo. Assenti com a cabeça.
– Queres falar sobre isso?
– Não.
A Marusia enroscou-se em mim e sussurrou-me ao ouvido uma canção de embalar, numa voz doce e grave. Aquelas palavras sossegaram-me um bocadinho, e senti o meu coração a serenar.
Queria dormir, mas não queria sonhar outra vez. Quando a minha respiração voltou ao normal, foi mais fácil convencer a Marusia de que eu estava bem. Ela e o Ivan precisavam de dormir.
A Marusia tornou a acomodar-se no colchão. Eu fiquei acordada, a ouvir as rãs e os roncos ritmados do Ivan. Quando percebi que a Marusia também dormia a sono solto, voltei a sentar-me e inspirei o ar fresco da noite para tentar clarear as ideias. Porque é que tivera aquele sonho? Quem batera à porta?
Rodeei os joelhos com os braços e baloicei-me para a frente e para trás, para me confortar, como um dia alguém me confortara. Cantei baixinho a canção de embalar. A letra fazia-me sentir a salvo e amada. Procurei nas minhas memórias a última vez em que me sentira totalmente segura. Lembrei-me de um tempo anterior ao do campo de deslocados. Nessa altura, tinha um quarto só para mim, um quarto de teto alto e grandes janelas. Não me faltava o que comer nem boas roupas para vestir.
Mas sentir-me-ia segura? Não. Quem poderia sentir-se seguro no meio de uma guerra?
2 Em ucraniano, no original: «Folhas de couve recheadas». (N. da T.)