CAPÍTULO SETE 

A escola 

Quase não vi a Marusia naquelas últimas semanas do verão. Nalguns dias, ela trabalhava até tão tarde que só chegava a casa depois do jantar. A tarefa de preparar a refeição da noite ficara a meu cargo, mas eu não me importava. Deliciava-me com todos os produtos que a Marusia trazia da quinta, conforme o dia ou a semana – alface, pepinos, milho, tomate, pêssegos, cebolas. No campo de deslocados, comíamos arroz, arroz e mais arroz. Agora os nossos jantares eram grandes saladas de milho, batatas cozidas e, às vezes, bocadinhos de salsicha. 

Na manhã em que eu começava as aulas, a Marusia acordou-me cedo e anunciou: 

– Tenho uma surpresa para ti. 

Quando e como ela arranjara tempo, não sei, mas fizera-me uma blusa e uma saia a partir daquela peça de tecido azul que uma das senhoras tinha oferecido no dia da nossa chegada a Brantford. Debruara a gola da blusa com margaridas bordadas à mão e vincara elegantes pregas na saia, usando o ferro de engomar. Olhei-a através de uma cortina de lágrimas. 

– Veste-te, Sonechko. Não queres certamente chegar atrasada no teu primeiro dia. 

Enfiei os braços nas mangas da blusa e, ao abotoar os pequenos botões brancos, reparei nos delicados pontos que circundavam as casas. A saia assentava-me que nem uma luva. A Marusia deu-me umas meias brancas, novas, até ao joelho. E, abrindo um grande sorriso, tirou de um saco de papel um par de sapatos pretos, reluzentes. Eu puxei as meias para cima e calcei os sapatos. 

– São praticamente a estrear – disse a Marusia. – Espero que gostes deles. 

Geralmente, tento manter a compostura com a Marusia – afinal de contas, ela não é a minha mãe. Mas não pude deixar de sentir o amor que ela pusera em cada prega daquela saia e o afeto em cada ponto da blusa. Observei o ar coçado da sua própria blusa cuidadosamente engomada e as rugas de cansaço por baixo dos seus olhos sorridentes. Saltei-lhe para o colo e abracei-a fervorosamente. Escorriam-me lágrimas quentes pelas faces. 

– Nadia, minha Nadia – disse ela, limpando-me as lágrimas com as costas da mão. – Quero fazer-te feliz. 

Tentei responder, mas não conseguia falar. Limitei-me a acenar com a cabeça, esperando que ela percebesse o quanto eu estava grata por tudo o que ela fazia por mim. Molhei a cara com água fria para acalmar os meus olhos inchados, e depois a Marusia entrançou-me o cabelo. 

Em vez de fazer como de costume, enrolou-me as tranças no topo da cabeça como uma coroa e rematou o penteado com um enorme laçarote branco. Olhei-me ao espelho – e vi refletido um outro eu, num outro espelho. Um eu mais novo, de vestido cor-de-rosa e os olhos vermelhos de choro… 

– Parece que viste um fantasma – comentou a Marusia. 

Pestanejei. E aquela outra versão de mim desapareceu como uma nuvem de fumo. 

******* 

A Marusia acompanhou-me à Escola Central. Fomos as primeiras a chegar. 

Ela abriu a porta, e entrámos no vestíbulo deserto. 

– A tua sala é por aqui – disse, puxando-me pela mão. 

Virámos à esquerda e caminhámos ao longo de um corredor. A Marusia bateu à porta e, como ninguém respondeu, rodou a maçaneta. A porta abriu-se. 

– Boa sorte – desejou ela. 

Ao afastar-se, levou a ponta dos dedos aos lábios e atirou-me um beijo. Só quando ela deixou o edifício é que me apercebi de que, para me levar à escola, a Marusia perdera a boleia para o trabalho. 

Entrei na sala de aula vazia. Tinha espreitado para dentro daquela mesma sala da primeira vez que passeara pela vizinhança. Na parte da frente, havia um enorme quadro de giz e uma grande secretária. Várias fileiras de carteiras enchiam o resto do espaço. Qual deveria escolher? Será que a professora ficaria aborrecida se entrasse e me encontrasse no lugar errado? Arrisquei e sentei-me na última carteira, num dos cantos. Depois, esperei que os outros chegassem. 

No campo de deslocados, um homem que fora professor antes da guerra ensinava às poucas crianças mais velhas um pouco de História, e uma mulher que sabia inglês dava aulas tanto aos adultos como às crianças. Sentávamo-nos em bancos e usávamos o colo como secretária. Na parede da sala, estava pendurado um póster com a fotografia de Taras Shevchenko, o mais famoso poeta ucraniano. Não faço ideia de onde teria vindo aquela fotografia. Era difícil imaginar alguém a fugir da guerra com ela debaixo do braço. Talvez tivesse chegado ao campo dentro de um pacote de ajuda enviado pelo Canadá ou pelos Estados Unidos. Também me recordava vagamente de aulas em alemão dadas por uma mulher sisuda, numa escola pequena só com uma sala, mas não conseguia lembrar-me de quando tinha sido isso. 

Olhei para baixo, para o bonito conjunto azul que a Marusia me fizera. Passei ao de leve os dedos pelo tecido, encantada por cada um daqueles pontos ter sido feito só para mim… 

O Vater está na sala de estar, uma figura imponente, no seu uniforme preto. Reparo que tem as botas altas, de couro, sujas de lama. Não faz mal. Há escravos para as limpar. Ele pousa um embrulho em cima da mesa e senta-se. A Mutter senta-se à frente dele, no divã, com as costas hirtas e um sorriso rígido nos lábios. Bate com a mão no lugar ao seu lado. A Eva trepa lá para cima. Eu sento-me ao lado da Eva. 

– Isto é para ti, Gretchen – diz o Vater. 

A princípio, fico entusiasmada. Inclino-me para a frente e toco delicadamente com um dedo no papel castanho. 

– Abre! – incita-me a Eva. 

Olho para ela e percebo que mal cabe em si de tanta excitação. 

Pouso o embrulho no colo e rasgo o papel. É um maravilhoso vestido de brocado cor-de-rosa. Nunca usei nada assim. Eu sei que supostamente devia ficar feliz, mas só de olhar para o vestido sinto-me maldisposta. Encaro o Vater e obrigo-me a sorrir. 

– Obrigada – agradeço. 

O Vater retribui-me o sorriso. 

– Agora toda a família Himmel vai fazer boa figura nos comícios. 

Levo o vestido para o quarto. Ponho-o à minha frente e viro-me para o espelho. Pareço outra pessoa. 

Nessa noite, não consigo dormir. Acendo o candeeiro da mesinha de cabeceira e vou buscar o vestido. Cheira a sabão em pó e a outra coisa qualquer. Suor? Viro-o do avesso para procurar mais pistas. Reparo numa tira extra de tecido, cosida ao longo do fecho das costas. Endireito-a. É uma etiqueta. Uma etiqueta com um nome bordado em letras pequenas: Rachel Goldstein. 

Vem-me repentinamente à memória a rapariga na fila, a que estava de amarelo. 

Afasto o vestido de mim. 

Os risos e os gritos de crianças empolgadas que entravam pela janela da sala de aula trouxeram-me de volta ao presente. Tinha os olhos rasos de água, por isso respirei fundo e procurei acalmar-me. 

Pelo barulho que vinha do exterior, percebi que se aproximavam mais alunos, mas nenhum deles entrou. Perguntei-me se não deveria ter esperado fora da sala, e não dentro… Mas, nesse instante, apareceu uma mulher com o cabelo liso, cortado à altura do queixo, e eu fiquei encurralada. 

Ela sorriu-me e disse: 

– Calculo que sejas a Natalie Kraftchuk, a nova aluna. 

Pus-me atabalhoadamente de pé, fiz-lhe uma vénia com a cabeça e, no meu melhor inglês, respondi: 

– Bom dia, senhora professora. O meu nome é Nadia Kravchuc. 

Ela estendeu-me a mão. 

– Eu sou a senhora Ferris. Os outros alunos não tardam aí. 

Dei-lhe um passou-bem. Depois, a professora voltou-se e saiu da sala, por isso tornei a sentar-me. 

Nisto, soou uma campainha estrondosa, que quase me fez pular do lugar. Passados uns minutos, o corredor encheu-se com vozes de crianças. A Sra. Ferris entrou outra vez na sala, seguida de uma fila de alunos.