Capítulo 4 - Tortura de escravos e heresias na Casa da Torre1
A Casa da Torre de Garcia Dávila, Litoral de Tatuapara, Bahia, Século XVI-XVIII, é considerada o único “castelo” rural da América Portuguesa.
O jugo e a correia fazem dobrar o pescoço:
para o mal escravo, tortura e tronco!
Eclesiastes, 33:27.
O objetivo deste artigo é divulgar um medonho documento conservado até hoje escondido debaixo de sete chaves nos arquivos secretos da Inquisição de Lisboa: trata-se da denúncia das crueldades extremadas e inauditas praticadas contra seus escravos pelo homem mais rico da Bahia, e de todo o Brasil na segunda metade do século XVIII, o Mestre de Campo Garcia d’Ávila Pereira de Aragão. Os requintes de crueldade ali descritos nunca chegariam ao nosso conhecimento, não fosse o zelo humanitário de uma testemunha corajosa que os denunciou ao Tribunal do Santo Ofício. Sem tal testemunho, dificilmente imaginaríamos que o sadismo de um senhor de escravos chegasse a tanto.
Não surpreende, pois, que certos esmeros de perversidade se tenham constituído segredo sigilosamente guardado debaixo de sete chaves, tais aqueles preservados e cobiçados receituários de doces e bolos, bem assim de bicos e de rendas, verdadeiros patrimônios de família, passando de geração a geração no escorrer dos anos, na biqueira do tempo etc...
diz José Alípio Goulart, autor do pioneiro livro sobre castigos de escravos no Brasil, Da palmatória ao patíbulo. E completa inteligentemente o mesmo autor: "Barbaridades sepultadas para sempre no monturo azedo das bagaceiras, perdidas na poeira dos sumiços eternos, de vez que emudecidas as vozes capazes de as denunciarem. Malgrado, porém, toda e tão apurada cautela, muitas das crueldades praticadas derrubaram as muralhas do sigilo, transpuseram as barreiras do silêncio, permitindo à posteridade horrorizada conhecer como cevavam a fúria selvagem e os bestiais instintos de certos senhores e feitores de escravos.2
Tais comentários parecem ter sido encomendados para descrever este documento, escrito provavelmente pela mesma época que Beccaria publicava Dei Delitti (1764), obra fundamental no questionamento da tortura e logo colocada pela Inquisição no Index dos livros proibidos.
A melhor fonte para conhecermos a Casa da Torre é o livro de Pedro Calmon, História da Casa da Torre: uma dinastia de pioneiros3, que informa que desde a chegada do primeiro Garcia d’Ávila na Bahia, criado do governador Tomé de Sousa, esta "espantosa família" nunca parou de crescer em riqueza e poder. Tendo como principal pecúlio duas cabeças de vaca, em 1551, os descendentes de Garcia d’Ávila tornar-se-ão os principais latifundiários e pecuaristas do Brasil Colonial, conquistadores de Sergipe e do sertão do São Francisco, proprietários da metade de todo o território do Piauí. Um de seus descendentes, o segundo a ostentar o nome de Francisco Dias d’Ávila, em 1676, mandou degolar, de uma só vez, 400 tapuias, aprisionando-lhes as mulheres e crianças.
Além das fazendas de gado, a Casa da Torre possuía poderosos engenhos no Recôncavo. Garcia d’Ávila Pereira, o terceiro a ostentar este prestigioso e famigerado nome, bisavô de nosso malvado denunciado, preferia os canaviais às pastagens sertanejas. Dizem que ouvia missa todos os dias na capela de seu engenho, conseguindo, em 1732, a invejada patente de Familiar do Santo Ofício, tornando-se oficialmente espião e informante do Tribunal Inquisitorial. Nessa época, o principal e mais severo Comissário do Santo Ofício na Bahia era o cônego João Calmon, filho de outro importante senhor de engenho no mesmo Recôncavo da Bahia de Todos os Santos.
Garcia d’Ávila Pereira de Aragão nasceu a 4 de outubro de 1735, em Santo Tomás do Iguape, na fazenda do avô. Casou-se duas vezes, sem deixar descendentes. Sua primeira mulher, D. Teresa Cavalcanti de Albuquerque, era filha do alcaide-mor da Bahia; sua segunda esposa, D. Josefa Maria da Conceição e Lima, descendia dos Rocha Pitta e dos Costa Lima. Um seu conterrâneo, o cônego Macedo Lema, diz que sua segunda mulher nunca se arriscou a uma vida conjugal com o 4º Garcia d’Ávila na Casa da Torre, preferindo ficar morando, mesmo depois de casada, na residência paterna, na cidade da Bahia. "Cavaleiro selvagem na forma exterior", foi condecorado com a comenda de Cavaleiro da Ordem de Cristo (1752) e Mestre de Campo dos Auxiliares da Torre no ano seguinte. "Sem nenhuma dúvida, foi o mais rico dos filhos do Brasil, inteligente e arrebatado: o último varão da estirpe dos Garcia d’Ávila", diz seu biógrafo Pedro Calmon. Faleceu em 1805, aos 70 anos.
É exatamente esse ilustre fazendeiro baiano, riquíssimo, nobre pelos quatro costados e pelas conquistas e títulos honoríficos de seus antepassados, o autor de uma série de torturas e castigos contra seus escravos, que o torna merecedor do deplorável título de o maior carrasco de que até então se tem notícia na história do Brasil. Triste sina: o mais rico e o mais cruel de todos os brasileiros escravistas.
O documento, que constitui o cerne deste trabalho, encontra-se no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, entre os Processos da Inquisição de Lisboa, catalogado sob o nº 16.687: são 12 folhas manuscritas, assinadas por José Ferreira Vivas. Infelizmente, não temos nenhuma referência sobre quem era este denunciador, nem o ano em que o documento foi escrito: como o denunciado, o 4º Garcia d’Ávila, só morreu em 5 de outubro de 1795, situamos esse manuscrito no terceiro quartel do século XVIII. Tudo leva a crer que o denunciante tinha certa proximidade do Mestre de Campo, pois presenciara ele próprio algumas de suas palavras e "heresias".
Conforme o leitor poderá constatar, no início do documento, o autor alega o dever de "descarregar sua consciência", denunciando o rico fazendeiro como autor, por fala e feitos, de 47 "heresias": 26 itens referem-se a torturas e castigos crudelíssimos aplicados pelo Mestre de Campo Garcia D’Ávila Pereira Aragão contra seus escravos e 21 itens incriminam o proprietário da Casa da Torre em sacrilégios, blasfêmias e irreverência contra a religião católica – a única permitida na época em toda cristandade.
Uma pequena introdução sobre o significado e extensão dos castigos e torturas na sociedade escravista ajudará o leitor a melhor avaliar a importância e situar historicamente o documento em questão. Apesar da criminosa e cínica conivência da Igreja Católica com a escravidão colonial, verdade seja dita, mais de uma vez alguns membros do clero, ou mesmo certas instituições religiosas, chamavam a atenção dos senhores de escravos no sentido de que não exagerassem nos castigos contra seus cativos.4 Na obra Economia cristã dos senhores no governo de seus escravos (1700), o jesuíta Jorge Benci dedica cinco capítulos a esse tema, defendendo que os senhores deviam castigar os servos merecedores de correção, porém relevando-lhes algumas faltas mais leves, evitando os impropérios injuriosos e as sevícias além dos açoites e prisões moderadas.5 Por seu turno, outro jesuíta, o Padre Antonil (1711), sintetiza assim as necessidades da escravaria:
No Brasil, costumam dizer que para o escravo são necessários três PPP, a saber: PAU, PÃO e PANO. E posto que comecem mal, principiando pelo castigo que é o pau, contudo, prouvera a Deus que tão abundante fosse o comer e o vestir como muitas vezes é o castigo, dado por qualquer causa pouco provada ou levantada, e com instrumentos muitas vezes de muito rigor, ainda quando os crimes são certos, de que se não usa nem com os brutos animais, fazendo algum senhor mais caso de um cavalo que de meia dúzia de escravos, pois o cavalo é servido e tem quem lhe busque o capim, tem pano para o suor e sela e freio dourado [...] Castigar com ímpeto, com ânimo vingativo, por mão própria e com instrumentos terríveis e marcá-los na cara e chegar talvez aos pobres com fogo ou lacre ardente, não seria para se sofrer entre bárbaros, muito menos entre cristãos católicos.6
Apesar de o delatante José Ferreira Vivas dizer que denunciava por ordenarem assim os Editais do Santo Ofício, lidos em todas as igrejas e capelas do Brasil no primeiro domingo da Quaresma, como hoje fazem com o início da Campanha da Fraternidade, nada encontramos na dezena de "desvios" descritos pela Inquisição nos referidos Editais que obrigassem os cristãos a denunciar aos Comissários do Santo Ofício os maus-tratos dos senhores a seus escravos. Os inquisidores estavam interessados, sobretudo, em perseguir os hereges, cristãos-novos, feiticeiros, sodomitas, bígamos. A inclusão de torturas e castigos excessivos contra os negros no rol das heresias constitui, a meu ver, uma interpretação sui generis do próprio conceito deste "crime", pois, stricto sensu, heresia formal é definida como um erro voluntário e pertinaz em questões de fé ou de dogma. Somente no lato sensu é que heresia pode ser entendida como "ação ou delito contrário à religião". Destarte, se a essência do cristianismo é a caridade, o ato de ultrapassar os limites sugeridos pelos teólogos no castigo da escravaria poderia então, ser caracterizada, no sentido amplo, como contrária à religião, portanto, heresia.
Trata-se, obviamente, de uma ampliação generosa e justa do conceito de heresia, mas à qual os inquisidores não deram a menor atenção nem seu beneplácito, posto que tanto esta denúncia das heresias de Garcia d’Ávila Pereira Aragão contra seus escravos, como outra denúncia contra um outro cruel torturador carioca, Antônio José Vieira7, foram simplesmente arquivadas pelo Santo Ofício. Isto é, não redundaram no julgamento e castigo dos culpados, apesar de ambas denúncias serem razoavelmente fidedignas; posto que a do Rio de Janeiro tinha 18 testemunhas, sendo 56 os que testemunharam contra o torturador da Casa da Torre. Também, pudera, se o bisavô do denunciado fora Familiar do Santo Ofício, e o próprio 4º Garcia d’Ávila tinha imunidades decorrentes de seu hábito da Ordem de Cristo, não seriam os protestos de um desconhecido Sr. Vivas que iriam abalar o respeito devido ao homem mais rico da América portuguesa.
A possibilidade de se denunciar maus-tratos excessivos dos senhores contra seus escravos tinha sido certa feita aventada pelo próprio rei D. Pedro II de Portugal em 1688, quando, numa célebre carta enviada ao governador de Pernambuco, dizia:
Por ser informado que muitos poderosos deste Estado que têm escravos lhes dão muito mau trato e os castigam com crueldades, o que não é lícito aos senhores dos tais escravos, porque só lhes pode dar aquele moderado castigo que é permitido pelas Leis e, desejando evitar que os pobres escravos, sobre lhes faltar a liberdade, padeçam a tirania e vingança de seus senhores, sou servido que de hoje em diante, em todas as devassas gerais que se tirarem nessa Capitania, se pergunte pelos Senhores que com crueldade castigam os seus escravos, e aqueles que o fizerem, sejam obrigados a vendê-los a pessoas que lhes darem bom trato.8
As denúncias deviam ser aceitas mesmo se feitas pelos próprios escravos castigados. Após três dias deste alvará, nova carta régia reforçava o determinado, mandando que os arcebispos avisassem aos governadores os excessos cometidos pelos escravocratas. Decorrido menos de um ano, a palavra do Rei voltava atrás: "Considerando os inconvenientes da execução das ordens anteriores, hei por bem que não tenham efeito, para que se evitem as perturbações que entre os escravos e seus Senhores já começam a haver com a notícia que tiveram das ordens que se vos havia passado".9
A imoderação e a tirania extremadas dos senhores continuaram portanto impunes. Não entrarei aqui na discussão sobre a maior ou menor crueldade do escravismo em terras brasileiras: remeto o leitor interessado sobretudo aos trabalhos de J. A. Goulart, Arthur Ramos, Emília Viotti da Costa, R. Boxer, Gilberto Freyre, e aos viajantes e cronistas que deixaram pungentes páginas sobre a escravidão.10 Nestas obras, há, inclusive, relatos sobre formas mais usuais de se castigar a escravaria.
Concluímos esta introdução perguntando: qual o sentido de se divulgar um documento tão cruel, que retrata com todo realismo e fidedignidade toda a maldade, sadismo e desumanidade com que um fazendeiro baiano castigava seus cativos? Não seria mais acertado imitar o baiano Rui Barbosa e apagar, não só a "mancha negra" de nossa História, mas também, e sobretudo, as manchas de sangue, ainda mais envolvendo famílias tão importantes e históricas?
Divulgando este martirológio, tenho três objetivos:
Primeiro, fazer justiça, mesmo que póstuma e tardia, a esta espantosa família dos Garcia d’Ávila, "dinastia de pioneiros", mas também campeões de genocídio e violência contra índios e negros. Mesmo que nos transportemos aos séculos anteriores, quando a violência não era apanágio dos donos do poder, época em que a própria Igreja Católica – seja o arcebispo da Bahia, sejam os inquisidores e pontas-de-lança locais – justificavam e ordenavam as torturas mais terríveis e dolorosas, flagelações, até a fogueira, a fim de manter a integridade da fé e a hegemonia dos príncipes da Igreja e dos lacaios de Cristo –, mesmo nos transportando para período tão violento, a crueldade de certos senhores, como a deste potentado baiano, atinge as raias do delírio mórbido e sádico, obrigando-nos a discordar radicalmente da radiografia ufanista e edulcorada que Pedro Calmon fez destes homens cruéis, quando escreveu:
É tempo de se deterem os escritos de História diante desses clãs, em cuja cadeia rácica como que se percebe melhor a coesão das eras, a unidade consangüínea do Brasil que ajudaram a formar, construindo a sua casa patriarcal, devassando-lhe os sertões, alargando as suas fronteiras ou disciplinando a sua vida coletiva, sem esquecer as boas tradições do lar português, religioso, severo e sóbrio, que não perdeu nos trópicos nenhuma de suas características avoengas. Tomamos a espantosa Casa da Torre como um exemplo".11
Após ler o documento-denúncia, que o leitor julgue de que lado está a razão. Complementar a este objetivo, ao divulgar este manuscrito inédito, queremos dar direito à história e revelar à luz do dia, esse bando de negros e mestiços tão desafortunados, cujos gemidos, urros de dor, litros de sangue derramados debaixo do chicote, cicatrizes terríveis, queimaduras infernais, permaneceram ocultos e abafados por mais de duzentos anos. Publicando as barbaridades deste senhor de escravos, quero demonstrar meu respeito e solidariedade para com estas criaturas massacradas: com o negrinho Arquileu, que tendo apenas quatro anos, quase morreu debaixo do chicote de seu terrível senhor, simplesmente porque um passarinho picou o figo de que ele devia tomar conta; com o preto velho Antônio Magro, beirando os 80 anos, cujo suplício incluiu o ardor de uma mancheia de pimentas malaguetas introduzidas em seu ânus através de um canudo de pito. Minha solidariedade com estes verdadeiros mártires e a firme esperança de que, no presente e no futuro, negros, mestiços e brancos constituamos realmente neste país uma democracia racial, uma sociedade pluralista, onde a diferença – seja da cor, de sexo ou da orientação sexual – não implique nenhum tipo de dominação.
Este verdadeiro "manual de torturas" remete-nos à presença, ainda tão forte e medonha, embora mais escondida, da tortura na sociedade baiana e brasileira contemporâneas. Ainda na década de 80, quase todas as semanas, os jornais locais, inclusive o dos Calmon, têm denunciado a prática de tortura nas prisões, delegacias, camburões etc. Poucos dias antes de terminar este artigo, os jornais estamparam a foto revoltante de uma família baiana cujos dez membros – incluindo crianças, mulheres e doentes – foram barbaramente espancados, pisoteados, vários tiveram seus braços e pernas quebrados, por policiais de Salvador, toda essa crueldade supervisionada por uma delegada.
Desde 1821, a Inquisição foi encerrada; a escravidão já completou 60 anos, foi abolida há mais de um século; a declaração dos Direitos Humanos e a tortura continua ainda tão presente em nossa Bahia de hoje. O tormento do anjinho cedeu lugar ao choque nas partes genitais; o bacalhau foi substituído pelo pau-de-arara; o tronco foi para o museu mas a "fanta" está nas ruas. Nossa esperança e desejo é que todos esses instrumentos terríveis de suplício e tortura tornem-se definitivamente peças de museu, prenúncio de uma nova sociedade menos violenta, sem opressores nem oprimidos. Que tal restaurar as ruínas da Casa da Torre e ali fazer o museu da extinta violência na Bahia de Todos os Santos?
A divulgação do presente documento da Torre do Tombo justifica-se ainda por revelar faceta pouco conhecida de nossa história das mentalidades: as blasfêmias e sacrilégios perpetrados por um destacado membro da elite colonial, contribuindo para o resgate da história da irreligiosidade e ateísmo na América Portuguesa. Assim sendo, comprovam-se os limites reais da autoridade aterradora do Tribunal da Inquisição, que apesar de ter autoridade para confiscar os bens, açoitar e condenar à fogueira, hereges e heterodoxos, não chegou, contudo, a inibir palavras e ações francamente hostis à Santa Religião. Antecipamos ao leitor que malgrado a gravidade destas denúncias, o Tribunal do Santo Ofício nada fez contra este mau cristão, agindo com igual indiferença em relação a certos blasfemos despossuídos de riquezas.
A derradeira justificativa da divulgação deste documento tem a ver com o que ele diretamente nos informa, e de primeira mão, sobre a cultura material da própria Casa da Torre: ao descrever as torturas e sacrilégios ali praticados por seu terratenente, o denunciante fornece, aqui e acolá, dados concretos sobre as instalações, espaços, utensílios e personagens que compunham o dia a dia e se movimentavam dentro desta portentosa propriedade senhorial do Recôncavo Baiano, justamente considerado o único "castelo" construído na América Portuguesa.
Sugiro que o leitor preste atenção não apenas nos atos cruéis e irreverentes praticados por Garcia D’Ávila Pereira Aragão, mas também atente para os aspectos materiais e sociais que servem de pano de fundo a este espantoso relatório. À guisa de contribuição para se reconstituir tal paisagem, no final do manuscrito enumero e esclareço alguns elementos citados no documento que permitem-nos visualizar o interior, as redes de relação e o quotidiano da famigerada Casa da Torre. Começamos com a transcrição integral do documento da Torre do Tombo.
Denúncia ao Santo Ofício contra Garcia D’Ávila Pereira Aragão
Senhor Reverendo Vigário Antônio Gonçalves Fraga12
Meu Senhor: a Vossa Mercê deponho, como Comissário do Santo Ofício, as heresias ditas e feitas pelo Mestre de Campo Garcia D’Ávila Pereira Aragão, contra Deus Nosso Senhor e os Santos, desencarregando nesta parte a minha consciência com V. Mercê, como assim mandam e ordenam os Editais do Santo Ofício, e constam dos itens seguintes:
I. Heresias que faz aos seus escravos
Item 1. Que a um escravo crioulo chamado Hipólito, de idade de 16 anos, pouco mais ou menos, o mandou montar em um cavalo de pau, e mandou lhe amarrassem em cada pé uma arroba de bronze, ficando com os pés altos, e o mandou deitar sobre o cavalo, mandando dois negros açoitá-lo, que o fizeram por sua ordem rigorosamente, desde pela manhã 8 horas até as 11 horas do dia; que depois disto feito, o mandou amarrar com uma corda pelos pulsos dos braços juntos, e passada a outra parte da corda ao mourão da casa, o foram guindando até o porem com os pés altos fora do chão, braça e meia pouco mais ou menos; e mandou passar-lhe uma ponta da corda nos testículos ou grãos, bem apertada e na outra ponta Ihe mandou pendurar meia arroba de bronze, ficando no ar para lhes estar puxando os grãos para baixo; que o pobre miserável dava gritos que metia compaixão, e ao mesmo tempo, lhe mandou pôr uns anjinhos nos dedos dos pés ajuntando-os, que tal foi o aperto, que lhe fez o dito Mestre de Campo, que lhe ia cortando os dedos, e esteve com estes martírios obra de duas horas, que por Deus ser servido não morreu desesperado o arrenegado.
Item 2. Que a uma escrava mestiça chamada Lauriana de idade de 25 anos, pouco mais ou menos, a castigava o dito Mestre de Campo muitas vezes, dando-lhe com uma palmatória de pau pela cara e queixadas do rosto, levantando a mão com a maior força que podia, e andava esta continuamente com o rosto inchado, procedido de semelhante castigo.
Item 3. Que querendo noutra ocasião castigar a mesma dita escrava acima, mandava buscar uma turquesa grande de sapateiro, e a mandava chegar a si, trepando-se ele, o dito Mestre de Campo, em lugar mais alto, e metendo a turquesa aberta na cabeça da dita escrava, tudo quanto apanhava de cabelos fixando a turquesa, lhes arrancava de uma vez.
Item 4. Que em outra ocasião mandou pôr na dita escrava Lauriana um ferro no pescoço, com duas vergas levantadas, em alto, que teriam mais de palmo e meio, e em cada uma delas uma campainha e uma corrente muito grossa no pé, passando-lhe duas voltas pela cintura, indo a ponta dela atar às campainhas, e mais uns grilhões nos pés, como (se estivesse peada) mandando-a assim cortar capim para os cavalos dali a meia légua, e às vezes mais longe, sem lhe dar de comer e sempre morta a fome; e por não trazer em um dia de domingo com brevidade e pressa o capim, a mandou açoitar numa cama de vento por dois escravos, Bastião e Domingos, cada um com suas correias, açoitando a um tempo, que cansados estes, mandou continuar os açoites por outros dois, Narciso e Geraldo, e cansados estes mandou continuar pelos primeiros, Bastião e Domingos, assistindo ele, dito Mestre de Campo Garcia D’Ávila Pereira Aragão a todo este maldito suplício e martírio que teria no chão meio pote de sangue. E depois de tudo isto feito na dita cama de vento, amarrado cada pé e cada braço no ar por sua ponta de corda, com todos os ferros ditos acima, mandando aos ditos escravos a desatassem todos juntos a um tempo de pancadas, para cair acima assim com os peitos no chão do sobrado e levar grande pancada, como assim o fizeram; e depois a mandou meter numa prisão com ordem passada de duzentos açoites cada dia, mandando-lhe levar cada dia uma menina, parva quantia para comer, não consentindo-lhe desse água para beber; e no outro dia lhe mandou dar outra parva quantia de água, sem comer, tendo esta uns anjinhos nos dedos das mãos com todos os ferros já declarados e para comer e beber aquela parva quantia, que lhe davam, se lhe punha encima de um banquinho para comer como cachorro ou outro animal, com a boca no prato, lambendo ou apanhando com os beiços o que podia, por ter as mãos e dedos presos, sem consentir mais lhe fizessem fogo (de noite) e nem lhe dessem quanto o pedisse, para senão agüentar do frio muito que ali fazia no lugar onde tinha sido presa. E depois de tudo isto feito, a mandou amarrar pelos dois braços, cada qual com uma corda, e o guindando em alto no oitão da casa, com os braços abertos, como crucificado, ficando-lhe os pés a uma braça em alto do chão, ele mandou no mesmo tempo amarrar uma arroba de bronze em cada pé, para estarem puxando mais para baixo, com os mais ferros já declarados, enrolados pela denturada (sic) corrente de guindar pedras ou caixas de açúcar, donde a teve nesta forma desde o meio dia até às quatro ou cinco da tarde, urinando-se por si, com semelhante castigo, tolhendo-se-lhe também a fala, por lhe estar estirando os nervos da garganta, como ela assim o disse saindo deste martírio mais morta que viva. E mandou chamar Cosme Pereira de Carvalho e Luiza Mendes, pardas já de idade, para verem a obra de caridade que estava fazendo àquela pobre cristã, e quando elas lhe pediam abreviasse já aquele castigo ou martírio, dizia que aquilo não era nada. E se não a tivesse comprado um pardo chamado Bernardo da Rocha, e a levasse para o Sertão, teria morrido mártir nas mãos daquele Turco.
Item 5. Que a um escravo chamado Caetano, mestiço de idade 30 anos, pouco mais ou menos, pelo apanhar tocando uma rabeca em sua casa não estando ele ali, o mandou pegar e amarrar em uma cama-de-vento, ficando-lhe o corpo no ar, com os braços e pernas abertas atadas com argolas com suas cordas, e o começaram a açoitar desde as dez horas do dia até às quatro horas para as cinco da tarde, por dois açoitadores. E cansados estes, entraram outros dois, tudo a um tempo, como lhe dirá o mesmo açoitado, e em todo este tempo dos açoites, desmaiava o pobre mestiço, ficando sem fala em cujo tempo lhes estava o dito Mestre de Campo botando limão com sal nos olhos, com uma pena de galinha, por sua própria mão, que despertando o dito mestiço com o limão e sal nos olhos, mandava continuar com os açoites, botando-lhe ao mesmo tempo cocos de água fria pelas nádegas, como se fosse um bárbaro com tão horrendo castigo. E depois de açoitado nesta forma, que já não tinha carne nas nádegas, o mandou pôr com uma argola pelo pescoço, ficando em pé não direito, porém quase encurvado, e assim o teve até às dez horas da noite, que por vários peditórios o aliviou da argola, indo dormir em uma corrente, sem querer que ninguém o curasse. E no outro dia de manhã, foi para uma argola, onde esteve todo o dia nu no sol sem comer, nem beber, até às nove horas da noite, que metia compaixão! E no cabo de dois dias, ninguém podia parar junto dele com o infecto que vinha das feridas, que eram tantos os bichos de moscas que parecia que estavam em riba de um defunto já cheio de corrupção. Escapou (vivo) pelo muito trato que tiveram dele suas tias Teresa e Clemência, também elas testemunhas.
Item 6. Que querendo o dito Mestre de Campo Garcia D’Ávila Pereira Aragão ir pescar por seu divertimento, mandou por uma escrava chamada Páscoa a uma lagoa ou rio apanhar isca para a dita pescaria. E por não chegar ao tempo que ele queria, veio para casa e mandou vir uma escada, mandando-a por de alto a baixo, e mandou amarrar a dita crioula na escada com a cabeça para baixo, pés para cima, mandando-lhe meter a cabeça por dentro do derradeiro degrau da escada, ficando-lhe a cabeça ou a testa tocando no chão, e o degrau bem em riba do toutiço (nuca), ficando com a cabeça arqueada, que quase morre afogada ou sufocada, com o degrau que lhe ficava no cangote e dois negros açoitando-a, que por milagre de Deus não morreu afogada ou arrenegada, com tão desastrado e horrendo castigo.
Item 7. Que um menino de seis ou oito anos, chamado Manoel, filho de uma escrava chamada Rosaura, o mandou virar várias vezes, com o devido respeito, com a via de baixo para cima mandando o arreganhasse bem com as duas mãos nas nádegas, estando com a cabeça no chão e a bunda para o ar, estando neste mesmo tempo o dito Mestre de Campo Garcia D’Ávila Pereira Aragão com uma vela acesa nas mãos, e quando ajuntava bem cera derretida, a deitava e pingava dentro da via (ânus) do dito menino que com a dor do fogo, dava aquele pulo para o ar, acompanhado com um grito pela dor que padecia dos ditos pingos de cera quente derretida na via, sendo esta bastante. E disto rindo-se o dito Mestre de Campo, ao mesmo tempo com aquele regalo e alegria de queimar aquele cristão, o mandava que se fosse embora, dizendo: Ides para dentro de casa.
Item 8. Que uma menina de três ou quatro anos, pouco mais ou menos, chamada Leandra, filha de uma sua escrava chamada Maria Pai, a chamou e mandou se abaixasse e pondo a carinha da pobre menina declinada sobre um fogareiro de brasas acesas, e ele o dito Mestre de Campo Garcia D’Ávila Pereira Aragão pondo-lhe uma mão na cabeça, para que a menina com o calor não retirasse o rosto do fogo, em cujo tempo começou a abanar o fogareiro e a outra mão ocupada na cabeça da menina, sem ela a poder levantar, estando já a dita menina com o rosto defronte das brasas tão vermelhas e sapecado com as mesmas brasas, ao tempo que veio passando uma sua mulata, ama de sua casa, chamada Custódia, que vendo aquela heresia, lhe disse, gritando: Que é isso meu senhor, quer queimar a menina, não faça isso meu senhor! Então a largou, rindo-se como cousa que não fazia nada.
Item 9. Que a mesma menina Leandra, em outra ocasião, tirando-se um tacho de doce do fogo, estando o dito Mestre de Campo seu senhor assistindo a feitura do dito doce, chegando naquela ocasião a dita menina lhe perguntou o Mestre de Campo se queria doce, que dizendo a menina que sim, encheu uma colher de prata do doce, tirando-o do tacho, e estando ainda quase fervendo, derramou a colher do doce de repente na palma da mão da dita menina, e virando-se ela a mão no mesmo tempo para derramar o doce da mão por não poder aguardar pela estar queimando, logo investiu o dito Mestre de Campo, atracando-Ihe no pulsinho do braço, tendo a mão (de modo) que ela não o derramasse fora, ameaçando-a com gritos que o comesse e o lambesse e senão, que a mandava açoitar, e a miserável menina assim o fez, estando com a mão preza pelo pulso do bracinho, e saiu desta heresia com a mão e língua queimadas.
Item 10. Que manda as suas escravas deitarem-se com saias levantadas, e ao mesmo tempo, lhes vai botando ventosas com algodão e fogo nas suas partes pudendas, com a sua própria mão, dizendo: para chuparem as umidades - heresia tão ignorada entre a cristandade.
Item 11. Que a uma crioula chamada Teresa, sua escrava, casada, quando a apanhava dormindo, inda com a saia, antes de ser horas de dormir, ou de se deitar, levantando-lhe a saia, lhe metia uma luz acesa pelas suas partes venéreas, e toda a queimava, fazendo-lhe isto várias vezes, em ausência de seu marido, e quando todos os meninos e grandes se deitam neste caso, é à primeira e segunda cantada do galo e assim que o dia vai rompendo, que o dito Mestre de Campo Garcia D’Ávila Pereira Aragão se põe de pé, assim já hão de estar todos desta casa, grandes e pequenos, e o que não se levantou, logo vai à cama onde ele ou ela dorme, e com um chicote de açoitar cavalos, que já leva na mão, o põe miserável, e assim andam todos tresnoitados.
Item 12. Que apanhando o dito Mestre de Campo umas suas escravas dançando, depois de as mandar açoitar rigorosissimamente, lhes mandou botar uns papagaios de algodão com azeite nas partes venéreas, largando-lhe fogo, dizendo que era para lhes tirar o mesmo fogo, que todas as queimou.
Item13. Que uma sua escrava mestiça, chamada Rosaura, e duas mulatas mais, Francisca e Maximiana, as mandou despir nuas, em uma sala, e ajuntando na mão dois rabos de um peixe chamado arraia, com eles as açoitou rigorosissimamente por todo o corpo, sem reservação de lugar algum, ficando estes corpos alanhados e cutilados, já sem pele, mandando depois arrancar os cabelos do pente (púbis) umas às outras, estando ele o dito Mestre de Campo, no mesmo tempo, com a sua própria mão, barreando os ditos púbis com cinza quente para se arrancarem melhor, e quanto mais gritavam as pobres, das dores que padeciam, mais com força mandava que arrancassem, lavrando ao mesmo tempo os malditos rabos de arraia. E depois de bem barbeadas nesta forma, mandou a cada uma se lhe desse vinte dúzias de açoites, e depois destas surras dadas, as mandou meter em correntes, e no dia seguinte mandou continuar com a mesma oficina dos açoites, e ficaram as miseráveis tão escandalizadas (maltratadas) do dito púbis e partes venéreas, que lhes inchou e pelaram da cinza, ficando o depois tudo em feridas e carnes vivas.
Item 14. No dia seguinte, sexta-feira da Paixão, mandou açoitar a dita Rosaura acima, e seu filho chamado Manuel, o qual já declarei no capítulo dos pingos de cera derretida, ambos rigorosamente; e a dita Rosaura, depois de açoitada, lhe mandou pôr uma grossa corrente no pescoço e uns grilhões nos pés, e depois disto feito, mandou chamar a um Alexandre José, rabequista, e metendo-lhe uma rabeca na mão, mandou que tocasse, estando com muita alegria no dito tempo e dia.
Item 15. Que costuma açoitar seus escravos maiormente no dia de Sexta Feira da Paixão, estando toda a semana muitas vezes sem açoitar. E no dia de Sexta Feira, anda em casa como endemoniado, ora dizendo pela casa passeando entre as suas escravas: A quem açoitarei eu hoje? ora dizendo: Ando com vontade de ver sangue de gente açoitado. E assim andam todos de casa assustados, vendo que é padecente. E naquela lida em que anda das nove horas por diante, manda pegar naquela ou naquele que lhe parece, e os manda açoitar por dois escravos, tudo a um tempo, até cansarem. E cansados estes, manda continuar por outros dois, ora postos em escadas crucificados, ora em camas de vento no ar, ora como lhe parece, sempre com martírios e heresias, deixando no chão poças de sangue, regalando-se de ver os cachorros comerem e beberem o sangue destas miseráveis criaturas.
Item 16. No mesmo dia anda em casa com um pauzinho na mão do tamanho de um palmo, pouco mais ou menos, com uma ponta, chega-se a qualquer escrava, põem-se em pé junto dela, e começa a meter-lhe o pauzinho pelo corpo, com quem quer furar: aqui mete, ali mete, e há de estar aquela escrava quieta suportando aquela tirania, ainda que lhe doa, e se ela buliu, como coisa que teve cócegas, ou recuou para trás, (diz): Pega! vai açoitar! e lá vai aquela pobre mártir. Muitas vezes busca para mandar açoitar no dia da Paixão.
Item 17. Que em outro ano, na Semana Santa, na Quarta Feira de Trevas, açoitou e palmateou dois negros rigorosissimamente, Ambrósio e Narciso, e na Quinta Feira de Endoenças, tornou com a mesma diligência dos açoites de manhã aos mesmos. E de noite mandou açoitar a uma mulata, Francisca do Carmo, rigorosissimamente. E na Sexta Feira da Paixão, fez os mesmos castigos a outros escravos, como eles e elas assim o poderão confessar, e à forma como os castigou, e todos os anos na Semana Santa faz estes castigos: para ele é o melhor prato, sem ficar Semana Santa alguma, há muitos anos, que não castigue naqueles dias, mormente na Sexta Feira da Paixão, com tanta alegria e vontade, que parece uma onça morta à fome em riba de uma carniça. E já se chegou a ele uma moça forra chamada Leandra de Freitas, achando-se nessa casa e suplício neste dia, pedindo ao dito Mestre de Campo Garcia D’Ávila Pereira Aragão pelo amor de Deus não açoitasse naquele dia da Paixão do Senhor, respondeu o dito Mestre de Campo: Eu hoje, neste dia é que açoito! mandando continuar com os açoites mais rigorosamente.
Item 18. Que açoitando no mesmo dia o dito Mestre de Campo, em outro ano, a dois mulatos, Geraldo e Maximiana, rigorosamente, que disse a Manuel Francisco dos Santos, seu foreiro e compadre, se tinha regalado em tal dia de ver cachorros comer e beber sangue de gente açoitada, e foi certo que corria sangue dos dois cristãos pela terra, que ensopava a mesma terra, parecendo um pote de água que se tinha derramado como assim dirão os mesmos escravos.
Item 19. Que haverá cinco anos, que prendeu, depois de bem açoitadas, uma mulata escrava chamada Francisca do Carmo, e outra, chamada Rosaura, cada uma com sua corrente, com a coleira pelo pescoço, e a outra ponta pregada no sobrado, onde estiveram presas nesta forma, sem dali se moverem de dia, nem de noite, para parte alguma, e haverá um ano, que as despregou do sobrado onde estavam presas, porém andando soltas servindo a casa com as mesmas correntes no pescoço pela coleira com mais comprimento, enrolada pela cintura, e só se tiram estas correntes do pescoço e cintura destas miseráveis no dia que se vão confessar pela desobriga da quaresma de ano em ano, porém vindo da confissão, logo para já lhe tornam a pôr as correntes na mesma forma dita acima, e há cinco para seis anos que andam estas pobres cativas com estas jibóias atracadas em si pela cintura e pescoço, sem delas poderem ter alívio algum, e já andam com o pescoço cheio de calos, feridos das coleiras, que continuamente trazem em si, assim dormindo, comendo, e assim doentes em uma cama, e assim toda a vida sem refrigério algum. Nascido este martírio, sem outra razão, ou fundamento algum, se não pelas querer sujeitar com ele a ofensa de Deus, e quando não querem, indo da mesma sorte, lavra a novena de bacalhau, a novena de palmatoadas, com três dúzias de manhã, e três dúzias à tarde, e no outro dia, o mesmo, e assim vai continuando este castigo ou novena não ficando de fora os anjinhos, até elas se sujeitarem com ele a ofensa de Deus, contra a sua vontade. E esta devoção do Mestre de Campo Garcia D’Ávila Pereira Aragão é qual nas suas escravas da porta a dentro e ainda porta a fora, com as mesmas suas afilhadas de batismo, como sucede e sucedeu com Ana, sua afilhada, filha de Martina já defunta, que quando ela não quer, a sujeita com vários açoites, anjinhos e martírios.
Item 20. Que esta Francisca do Carmo dita acima, atracada com a dita corrente, mandou ele, o dito Mestre de Campo que fosse ela dar de comer todos os dias a uma onça que tinha presa em uma corrente em um cepo, numa casinha evitando que os mulatos machos não dessem mais de comer à dita onça, só sim a dita mulata, por ser a raiva que dela teve, por evitar com ele dar ofensa a Deus: e isto o fazia com tamanho ânimo, oferecendo-se a Deus, gritando à onça, que nunca a ofendeu. Porém, como Deus Nosso Senhor é pai de misericórdia e piedade, sabia o sentido com que o dito Mestre de Campo mandava aquela miserável botar de comer à onça, para ela a comer. Foi servido amanhecer um dia a dita onça morta, para alívio do susto com que aquela miserável escrava vivia, pois estava vendo o dia que a onça faria dela carniça ou pasto.
Item 21. Que estando lendo livros de noite, deitado em uma rede, manda as suas escravas ou meninos pegar em uma luz, e ali está a pobre mulher ou o pobre menino em pé com a candeia na mão, desde as sete ou oito horas da noite, até meia noite, pouco mais ou menos, sem dali se mover, sempre com o cuidado de atiçar a candeia, e se daquele excesso de estar em pé até aquelas horas lhe sobrevém alguma coisa na cabeça, talvez de fracos, por não terem comido naquele dia, por andarem sempre mortos a fome ou outra qualquer moléstia ou dor, logo manda no mesmo instante açoitá-lo rigorosissimamente, ainda que seja meia noite, amotinando e assustando a casa, dizendo ele nela ou nele menino velhacaria, sendo estes candeeiros, veladores e castiçais, mas tudo é estar esperando ou buscando ocasiões de abusar aqueles pobres cristãos.
Item 22. Que a um menino de quatro anos, chamado Arquileu, filho de uma sua escrava, chamada Prudência, vigiando uma figueira (para que) os passarinhos não comessem os figos dela, e por achar um figo picado dos ditos passarinhos, o açoitou com um chicote de açoitar cavalos, pondo-o nu, rigorosissimamente pelas costas, pernas e todo o corpo, e principalmente pela barriga, já com feridas tão idôneas (hediondas?) e feias, que senão fora uma sua mulata chamada Custódia, ama de sua casa, que desesperadamente veio de dentro, pegando no menino e o meteu entre as pernas, cobrindo-o com a saia, dizendo: também quero morrer, mate-me a mim também, que depois de morta escusarei de ver tantas heresias que se fazem nesta casa sem temor de Deus e de sua Mãe Santíssima. Então sossegou o Mestre de Campo daquela maldita fúria e barbaridade com que estava martirizando aquele pobre cristão anjinho, e senão, matava-o debaixo daquele chicote, porque já lhe tinha comido toda a pele do corpo, principalmente da barriga, que estava já tudo em carne viva. E ela olhando e vendo em seu filho aquela heresia e barbaridade, como estaria aquele coração atormentado e agoniada! E assim se observa o dito Mestre de Campo Garcia D’Ávila Pereira Aragão com todos os meninos de sua casa, que vê-los das nádegas, metem compaixão. E se a mãe do filho que apanha mostra tristeza e sentimento, também vai ao suplício. E se o filho mostra tristeza e sentimento da mãe que apanha, também vai ao suplício. E se o parente, que apanha, mostra tristeza, também apanha: hão de ver e presenciar, e andar alegres. Enfim, não digo nada ao muito que tinha que dizer.
Item 23. Que a um menino de oito ou nove anos, chamado Jerônimo, depois de o esbordoar com uma tábua, deixando-o quase morto, por não reservar lugar por onde lhe dava, o mandou açoitar rigorosamente que metia compaixão, mandando depois pôr-lhe uns grilhões nos pés e uma argola de ferro no pescoço, com hastes levantadas para lhe por campainhas, e mandando furar-lhe os rejeitos dos pés e pelos buracos enfiar uma corda e pendurá-lo ficando com os pés para cima e a cabeça para baixo. E depois disto, o açoitou novamente rigorosissimamente que o deixou quase morto.
Item 24. Que a uma mulata chamada Maria do Rosário estando açoitando-a encima de um banco, supõe-se três ou quatro horas em açoites, que já não havia santo nem santa nem Paixão de Jesus Cristo, nem a Virgem Nossa Senhora, por quem ela chamava que a valesse, e por este respeito, mais acendidamente mandava que puxassem pelos açoites, gastando todo o tempo acima declarado que quase esteve a dita mulata blasfemando, pedindo ao diabo que a acudisse e a valesse, que era tanto o sangue que corria em regatos. E depois disto, a mandou logo no outro dia seguinte para uma sua malhada do tamanho quase do terreiro desta cidade, ou metade dele, mandando capinasse a dita mulata com as mãos, onde esteve todo dia ao sol sem comer no dito serviço, ficando por todos os dias arrancando vassourinhas e ervinhas e outras imundícies mais de ervas que se criam entre o capim, e sem comer, à chuva e ao sol, sem dali se arredar, comendo somente o que de salto apanhava das mãos das outras parceiras e parentes que por caridade lhe davam.
Item 25. Que a um escravo chamado Antônio Magro, contratando o dito Mestre de Campo Garcia D’Ávila Pereira Aragão com ele dar-lhe o seu valor, passar-Ihe carta de alforria, e depois que lhe comeu a esta conta umas vacas e uns capados, galinhas e leitões, à conta do dito valor, a conta que lhe passou foi uma noite à senzala do dito negro, acompanhado com seis escravos, e mandando-o pegar uns pelas mãos, outros pelos pés, e ali o amarraram, tapando-lhe os olhos e a boca, derrubando-o no chão, lhe mandou botar à força uma ajuda (clister) de pimentas malaguetas com pito de preto e metendo ele o canudo a força, que tudo já levava pronto para o dito benefício ou carta de alforria, mandando o largassem depois disto. Que esteve à morte, sendo de idade de setenta para oitenta anos.
Item 26. Que a uma novilha prenhe de uma pobre parda, chamada Ana Maria, dizem ser irmã bastarda do dito Mestre de Campo, por vir ao seu curral junto com outro gado seu, por assim virem do pasto incorporados, a mandou pegar e amarrar, ficando-lhe as armas bem encostadas e arrochadas em um mourão, e com fachos de fogo que mandou fazer, e mandou queimar toda pela barriga, peitos e partes venéreas, olhos e principalmente todo empenho da parte de baixo, que era de uma dor de coração, ver as heresias que mandou fazer àquele pobre animal, estando preso sem dali se poder escapulir, que ainda os Turcos não fariam semelhante barbaridade, só sim os Judeus. E não durou esta pobre novilha quinze dias, perdendo-a sua dona, que é o que ele queria.
Escravos da casa, que todos sabem:
José Pereira - Francisco Gago - Amaro - Geraldo - José - outro José - Bastião, sua mulher Teresa - Maria do Rosário - Páscoa - Maria crioula - Maria Pais - Custódia - Ana - outra Ana Marinha, sua afilhada - Rosaura - Francisca do Carmo - Manoel mulato - outro Manoel, dos pingos de cera derretida quente - José Mais - e outros mais escravos que todos sabem destas heresias.
II. Heresias ditas e feitas contra
Deus Nosso Senhor e os Santos
Item 27. Que dizendo José Ferreira Vivas (o denunciante) ao Mestre de Campo que Cristo Nosso Senhor havia padecido gravíssimos tormentos desde a hora de sua prisão até no final da hora de sua morte, crucificado em sua carne e que só um poder divino feito homem podia tolerar tão graves tormentos por nosso amor, para nos resgatar do cativeiro do Demônio, respondeu o dito Mestre de Campo, por sua própria boca estas formais palavras: "Que diz, homem? É verdade que morreu um Apóstolo, porém não se sabe quem era". Mostrando neste dito, pronunciado por sua própria boca, ser suspeito na fé, em não crer que Deus Nosso Senhor se fizera homem, para satisfazer por nossos pecados, sofrendo a pena de morte em seu corpo santificado, o que não pudera fazer se não se fizera homem.
Item 28. Que disse o dito Mestre de Campo ao Capitão Antônio Pamplona Vasconcelos: que se fora senhor de vinte Igrejas, fizera nessas vinte estrebarias de cavalos.
Item 29. Que tem o dito Mestre de Campo várias imagens de Santos e santas na sua casa, todos estercados de pombos, morcegos e outras imundícies mais, com pouco asseio e reverência.
Item 30. Que queria o dito Mestre de Campo queimar um caixão com os ornamentos da Santíssima Madre de Deus, e por assim lho impedir um irmão, ou Manuel Baptista ou Florêncio Vieira, mandou botar o caixão da parte de fora da sua capela, para tudo o tempo consumir.
Item 31. Que disse o dito Mestre de Campo, que tomara já que o diabo lhe derrubasse a sua capela ou uma tempestade a botasse no chão e que quebrasse todos os santos e santas que nela estão.
Item 32. Que diz o dito Mestre de Campo que há de tomar todos os santos e santas da dita sua capela, e os há de meter dentro de um caixão e depois lhes há de mandar largar fogo, para os queimar a todos, e que a Capela há de fazer dela, (com o devido respeito), um chiqueiro de porcos, achando melhor patrimônio para a sua alma fazer da Igreja sagrada casa de cevados, do que dá-la ao Reverendo Vigário para fazer nela suas funções paroquiais e obséquio dos Santos.
Item 33. Que me disse o dito Mestre de Campo que se morrer nos caminhos do Sertão, que o enterrassem no mesmo lugar, sem cruz alguma, e que de nenhum modo o levassem a alguma igreja, nem mesmo a lugar sagrado, e que antes queria ser sambenitado por judeu, do que ser Mestre de Campo.
Item 34. Que disse o dito Mestre de Campo Garcia D’Ávila Pereira Aragão ao Capitão Luís de Varjão Brandão, que quando escrevia algumas cartas aos homens por sua própria letra, que cuidava muito nelas em judiar dos homens.
Item 35. Que disse o dito Mestre de Campo a José Francisco Vivas, que ele era judeu, e que quando conversava com os homens, cuidava muito na sua conversa em judiar deles.
Item 36. Que dando uma moça forra, chamada Benedita, da mesma casa, a um mulato, escravo de José Pires de Carvalho, uma Bula para nela lhe por o seu nome e pondo o dito mulato a bula aberta por cima de uma mesa, indo primeiro a certo serviço em casa, em cujo tempo passando acaso por ali o dito Mestre de Campo, e vendo a Bula em riba da mesa e o tinteiro junto, pegou na pena tirando tinta, pôs ou escreveu no lugar onde se põem os nomes (com o devido respeito) estas palavras MERDA – CAGALHÃO. E vindo depois o dito mulato, que pegando na Bula para lhe por o nome, e vendo aquela heresia, a mostrou a seu Senhor José Pires de Carvalho, que pedindo este uma tesoura, dizendo: Jesus, Jesus e cortou as ditas palavras. Testemunhas de que assim sucedeu: o padre Brás Pereira Soares, a mesma Benedita dona da Bula, sua mãe Luzia Mendes, sua irmã Rosa Maria, Maria do Nascimento, Agostinho Dias, o mesmo José Pires seu cunhado, e outras muitas pessoas.
Item 37. Que tomou o dito Mestre de Campo uma imagem de um santo ou santa bento, que estava na sacristia da sua capela, e o meteu dentro de um cesto velho, sem mais toalha por baixo, nem pano algum, mais que pondo a imagem dentro do cesto e cobrindo-a com uma folha de bananeira, assim a mandou levar à sua avó, Dona Ignácia de Araújo Pereira, em Jacuípe, três léguas distante de sua casa, que quando viram o cesto, entenderam seriam bananas, que posto o cesto no chão e vendo que era a imagem coberta por desprezo com folha de banana, logo Padre Brás Pereira Soares, Vedor e Procurador da dita Dona Ignácia, mandou com muita pressa retirar o cesto para dentro da casa, dizendo fôra bom não estar ali naquela ocasião pessoa de fora, por não presenciar aquela heresia.
Item 38. Que duas imagens que lhe ficaram, mandou ao sacristão Florêncio Vieira, na mesma ocasião, fizesse um buraco no chão na mesma sacristia, e os enterrasse, dizendo o dito sacristão que não fazia tal, ainda que o matasse; sempre mandou o dito Mestre de Campo que fizesse o buraco, que ele os enterraria, e fazendo o sacristão o buraco, ele os metera dentro, pegando um pelas pernas, outro pela cabecinha, e os lançava dentro, botando-lhe terra, (suponho) com os pés, ou se mandou botar, e socar. E se isto é assim ainda hão de estar enterrados, se a terra os não desfez na mesma sacristia, haverá nove ou dez anos, e quem pode depor esta mesma verdade, é a mesmo sacristão Florêncio Vieira, com quem se passou esta heresia, o qual se acha morando com Dona Ignácia de Araújo Pereira, avó do dito Mestre de Campo.
Item 39. Que este caso, dizem, que o contou uma parda chamada Antônia Barbosa, casada com um Amaro dos Banhos, mora hoje esta em companhia de um Manoel Francisco dos Santos, morador no sítio dos Campos, na mesma Torre. E diz ela contando esta história a uma crioula chamada Clemência, forra, casada com João da Casta, preto forro, pessoa de crédito, ainda que preto, por se mandar inquirir segunda vez da dita Antônia Barbosa, e disse ela por sua própria boca que morando em Monte Gordo, Freguesia de Santo Amaro do Ipitanga, passara da Torre este dito sacristão Florêncio Vieira, por sua casa ao meio dia, onde entrou para descansar o sol, e que estando ele sentado lhe perguntara a dita Antônia Barbosa se ele já havia feito a sua capelinha, e que ele respondera que não queria fazer mais a capelinha, por vir fugindo daquele Judeu, que era o Mestre de Campo Garcia D’Ávila Pereira Aragão, por ter enterrado dois santos na sacristia, contando a história que ele mandara o cesto coberto com as folhas de bananas e que os dois que haviam ficado, lhe mandara fizesse um buraco e os enterrara, e pondo ele dúvida em tal fazer, dizendo antes queria morrer, sempre o dito Mestre de Campo lhe mandou ou obrigou fizesse o buraco, que os enterraria e assim o fez, pegando um pelas perninhas, outro pela cabecinha, e os lançara dentro do buraco, lançando-lhe terra com os pés e este dito sacristão o poderá depor melhor, e com mais circunstâncias e a dita Antônia Barbosa é digna de se lhe dar crédito e não tinha fundamento para levantar semelhante balela, e falou nesta estória conversando com esta Clemência em tempo de trovões, dizendo que tinha medo nesse tempo quando fazia trovões, não caísse aquela casa por ter feito o dono dela aquela heresia, e por aqui foi que se descobriu a que estava encoberto tantos anos.
Item 40. Que o dito Mestre de Campo, andando uns devotos correndo a Santa Via Sacra em uma Sexta Feira da Paixão, começou de sua casa, em lugar reservado, a apedrejar com pedras os ditos devotos, andando estes neste santo exercício.
Item 41. Que em outra ocasião, vindo o dito Mestre de Campo de cavalo encontrando com outros devotos, correndo a Via Sacra, meteu o cavalo entre eles, espalhando uns aqui, outros por ali, que tudo espalhou e perturbou, a ali com medo dele se acabou o dito exercício.
Item 42. Que uma véspera de São João, ajudou uma Missa que dizia o Reverendo Padre Silvestre Carneiro de Sá, seu Capelão, em uma capela, e no deitar do vinho no último cibório, deixou o dito padre na galheta quanto lhe bastasse para celebração do Santo Sacrifício da Missa no dia seguinte de São João para os seus aplicados a ouvirem com sermão que naquele dia pretendia fazer. Que o dito Mestre de Campo alcançando isto, foi maliciosamente à galheta e bebeu o vinho que nela havia para o dia seguinte. E dando disto fé o sacristão Florêncio Vieira, lhe disse: Mas se meu Senhor bebe o vinho, amanhã o Padre não diz missa. Respondeu o dito Mestre de Campo: Amanhã a despenseira que dê vinho para a Missa. E de madrugada partiu para o Monte Gordo, distância de três léguas, passando ordem à despenseira não desse vinho quando lho pedissem para a Missa, e se ela o desse, e se dissesse Missa com o seu vinho, que ela lho pagaria, e como ele não estava em casa, não se lhe pediu nem se disse a Missa, que é o que queria, pois com a mesma malícia bebeu o vinho da galheta. E chegando o Padre no dia seguinte de São João, com todo o povo daquele lugar para ouvirem a Missa e sermão, e querendo o Padre vestir-se a horas para a dita celebração, foi o sacristão pedir o vinho à despenseira, a qual respondeu não havia vinho, confessando a ordem que Ihe deu seu Senhor, de que fez presente ao Padre. Isto foi sabido já perto das onze horas, ficando o povo amotinado contra o Padre, que se não tinha vinho lhes podia fazer saber cedo, para cada qual buscar Missa a tempo e horas, para não ficarem sem Missa no dito dia, que não houve desculpa do miserável Padre para ter admitida a sua verdade e tragédia do dito Mestre de Campo, com o dito povo e seus aplicados, e daqui procedeu correr o dito Mestre de Campo com o pobre Padre da dita sua capela e terra, por este ter com ele uma satisfação, pelo respeito do dito acima.
Item 43. Que tem o dito Mestre de Campo uma cabocla feita de barro, do tamanho de dois ou três palmos, feita do tempo antigo dos seus antepassados, com a boca aberta e feia, com a língua de fora, e a pôs em uma cova que tem em uma parede como oratório, com uma vela acesa em um castiçal nos pés da dita figura, como se estivesse aos pés de algum santo, e ali a esteve adorando como se fosse alguma imagem de algum santo, o tempo que lhe pareceu, até tirar o castiçal com a vela, o que presenciou o Capitão do Mato Alexandre José.
Item 44. Que passando por varias moradores no mesmo lugar da Torre, de cavalo, com uma sua mulata nas ancas do cavalo, chamada Custodia, perguntou a um de seus moradores: Como se chamava uma coisa que tem dentro as partículas ou o Sacramento? Responderam que chamava-se Custódia. Disse então o Mestre de Campo Garcia D’Ávila Pereira Aragão: Pois eu aqui levo a Custódia no cu do meu cavalo. Deste fato, poder-se-á lembrar Luzia Mendes ou sua filha, Dona Rosa Maria, Maria do Nascimento, Agostinho Dias, que eram todas moradores nesse mesmo lugar, e outras pessoas mais.
Item 45. Que indo certos mascates à presença do dito Mestre de Campo com várias imagens pequenas de verônicas, cruzes, crucifixos, e outras mais, pegou o dito Mestre de Campo em um feitio de um Menino Jesus e tendo-o nas mãos, o deixou cair no chão que o mesmo mascate o levantou, e havendo quem lhe perguntasse depois por que deixou cair das mãos o Menino Jesus, respondeu o dito Mestre de Campo: Ele não era Menino Jesus porque se deixou cair e não se deteve no ar. Esta também a presenciou o mesmo Capitão Alexandre José.
Item 46. Que tomou a Cabocla de barro acima dita, e a meteu em uma cama de colchão entre dois lençóis mui bem lavados, e mandou chamar o Padre Antônio Félix para vir a uma confissão, que chegando o dito Padre, mandou confessasse aquela enferma, e foi descobrindo o lençol, amostrando a dita Caboclinha, dizendo: Aqui está a enferma confessa. E vendo o dito Padre aquela heresia, foi virando para trás, dizendo: Boas asneiras são estas, que com riso disfarçou o dito Mestre de Campo esta tratada como cousa que não tinha feito nada. Esta também a presenciou o Capitão Alexandre José.
Item 47. Passando em sua casa o dito Mestre de Campo, por uma casinha ou camarinha de cima, e tendo uma imagem no chão (suponho) de Senhora Santana, naquele passar pela imagem pela pressa com que ia, pegou o timão na santa em alguma coisa que ficasse pegado, virou com uma fúria e raiva para trás, e deu tal coice na santa, que atirou com ela deitada no chão, e assim a deixou, seguindo para diante ao intento com que ia, sem fazer mais caso de a levantar e a reverenciar.
Testemunhas referidas:
Luiz Mendes - Cosma Pereira de Carvalho - Maria do Nascimento e seu marido João Baptista - Ana sua filha - Agostinha Dias - Rosa Maria de Jesus - Filha de Luzia Mendes - Benedita Vieira, sua irmã - Clemêncio mestiço - Teresa Mestiça e sua irmã - Mariana Vieira - Sua filha Ana Maria - Ana Maria passageira da passagem da Pojuca - Antônio Tavares, sua mulher Marceliana - José Fogaça - Florência sua mulher Margarida, irmã da dita Florência - Teresa de tal, mãe de Manuel, pai de Rosa Maria de Jesus - Mulher do filho de Luiz Álvares - Felipa Pereira, Manuel Alexandre seu neto - Margarida Ferreira - Maria da Cruz - Joana de tal, no sítio da Pinguela - Maria Aranha, sua filha - Leandra de Freitas - Isabel de tal, sua mãe Leonor, moradores na Praia da Torre - Francisco Tavares - Luís da Costa, sua mulher Felícia de tal - o Padre Brás Pereira Soares.
Este fez: José Ferreira Vivas
III. A Casa da Torre da Bahia
A fim de auxiliar na reconstituição do interior, dos espaços, objetos, móveis, pessoas, eventos, redes de relação e do quotidiano da famigerada Casa da Torre, enumero e esclareço algumas informações etnográficas referidas neste documento que permitem-nos visualizar parte do "recheio" e entorno desta propriedade, assim como alguns aspectos cruciais da vida privada de seus proprietários, escravos e agregados nos finais do Século XVIII:13
I. Espaços da propriedade rural
II. Cômodos e detalhes arquitetônicos
III. Móveis
IV. Objetos do lar e utensílios
V. Iluminação e combustão
VI. Imagens
VII. Ferramentas e instrumentos
VIII. Alimentos e plantas
IX. Instrumentos de tortura
X. Medicina
XI. Celebrações
XII. Personagens e categorias sociais
XIII. Animais
Notas
1 Este artigo, em versão parcial, foi originalmente publicado com o título "Terror na Casa da Torre". In: Reis, João José (Ed.), Escravidão e Invenção da Liberdade, São Paulo: Editora Brasiliense, 1988, p.17-32. Agradeço ao CNPq as Bolsas de Pós-doutorado e de Pesquisador I-A, que me possibilitaram realizar pesquisas em Portugal, a partir de 1983, ocasião em que, graças à generosidade da historiadora Ana Maria Cunha, da Universidade de Lisboa, tive acesso a este documento aqui transcrito.
2 GOULART, José Alípio. Da palmatória ao patíbulo. Rio de Janeiro: Editora Conquista, 1971, p. 18.
3 CALMON, Pedro. História da Casa da Torre: uma dinastia de pioneiros. (1940) São Paulo: Livraria José Olympio Editora, 1958; História da Casa da Torre. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1984.
4 MIRA, João M. L. A evangelização do negro no período colonial brasileiro. São Paulo: Loyola, 1983.
5 BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos. São Paulo: Grijalbo, 1977.
6 ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976.
7 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, Proc. nº 14004.
8 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Manuscritos do Brasil, nº 43, fl. 155.
9 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Manuscritos do Brasil, nº 43, fl. 157.
10 RAMOS, Arthur. Castigos de escravos, Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, v. 47, maio de 1938; COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1966; FREYRE, Gilberto. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX, Brasiliana, v. 370, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979; MOTT, Luiz. Os escravos nos anúncios de jornal de Sergipe, Anais do V Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, v.1, 1986, p.3-18.
11 Calmon, op.cit., 1984, p. 19.
12 O padre Antônio Gonçalves Fraga, natural da freguesia de S. Pedro do Monte da Muritiba, termo da Vila de Cachoeira, era vigário na vila de Santo Amaro do Ipitanga. Recebeu a confirmação de Comissário do Santo Ofício em 1765. O que confirma a datação deste documento na segunda metade dos setecentos. ANTT, Habilitações do Santo Ofício, Maço 153, Diligencia 2438. Agradeço a Grayce Souza, doutoranda da Universidade de Vitória da Conquista, pela indicação deste documento.
13 "A Casa da Torre de Garcia d’Ávila localiza-se no atual município de Mata de São João, no litoral do Estado da Bahia. Erguida sobre uma elevação na atual Praia do Forte, no litoral de Tatuapara, foi originalmente denominada por seu proprietário como Torre Singela de São Pedro de Rates, embora tenha ficado mais conhecida como Castelo de Garcia d’Ávila, Torre de Garcia d’Ávila, Forte de Garcia d’Ávila ou Casa da Torre. Foi o embrião de um grande morgado no estilo feudal que se iniciou na Capitania da Bahia, ainda no século XVI e que, durante duzentos e cinqüenta anos, só fez se expandir ao longo das gerações dos senhores da Casa da Torre pela quase totalidade do Nordeste brasileiro. Representou grande poder militar no período colonial, ajuda sem a qual o Nordeste do Brasil possivelmente teria sido perdido para a França ou Holanda. De 1798 em diante, esteve envolvido nas lutas pela Independência do Brasil de Portugal e teve muitos de seus membros agraciados com títulos de nobreza por Dom Pedro I e Dom Pedro II. A Casa da Torre constituía-se em uma espécie de mansão senhorial, ainda ao estilo manuelino em uso por Portugal nas suas possessões ultramarinas no início do século XVI, erguida por Garcia d’Ávila, a partir de 1551, para sede dos seus domínios, cumprindo o Regimento passado pelo rei D. João III. Data a sua construção entre 1563 e 1609, referindo Gabriel Soares de Sousa, no Tratado Descritivo do Brasil em 1587, como um complexo composto "de moradias e defensas, capela e um baluarte vigilante onde ardiam, em circunstâncias especiais, fogos sinaleiros." (p.83). Está representada por João Teixeira Albernaz, o Velho, isolada sobre um montículo, como uma pequena torre ameada, com três pavimentos marcados por linhas de seteiras ("Bahia de Todos os Santos", 1612. Livro que dá Razão do Estado do Brazil, c. 1616. Biblioteca Municipal do Porto). Em alvenaria de pedra e cal, tinha a função de vigiar o sertão por um lado, resistindo aos ataques dos indígenas revoltados, e o mar pelo outro, resistindo aos corsários que então procediam razias no litoral. No contexto da segunda das invasões holandesas do Brasil (1630-1654), Francisco Dias de Ávila Caramuru (c.1621-1645), auxiliou na defesa contra os neerlandeses, fornecendo homens e víveres. A Casa da Torre foi utilizada como refúgio temporário por Giovanni di San Felice, conde de Bagnoli, que assumiu o comando das forças portuguesas, em 1636, após o desastre na batalha de Mata Redonda, 1936. (GARRIDO, 1940, p.83). Dos domínios da Casa da Torre partiram as primeiras bandeiras sertanistas que introduziram a pecuária no Nordeste do Brasil: Francisco Dias de Ávila II (c.1646-1694), na segunda metade do século XVII, após dominar os índios Cariris, ampliou as fronteiras deste latifúndio familiar até aos sertões de Pernambuco. No século seguinte, o seu sucessor, Garcia de Ávila Pereira, atendeu solicitação do Governador-Geral D. Rodrigo da Costa (1702-1705), para substituir o antigo Forte da Praia, então desaparecido, e fez construir às próprias expensas o Forte de Tatuapara, em alvenaria de pedra e cal (Carta a Garcia d’Avila (3º) em 23 de Agosto de 1704. in: Anais do Arquivo Público da Bahia (v. VI), p. 157-158. Documentos Históricos (v. XL), p. 180. Este morgado comandava, na ocasião, um Regimento de Auxiliares composto por três Companhias, com a função de guarnecer a costa entre o rio Real e o rio Vermelho (CALMON, 1958, p.130). De acordo com Garrido (1940), a sua artilharia teria sido completada em torno de 1710-1711 (op. cit., p. 83). Com a morte de Garcia de Ávila Pereira de Aragão, em 1805, na ausência de herdeiros, o morgadio da Torre passou para os Pires de Carvalho e Albuquerque (SOUSA, 1983, p.111). Cf. BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O feudo: a Casa da Torre de Garcia d’Ávila: da conquista dos sertões à independência do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 601p. ISBN 85-200-0523-3; BARRETO, Aníbal (Cel.). Fortificações no Brasil (Resumo Histórico). Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1958. 368 p.; GARRIDO, Carlos Miguez. Fortificações do Brasil. Separata do v. III dos Subsídios para a História Marítima do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Naval, 1940; Pessoa, Ângelo Emílio da Silva. As ruínas da tradição - a Casa da Torre de Garcia d’Ávila: família e poder no Nordeste Colonial. São Paulo. Doutorado em História FFLCH-USP, 2003; SOUSA, Augusto Fausto de. Fortificações no Brazil. RIHGB. Rio de Janeiro: Tomo XLVIII, Parte II, 1885. p. 5-140; Wikipédia, a enciclopédia livre. http://pt.wikipedia.org/wiki/Casa_da_Torre.