Introdução

Apenas treze anos separam a fundação da Santa Inquisição em Portugal (1536), da fundação da cidade de Salvador (1549). Ambas tiveram sua infância no século XVI, adolescência conturbada na metade inicial do Século XVII, idade adulta e apogeu nas décadas finais dos seiscentos e inícios do Século XVIII, decadência a partir de 1750. A Inquisição teve suas portas fechadas em 1821, enquanto a Bahia confirmou, definitivamente, a independência do Brasil em 1823. Por diversas vezes, a Inquisição imiscuiu-se arbitrariamente na vida dos baianos, mantendo, a ferro e fogo, através da eficiente rede de aproximadamente um milheiro de espiões, os temíveis Comissários e Familiares do Santo Ofício, a hegemonia da Santa Madre Igreja: "um só rebanho e um só Pastor!"

Tentaram, em vão, as autoridades inquisitoriais, instalar em Salvador um tribunal do Santo Ofício, nos moldes dos que existiam em Lima, México e Cartagena de Índias. Felizmente, para os colonos reinóis e baianos natos, este macabro projeto jamais veio a concretizar-se, pois teria sido a ruína da pungente economia açucareira, em grande parte dominada pelo capital e empresários cristãos-novos, além de significar incontáveis detenções de "feiticeiros" afro-baianos, sodomitas, bígamos, padres libertinos. Mesmo sem um tribunal local, a Santa Inquisição foi nosso mais temido "bicho papão" durante todo o período colonial.

Já em 1546, efetua-se na Bahia a primeira prisão "em nome do Santo Ofício": o donatário de Porto Seguro, Pero de Campos Tourinho, é acusado de não guardar os dias santos e auto-proclamar-se rei e papa de sua capitania, sendo enviado preso para o Tribunal de Lisboa. Em 1591 e 1618, tem lugar na Bahia de Todos os Santos a 1ª e 2ª Visitações do Santo Ofício, contabilizando aproximadamente 500 denúncias e confissões de suspeitos e réus confirmados em "crimes contra a fé": heresias, judaísmo, protestantismo, feitiçarias, irreligiosidade, assim como "crimes contra a moral sexual": sodomia, bigamia e a imoralidade sacerdotal.

Segundo ensina nossa maior pesquisadora sobre a Inquisição no Brasil, Anita Novinsky, autora do pioneiro Cristãos Novos na Bahia (1972), foram presos e processados pelo Tribunal de Lisboa 1076 indivíduos da América Portuguesa, dos quais 249 (23%) moradores na Bahia – a região mais devassada pelo monstrum horrendum. Em minhas repetidas e prolongadas pesquisas na Torre do Tombo, consultei 235 destes processos da Bahia entre 1546-1821 – sendo tais manuscritos a matéria-prima deste livro. Dos 20 residentes no Brasil queimados na fogueira, sete eram procedentes da Bahia, e com exceção do Padre Gabriel Malagrida, fundador do Recolhimento da Soledade na Lapinha, queimado sob acusação de heresia, todos os demais eram cristãos-novos, executados pela prática secreta do judaísmo.

Bahia: Inquisição & Sociedade é uma amostra selecionada do que representou a ação da Santa Inquisição em Salvador e pelo interior da Capitania. Reunimos aqui oito artigos, publicados entre 1986-1995, em diferentes revistas científicas, apresentando um cardápio variado e amplo dos aspectos mais significativos do que representou esta instituição em terras baianenses, em seus quase trezentos anos de atuação entre nós. Transcrevemos e interpretamos centenas de documentos – a maior parte deles, inéditos – coletados na vetusta Torre do Tombo, o principal arquivo português, um dos maiores do mundo, que reúne milhões de páginas manuscritas sobre nosso país. Felizmente que a administração portuguesa levou de volta tais documentos, pois se assim não fosse, lastimavelmente, essas preciosidades documentais teriam o mesmo triste destino da maior parte de nossos papéis mais velhos que aqui ficaram: foram destruídos pelo cupim ou queimados pelos holandeses e demais invasores.

Estrategicamente, selecionamos para este livro ensaios que enfocam as principais áreas da repressão inquisitorial: feitiçaria, sodomia, heresias; privilegiamos alguns momentos mais dramáticos da história inquisitorial na Bahia, particularmente, a primeira Visitação, ampliando o marco cronológico até os finais do Século XVIII; discutimos aspectos cruciais de sua estrutura e funcionamento local, reconstituindo a biografia de um de seus expoentes máximos; incluímos casos e episódios provenientes de variegadas regiões de nosso território: Salvador e seu recôncavo, o sertão de Jacobina, a Capitania de São Jorge de Ilhéus. Um cardápio assaz variado quanto a temática, cronologia e territorialidade.

No primeiro capítulo, oferecemos um quadro geral, introdutório, sobre a Primeira Visitação do Santo Ofício à Bahia (1591), descrevendo seus rituais de instalação na pequenina Sé de Salvador, como funcionou a "mesa inquisitorial", e o pânico espalhado entre seus moradores, durante os dois anos que o Visitador esteve ouvindo e sentenciando os pecadores mais públicos e notórios. Um Dominicano Feiticeiro em Salvador Colonial (1713) é o título do segundo capítulo, onde já se percebe a sedutora presença do sincretismo mágico-religioso de origem africana, levando um frade pregador a incorporar em seus exorcismos suspeitos ingredientes heterodoxos, a fim de competir e superar os "feiticeiros negros". No terceiro capítulo, reconstruímos a biografia do principal agente inquisitorial de toda história baiana: O Cônego João Calmon, Comissário da Inquisição na Bahia Setecentista, membro de secular família de letrados ainda hegemônica, não só na Bahia, mas em outros rincões de nosso país. O quarto capítulo, Tortura de Escravos e Heresias na Casa da Torre (c.1775) requer muita resistência emocional do leitor, por tratar-se da mais cruel e realista descrição que se tem notícia das torturas praticadas contra os escravos, pelo maior latifundiário da Bahia e do Brasil, o proprietário da famigerada Casa da Torre, na Praia do Forte. Além de torturador sádico, Garcia Dávila Pereira de Aragão foi acusado por suas "heresias", que incluíam desacato aos santos católicos, adoração da estátua de uma "cabocla" e muitos ataques ao catolicismo. Um refinado pecador! Também acusados de condutas heterodoxas e suspeitas de pacto com o demônio, no quinto capítulo, foram Quatro Mandingueiros do Sertão de Jacobina na Garras da Inquisição (1745) presos nos cárceres secretos do Tribunal de Lisboa acusados de um "crime" considerado grave no tempo de nossos tataravôs: acreditavam e traziam amarrado no pescoço um "patuá", na época conhecido também como "bolsa de mandinga". Estes quatro jovens negros sertanejos comeram o pão que o diabo amassou nas frias masmorras da Inquisição de Lisboa, culpados de praticarem uma devoção considerada suspeita de implicar em pacto com o Demônio. O sexto capítulo reconstrói as Desventuras de um Degredado Sodomita na Bahia Seiscentista: trata-se de um violeiro e comerciante de fumo, residente nas proximidades do que hoje conhecemos como Baixa do Sapateiro, um dos poucos processados pelo Tribunal da Fé cruelmente torturado por duas vezes em razão de sua condição de "sodomita incorrigível". Os dois derradeiros artigos concentram-se na região meridional da Capitania: A Inquisição em Ilhéus (1574-1774) resgata os dramas de uma vintena de moradores locais envolvidos com todo tipo de condutas heterodoxas em questão de fé e sexualidade, enquanto o último capítulo, Os Índios do Sul da Bahia: População, Economia e Sociedade (1740-1854), o mais longo e antropológico, representa a reconstituição mais profunda até hoje realizada, da etno-história das sete aldeias indígenas existentes nesta Comarca, incluindo análise de aspectos da vida religiosa e moral dos ameríndios.

Nosso escopo e desejo, ao publicar Bahia: Inquisição & Sociedade, além de facilitar a leitura de artigos originalmente divulgados em obras esgotadas ou de difícil acesso, é sobretudo fornecer o "mapa da mina" da Torre do Tombo, compartilhando centenas de indicações de documentos sobre a história da Bahia, estimulando assim que novos pesquisadores aprofundem tais fontes tão ricas de informações sobre nossa história cultural, religiosa, sexual, ideológica e racial. E que também reforce, em todos nós, a repulsa a qualquer tipo de intolerância, sentimento vital nesta triste época tão marcada por diversas manifestações de fundamentalismo. Inquisição, nunca mais!