Capítulo 8 - Os índios do sul da Bahia: população, economia e sociedade (1740-1854)1
Índios da Bahia, príncipe Maximiliano Wied-Neuwied, 1817.
Introdução
Em nossas pesquisas sobre a etno-história dos índios no Nordeste do Brasil, se tomarmos como referência três capitanias limítrofes – Bahia, Sergipe e Piauí – a primeira constatação que aflora ao iniciar-se a coleta de material, é a riqueza e abundância de informações sobre os nativos da primeira Capital da Colônia, em detrimento da raridade e laconismo de dados sobre as outras Capitanias. A situação privilegiada de sede do governo favoreceu a presença na Bahia de uma elite de funcionários, seja civis, seja eclesiásticos, que cumpriram com maior inteligência suas obrigações de enviar para o Reino "memórias" sobre as regiões onde exerciam suas funções administrativas. Sendo Salvador a principal porta de entrada na América Portuguesa até os meados do século XVIII, tal fator constituiu igualmente uma vantagem significativa no maior acúmulo de visitantes passageiros que deixaram seus relatos sobre a Bahia vis-a-vis as outras regiões.
No que se refere ao Sul da Bahia, área geográfica coberta por este artigo, o fato de tratar-se de um espaço periférico ao latifúndio canavieiro, redundou numa forma diferente de conquista, ocupação do solo e contato com os indígenas, contato até certo ponto menos deletério do que o observado entre os Tupinambá do Recôncavo e arredores da Bahia de Todos os Santos. Não é sem razão que são ainda hoje em dia os Pataxó do sul da Bahia o grupo indígena mais reivindicativo e batalhador de todo o Estado.
Nosso interesse por esta área ultrapassa os limites da etnia ameríndia. Em 1976, tivemos a alegria de descobrir no Arquivo da Cúria Arquidiocesana de Salvador um longo manuscrito inédito, datado de 1813, intitulado "Livro de Devassas da Visita das Freguesias da Comarca do Sul da Bahia"2. Neste livro, das 12 freguesias inquiridas, quatro eram antigas aldeias de índios, sendo da mesma etnia 21,7% dos 391 denunciantes da citada Devassa, assim como grande número dos denunciados de cometerem "pecados públicos". Embora interessados primordialmente em pesquisar a moralidade e sexualidade de todas as etnias da região, a presença deste importante contingente demográfico ameríndio sugeriu-nos um aprofundamento de outros aspectos socioculturais da população autóctone da região. Foi assim que localizamos diversos documentos sobre os índios do Sul da Bahia, notadamente nos seguintes arquivos: em Portugal, no Arquivo Histórico Ultramarino, na Torre do Tombo e na Biblioteca do Porto; no Brasil, no Arquivo Público do Estado da Bahia, no Arquivo da Cúria de Salvador; na Biblioteca Nacional, Arquivo Nacional e Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro. Além dos manuscritos encontrados nestas instituições, valemo-nos dos relatos principalmente dos seguintes viajantes que percorreram a região; Príncipe Maximiliano (de Wied Neuwied), Spix & Martius e Charles Exply, assim como das "Cartas" de Vilhena e da "Notícia" de J. A. Caldas.3
Dois pequenos esclarecimentos relativamente à área e ao período abrangidos por esse estudo: utilizamos o termo "Sul da Bahia" como equivalente à antiga "Comarca de Ilhéus", ou "Comarca do Sul", incluindo o território que vai do Rio Jequiriçá até à margem do rio Belmonte, excluindo por conseguinte a Comarca de Porto Seguro, que malgrado situar-se também na Bahia Meridional, era sufragânea na época do Bispado do Rio de Janeiro. A razão de concentrarmo-nos na Comarca de Ilhéus em parte se deve ao privilegiamento do próprio roteiro espacial seguido pelo citado Livro de Devassas que restringiu sua abrangência aquém do Rio Belmonte. Outro motivo justificativo desta nossa opção geográfica é que a situação sociocultural dos índios da vizinha Comarca de Porto Seguro apresentava-se na época bastante diversa da observada na área de Ilhéus: além Belmonte, os índios Mongoió-Camacã estavam ainda na fase dos primeiros contatos com os "civilizados", situação diametralmente diversa da observada entre os ameríndios da região da Comarca de São Jorge dos Ilhéus, cuja interação com a sociedade colonial já era, para algumas etnias, bi-centenária. Assim sendo, nosso estudo refere-se sobretudo aos índios "acaboclados" residentes em vilas e nalguns aldeamentos remanescentes, porém já fortemente deculturados.
Quanto à cronologia, como nosso fio condutor nesta incursão etno-histórica é a Devassa de 1813, recuamos pouco mais de meio século, tentando reconstituir o panorama das comunidades ameríndias algumas décadas antes da expulsão dos Jesuítas (1760), posto que, inquestionavelmente, tal episódio representou uma mudança crucial no destino das populações aldeadas. Estendemos a análise até os meados do século XIX, embora nossa coleta de informações tenha se concentrado no período da Independência: deixamos para outros pesquisadores aprofundarem o período imperial – cuja documentação, diga-se "en passant", é tão rica quanto a precedente.
Uma derradeira explicação introdutória: intencionalmente abusamos neste trabalho das citações integrais de documentos, sobretudo, dos relatórios dos Ouvidores e Vigários da região. Tratando-se de documentação de difícil acesso e muito rica em detalhes, optamos no mais das vezes pela transcrição, considerando que além de seu valor etnográfico, esta coleção de documentos pode servir e facilitar tanto aos remanescentes índios da região, quanto aos indianistas e à própria ANAI-Bahia (Associação Nacional de Ação Indigenista), no árduo trabalho de recuperação não apenas da memória tribal, mas também de seu território usurpado. Nossa esperança é que estas páginas não fiquem nas gavetas da Academia, mas sim que cheguem às mãos dos índios Pataxó, HãHãHãi, Tupiniquim e eventuais remanescentes Tupinambá. Se os documentos aqui transcritos não forem suficientes para convencer aos donos do poder, da legitimidade do direito dos índios às terras que reivindicam e ao resgate de sua tradição tribal, desejamos que estas mesmas páginas não cheguem a ser usadas pelos índios espoliados, para enrolar os cartuchos de chumbo e pólvora na sua luta pelos seus direitos inalienáveis. Há mais de um século, assim vaticinava um índio da região de Ilhéus em seu depoimento a um viajante francês:
Que o meu filho branco guarde estas palavras do pajé botocudo. Nunca existirá uma aliança entre os opressores e os oprimidos. Entre as nações indígenas há umas que foram aniquiladas até o último varão, outras submeteram-se, e outras ainda, estão dominadas pelo terror. Nós outros fomos particularmente perseguidos, sitiados, massacrados, porque somos valentes e a independência nos é mais cara do que a vida. O nosso ódio não pode nem crescer nem se extinguir. Enquanto houver um botocudo de pé, esse botocudo marchará pelo caminho da guerra. Os brancos e os mulatos possuem armas de fogo que lhes facultam quase sempre a vitória, mas os peles-vermelhas receberam do Criador dos seres a astúcia e a paciência.4
A Guerra dos Ilhéus
Algumas linhas introdutórias sobre os primórdios da ocupação desta região hão de nos ajudar a melhor entender a situação indígena nos meados do século XVIII, o período central deste artigo.
A vila de São Jorge era a cabeça da antiga Capitania dos Ilhéus, doada por D. João III a Jorge de Figueiredo Correa em 1524, contando com 50 léguas de costa; de interior, o quanto fosse conquistado e "desinfestado do gentio bravo". Impossibilitado de tomar posse da doação, em seu lugar foi povoá-la Francisco Romeiro com uma esquadra de navios e gentes. É logo, já neste início, que começam os confrontos com os índios da região. Informa o Ouvidor da Comarca, Baltasar da Silva Lisboa Bahia (1761-1840), um dos principais informantes para se conhecer a história local,5 que
a ambição dos povoadores, junto com a tirania com que atacaram os índios, excitou tanto ódio destes contra os portugueses, que em lugar de tirarem as vantagens que o país, a ignorância e a singeleza dos índios lhes podia administrar, se viram vexados e perdidos por muitas corridas que os índios de contínuo lhes faziam, destruindo as suas lavouras e habitações, pondo-os no último risco de vida. (LISBOA, 1799, p. 104)
No Foral de doação desta Capitania, um dos artigos autorizava ao Capitão Mor de Ilhéus "pôr a pena última de morte em pessoas de baixa condição e índios, sem que algumas das justiças de sua Majestade pudessem ter ali jurisdição alguma", (VILHENA, 1798, p. 489), direito que passaria hereditariamente a todos seus descendentes.
Data de 1563 a primeira propriedade dos Jesuítas a área: receberam do Governador Mem de Sá, grande benfeitor da Companhia de Jesus, 12 léguas de terra que foram logo demarcadas, espalhando-se do Rio de Contas até Camamu, parando na Ilha de Boipeba, então habitada pelos belicosos Aimoré. Edificaram os inacianos neste imenso território duas grandes fazendas com suas respectivas capelas: a de Santa Inês, possuidora de 200 escravos, e a de Santana, iniciada com 50 cativos. Os Jesuítas do Colégio de Santo Antão de Lisboa são igualmente alvo de generosa doação nesta Capitania meridional: recebem duas léguas no rio de Santana, onde edificaram em 1673 excelente casa e fazenda, com mais de 300 escravos, a maior propriedade canavieira de todo o sul.6 Poucas terras livres dispunham então os colonos, posto que quase todo o território conquistado e acessível pertencia à Companhia de Jesus.7
A conquista deste território se fez como nas mais partes da novel colônia:
O meio que até então se usava para a conquista dos índios consistia em levantar contra eles bandeiras para serem buscados nas suas choças por entre as matas, estremecendo a humanidade da horrível carnagem que com desumanidade neles se fazia. O espanto e o horror se espalhava por todas as partes." (LISBOA, 1799, p. 105).
A luta contra a nação Aimoré foi a mais cruenta (1560). Deixemos a palavra ao jesuíta Simão de Vasconcelos (1663), a melhor fonte para se conhecer tão sangrenta página da história do sul da Bahia:
Por este tempo houve nas Capitanias de Ilhéus e Porto Seguro grandes perturbações nascidas de assaltos contínuos da nação Aimoré, que tudo metia em temor. É esta casta de índios Aimoré a mais brutal e desumana de todo o Brasil: descende dos Tapuias antigos... É gente agigantada, robusta e forçosa. Não têm cabelo algum em todo o corpo, mais que o da cabeça, todos os mais arrancam. Usam de arcos demasiadamente grandes, destros flexeiros, ligeiríssimos, grandes corredores. Não vivem em casas ou aldeias, nem alguém lhes achou jamais morada. Pelos matos e campos andam à maneira de feras, de todo nus, homens, mulheres, dormem na terra e escassamente lhes servem algumas folhas de colchão... Esses Aimoré, pois, selvagens e agrestes, por estes tempos começaram a descer de suas serras em que viviam havia tantos anos, e guiados pelas correntes dos rios, vinham após eles sair ao mar e davam assaltos em tudo o que achavam, matando e assolando os escravos e fazendas dos moradores, e ainda muitos dos senhores nas vilas dos Ilhéus e Porto Seguro, com confusão geral e mui especial das aldeias dos índios dos padres jesuítas, que nem podiam defender-se, nem ter o sossego necessário para tratar de sua conversão. Chegou pois à Bahia a queixa dessa opressão tão grande, compadeceu-se o Governador Mem de Sá, e tomando conselho especialmente com seu amigo Nóbrega, convieram que fosse o mesmo Governador em pessoa acudir a insolência daqueles bárbaros, por honra de Deus e do nome das armas de Portugal. Ajuntou navios ligeiros, escolheu soldados de satisfação e alguns índios das aldeias, e desembarcou em breve tempo, no Porto de Ilhéus. Chegou em ocasião oportuna... e depois de corridas espessas matas, altos rochedos e profundos vales, quando se davam por mais seguros aqueles bravios selvagens, deu sobre eles o ímpeto dos nossos, degolando, ferindo, pondo por terra todo o vivente, homens, mulheres e meninos. Alguns houve que passaram do sono noturno, sem meio, ao sono da morte; outros, imaginando fugir, se vinham meter em nossas mãos. Acharam alguns, refúgio nas brenhas, outros nem esse puderam alcançar, porque foi todo um ímpeto do ferro e do fogo: arderam as matas por muitas léguas e tornaram a noite em claro dia. Quando o sol começava o seu, viram melhor os tristes bárbaros seu grande estrago, porque seguindo a vereda do sangue, achavam os pais aos filhos, os maridos às mulheres, defuntos pelos caminhos e os abrigos de seus esconderijos tornados em cinza [...] Em breve espaço se viram as praias cobertas de corpos sem alma, e as espumas do mar que os lavavam tornadas cor de sangue. O resto dos inimigos entregue à torpe fugida e com tal terror, que a poucos dias andados, voltaram humildes a pedir pazes... Com estas vitórias, entrou o Capitão Mem de Sá na vila dos Ilhéus, foi direto ao templo de Nossa Senhora, onde fez públicas ações de graças, e foi levado de todo o povo como em triunfo, por libertador de suas terras e vingador de seus agravos... Trezentas aldeias se contam, que destruiu e abrasou do gentio rebelde. O que não quis descer à igreja, retirou-se por essas brenhas por distância de 60 e mais léguas, onde ainda não se davam por seguros do ferro e fogo português. Entrava o ano de 1561. (VASCONCELOS, 1663, p. 55-59)
Além desta guerra genocida, um calamitoso surto de varíola teria dizimado 2/3 da população indígena regional, causando seríssima despopulação entre os Tupiniquim sobreviventes à fúria de Mem de Sá (Paraíso, 1982, p. 56).
A sociedade civil neste primeiro século reduzia-se à capital, São Jorge dos Ilhéus, Cairu e Boipeba – as duas últimas criadas povoações em 1565 pelo Donatário Lucas Giraldes,
para resistirem ao furor e ao ódio com que os índios ameaçavam de contínuo a sua perda, vindo vingar a morte dos seus e cevarem o ressentimento dos danos recebidos e matarem e comerem os portugueses que apanhavam. (LISBOA, 1799, p. 105)
O motivo da tanta violência dos índios é bem explicada pelo mesmo Ouvidor:
Os colonos queriam sem trabalho o ouro, e só quiseram dominar e cativar aos índios, maltratando-os, tomavam suas mulheres e as provisões deles, o que deu causa de armarem-se os bárbaros Tupiniquim – homens de força e valor dotados, para expulsarem hóspedes tão incômodos, que projetavam reduzi-los à tirania e escravidão. Daqui nasceram as guerras, as desconfianças e o ódio de que dos opressores ainda hoje se conserva transmitido aos vindouros, pelo que se refugiaram nos bosques e embrenhadas matas, dizendo-se uns aos outros: Que Deus têm estes homens, que tão más obras cometem? (LISBOA, 1802, p. 3-4)
Destarte, carece de exatidão a assertiva do Padre Aires de Casal na sua Corografia Brasílica, quando disse que os Tupiniquim da região eram "povo de melhor condição que os outros índios" (1817, p. 226). As "carnagens" das aldeias, os incêndios e a violência foram também a tônica recíproca na redução desses gentios. Dizem os naturalistas Spix & Martius que estes aborígenes ocupavam toda a costa do sul da Bahia, entre o rio São Mateus, (outrora rio Cricaré) até o rio de Contas. Também defendem que eram menos beligerantes que os demais silvícolas: "Dessa numerosa nação, de quem se exaltam a brandura, a lealdade e a docilidade, originaram-se os índios mansos que moram ao longo da costa da Comarca". (1819, p. 121)
Para enfrentarem seus tradicionais inimigos, os Tupinambá do Recôncavo, e os Aimoré, que dominavam os sertões do rio Jequié, Una e Mapendipe, os acossados Tupiniquim "tornam-se verdadeiros amigos dos portugueses, vivendo em harmonia e boa conveniência com os brancos, aumentando desta forma o progresso da Capitania, crescendo a sua população e comércio" (AIRES DE CASAL, 1817, p. 227). Maria Hilda Paraíso resume assim este período:
As relações mantidas com os grupos indígenas da área entre os séculos XVI e XVIII eram de choques constantes [...] Os grupos indígenas de baixa densidade demográfica, pressionados pelos brancos com suas bandeiras, e pelos grupos indígenas em migração forçada, optavam por estabelecer relações pacíficas e aceitarem os aldeamentos jesuíticos, cada vez em maior número na área. (1982, p. 17)
A Comarca de Ilhéus: Vilas e Aldeias
Em meados do século XVIII, a Comarca do Sul da Bahia constava de seis vilas: São Jorge dos Ilhéus, Rio de Contas, Camamu, Cairu, Maraú, Boipeba. Baseando-nos nos relatórios dos Vigários da região (1756-1757), podemos desenhar o seguinte quadro:
Cairu (do tupi "mangue") é a mais setentrional e rica das vilas desta região, escolhida quase sempre pelos Ouvidores como local de residência. Havia, nesta época, 135 fogos e 2.210 almas: "a maior parte desta gente são negros e pardos cativos". Possuía um Convento de Capuchinhos italianos e uma matriz dedicada a Nossa Senhora do Rosário.
Boipeba (do tupi "cobra-chata"), faz limites com a anterior e a ela pertencia o presídio do Morro de São Paulo, o principal forte e cadeia da região. Habitada predominantemente por brancos, tinha a freguesia 2.417 pessoas de comunhão (acima de 12 anos de idade).
Camamu (do tupi "peito negro"), situada a 3 léguas no interior, é toda cercada de rios: possuía 3.200 habitantes de comunhão, distribuídos em 500 moradas.
Maraú (do tupi "maracujá"), ao norte de Camamu, era distrito da freguesia de S. Sebastião, tendo apenas 26 fogos no lugar da Matriz. Em todo o distrito contava com 1 .130 pessoas de comunhão.
Rio de Contas possuía 1.060 fregueses, situada na parte meridional do rio que Ihe empresta o nome, sita a 12 léguas ao norte de Ilhéus.
Ilhéus foi o primeiro bastião da conquista desta área, possuía 173 fogos e 1.227 habitantes.
Assim sendo, contavam estas vilas e seus arredores, em 1757, por volta de 11 mil habitantes "de comunhão", porém, incluindo-se as crianças, podemos estimar por volta de quinze mil o número dos habitantes de toda a Comarca. O erudito Professor Luís dos Santos Vilhena (1798), que se baseia em José Antônio Caldas (1759), calculava no seu "Mapa de todas as Freguesias" e no "Mapa curioso de muitas aldeias de índios", um total de 15.085 almas residentes na região, cifra que coincide com a dos vigários supracitados. Portanto, o panorama "urbano" da Comarca de Ilhéus era este: vilas pequeninas e pobres, cujos moradores dedicavam-se fundamentalmente à agricultura de subsistência, pesca, caça e coleta, sendo a principal atividade exportadora local, a extração de madeiras de lei, riqueza abundantíssima nesta região sub-tropical recortada por numerosos e piscosíssimos cursos d’água. Entreguemos a palavra aos cronistas da época, para familiarizarmo-nos com a população local e com seu estilo de vida.
Os habitantes da comarca de IIhéus contentam-se com o marisco, de que infinitamente abundam os mangues e do peixe saboroso dos rios e do mar, assim como da caça das aves no inverno, servindo-se de armadilhas e mondez para apanharem os quadrúpedes. Ainda hoje é tal a inércia da maior parte dos homens, que em Igarapiúna, do termo da vila de Camamu, existe um tão desgraçado morador que tinha no fumeiro 600 caranguejos, para seu provimento anual com tão escasso sustento. Quase nus, apenas embrulhados em um timão de baeta, sobre a terra dura deitados em uma esteira de palha ou sobre uma rede de algodão, assim passam e vivem contentes com o mísero estado em que por sua vontade querem permanecer, pois que os belos terrenos que ocupam os desafiam sem cessar para que na sua cultura encontrem uma vida cômoda e feliz. (LISBOA, 1799, p. 107)
Alguns anos mais tarde, eis o quadro regional pintado pelo Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied quando viajou por estas bandas:
Nas fazendas do Taipe, próximo de Ilhéus, cultiva-se mandioca, arroz, cana, mas não se produz mandioca em quantidade suficiente para fornecer para Ilhéus, prova manifesta da indolência e da falta de indústria dos habitantes. Contentam-se em ter um pouco de farinha, peixe e carne seca, e às vezes, caranguejos que obtêm nos mangues ao redor. Muito poucos são aqueles que pensam em melhorar a sua condição ou cultivar melhor a terra. A sua incúria vai ao ponto de lhes ser indiferente ganhar dinheiro. (1817, p. 327)
Numa amostra de 391 "homens bons" constituintes da elite da comarca, no ano de 1813, os mesmos que foram inquiridos na citada Devassa Episcopal, encontramos a seguinte composição ocupacional: Lavradores (47,3%), Comerciantes (16,6%), Oficiais Mecânicos (7,6%), Madeireiros (4,3% ), Diversos (0,5%). (MOTT, 1982, p.12) Comparativamente com Salvador, Olinda e São Luis, as vilas da Comarca de Ilhéus não passavam de pobres e insignificantes vilarejos. Se tal era o panorama das "vilas civilizadas", imaginemos a situação ainda muito mais simples, das aldeias indígenas. Vejamos então o que nos informam os contemporâneos sobre tais localidades.
De acordo com a Notícia Geral de toda a capitania da Bahia (1759), de José Antônio Caldas, constava a Comarca de Ilhéus cinco aldeias de índios: Almada, Olivença, São Fidélis, Santarém e Barcelos. De acordo com a Relação das Povoações de Lugares da Comarca do Sul, de autoria dos já citados Vigários (1756-1757), além destas povoações indígenas, ainda são dadas como existentes mais três núcleos: Aldeia dos Socó, na freguesia de Ilhéus; Aldeia dos Índios Menhans, na freguesia de Poxim, situada no Pontal Norte do rio Grande, na divisa com Canavieiras, Comarca de Porto Seguro; e Aldeia do Gentio Grem, no rio Cachoeira, na freguesia do Rio de Contas. Sobre estas aldeias, infelizmente, a documentação é bastante lacunosa. Para reconstruirmos um quadro o mais realista possível do panorama das comunidades indígenas da região, transcreveremos, a seguir, em ordem cronológica, os principais trechos descritivos de cada uma destas localidades, tal qual as viram e descreveram diferentes viajantes e cronistas que visitaram a região. As lacunas de um informante, as correções de outros e mesmo as repetições, ajudam-nos a ter um quadro mais completo e fiel do que se tentássemos uma compilação sumária destas fontes.
Começamos por Olivença, a primeira e principal das aldeias jesuíticas do sul da Bahia.
1759:
A aldeia de Nossa Senhora da Escada de Olivença teria 120 a 130 casais, além dos viúvos e viúvas. São índios da Nação Tabajara ou Tupis. Está a aldeia ao sul da vila de Ilhéus, na costa, a distância de 3 léguas. Dista da aldeia da Almada até 6 léguas. (CALDAS, 1759, n. 90)
1798:
Três léguas ao sul de Ilhéus, junto à costa, está situada Nova Olivença, criada vila do ano de 1760, por provisão de 22 de novembro de 1758. Havia o templo desta vila sido levantado pelos Jesuítas no ano de 1700. É ele de uma só nave e acha-se bastante arruinado. Esta vila se situa sobre um monte, e a sua população consta de 454 pessoas. (VILHENA, 1798, p.507)
1799:
Três léguas ao sul de Ilhéus fica a vila dos índios de Nossa Senhora da Escada de Olivença, levantada no ano de 1758, com o título de Nova Olivença, e se Ihe criou justiças o Ouvidor Luis Freire de Veras. A sua povoação é de 454 pessoas, com uma excelente igreja de 38,5 palmos de largura de parede a parede, com um só altar. Que lástima me não causou o espetáculo daqueles infelizes índios, suas mulheres e filhas nuas como se naquele momento tivessem saído das matas incultas. Deu-se-lhes com a criação da vila uma légua de terra que não lavram, na qual fizeram pequenas roças na vila, outras se alugaram a particulares. (LISBOA, 1799, p. 109)
1802:
Foi Olivença levantada vila por provisão do Conselho Ultramarino, com instrução do Diretório dado para os índios do Maranhão. Os índios Pataxó perseguiram muito aquele lugar até o ano de 1700. Habitam aí 454 índios, entrando um e outro sexo, vivem como se ainda agora saíssem das mãos da natureza, quase nuas as mulheres. (LISBOA, 1802, p.10)
1816:
A vila de Olivença se acha aprazivelmente situada sobre colinas bastante elevadas e é cercada de espessas matas. O Convento dos Jesuítas se ergue acima dessa muralha de verdura. A costa, formada de rochedos extremamente pitorescos, que avançam pelo mar a dentro, é constantemente batida pelas vagas barulhentas que enchem de espuma toda a baía. Índios vestidos de camisas brancas ocupavam-se em pescar na praia... Esta localidade foi fundada por Jesuítas há uma centena de anos. Nessa época buscaram-se índios do rio dos Ilhéus para trazê-los para aqui. A vila possui agora cerca de 180 fogos e todo o seu território conta com cerca de mil habitantes. Com exceção do padre, escrivão e de dois negociantes, Olivença não conta quase com portugueses. Todos os demais habitantes são índios, que conservaram os seus traços característicos em toda a sua pureza. (Príncipe MAXIMILIANO, 1816, p.321-322)
1817:
Olivença é vila de índios, grande, populosa, e vistosamente situada sobre uma colina, lavada de ares salutíferos, com espaçosa vista de mar, entre as embocaduras de duas ribeiras de desigual grandeza. Todas as casas são cobertas de palha. Tem uma magnífica igreja matriz de pedra, da invocação de Nossa Senhora da Escada e uma ponte sobre a ribeira maior; que a banha pelo lado setentrional. (AIRES DE CASAL, 1817, p.231)
1819:
Na vila de Olivença, a duas léguas ao sul de Ilhéus, moram cerca de 800 índios. Dizem, porém, que lá eles já estão misturados aos descendentes dos Guerém. A fiscalização municipal, que lhes dá certa liberdade, é feita por Juiz, auxiliado por um só Escrivão, sendo este escolhido entre os portugueses e aquele entre os índios. (SPIX & MARTIUS, 1819, p.122)
1822:
Olivença tem de 50 a 60 péssimas cabanas habitadas por índios que vivem do trabalho que fazem nas roças. (RIEDLE, 1822, p.33)
Também adjacente à freguesia de Ilhéus existiu desde os meados do século XVIII outra aldeia, Almada, a menor e de vida mais efêmera, habitada pelos índios da nação Guerém. Às vésperas da expulsão dos Jesuítas, a situação da aldeia não era nada promissora:
1759:
A Aldeia Nova de Nossa Senhora da Conceição da Almada, cujo gentio é de nação Grem, a qual não tem ainda número de casais, porque até o presente só se tem batizado os inocentes e os adultos ainda são infiéis e não têm permanência na aldeia, porque vem e vão para o mato quando muito lhes parece. Esta aldeia fica ao norte de Ilhéus em distância de 5 ou 6 léguas. (CALDAS, n. 89)
1798:
Há na cachoeira de Almada uma aldeia de índios Grem, reduzidos hoje à miséria maior e pequenez suma. Todas as terras vizinhas são fertilíssimas e abundam em toda a qualidade de madeiras de construção e diferentes espécies de caça, assim terrestre, com volátil, e ao mesmo tempo todas as qualidades de cobras peçonhentíssimas. Possui 95 casais. (VILHENA, 1798, p.494)
1802:
Tem a cachoeira da Almada em seu contorno uma pequena aldeia de Índios Grem, situada ao Sudoeste, e vem a lagoa com o ribeirão Inhupe, que vem do Norte, da Serra Superior, terras fertilíssimas para toda a lavoura, e abundantes de madeira de construção, povoadas de todo gênero de caças, como porcos selvagens, cotias, pacas, onças, etc. e nos ares lindas cores dos mais belos pássaros atraem os olhos do mais frio viajante, assim na terra todo o gênero de peçonhentas cobras e dos seus terríveis venenos com que mandam à morte ao incauto que as pisa ou que elas investem. (LISBOA, 1802, p.9)
1816:
Curioso por conhecer os índios dos Ilhéus, resolvi visitar o rio Itaípe, que tem a sua embocadura uma meia légua ao norte do rio Ilhéus. Desde há muito tempo construíram aí um estabelecimento para os Guerém, tribo dos Aimoré ou Botocudos; ela tem o nome de Almada. Chega-se a este aldeiamento após um dia de viagem, subindo o rio desde a sua embocadura. A estrada é muito aprazível e oferece muitas oportunidades para os caçadores... Já era noite quando cheguei a Almada, último povoado que se encontra quando se sobe o rio Taípe. Fui recebido de maneira a mais amigável possível pelo Sr. Weyl, proprietário, que havia há pouco chegado da Holanda. Almada agora apenas indica o local onde, há uns 60 anos, se tentou fundar uma aldeia de índios. Uma tribo de descendentes dos Aimoré ou Botocudos, conhecida pelo nome de Guerém, consentiu que fundasse um estabelecimento, com condição que lhes dessem terrenos e habitações. A proposta foi aceita: construíram-se cabanas e uma pequena igreja. Um padre e vários índios do litoral vieram habitar a aldeia. Este estabelecimento fracassou. Os Guerém morreram todos, com exceção de um velho, chamado Capitão Manoel, e de duas ou três mulheres velhas. Ultimamente levaram os índios do litoral para a vila de São Pedro de Alcântara, que também está próxima de seu fim. Só restam umas três casas, que são os últimos vestígios da vila de Almada. O Sr. Weyl pretende fundar aqui uma grande fazenda: todas as circunstâncias parecem favorecê-lo. (Príncipe MAXIMILIANO, 1816, p.331)
1817:
Obra de meia légua arredada do lago Itaípe, em sítio vistoso e aprazível, está a povoação de AImada, com uma igreja paroquial de Nossa Senhora da Conceição. O povo que a habita, compõem-se de brancos e índios, para cujo estabelecimento foi fundada, lavradores de farinha e outros víveres, e tiradores de madeira. (AIRES DE CASAL, 1817, p.232)
1819:
A região montanhosa e florestal da Almada era antigamente habitada pelos Guerém, tribo dos Botocudos, que já em pequeno número foram obrigados a ocupar este ponto, ao invés das matas do Rio de Contas. Os restantes Tupiniquim foram para aí transferidos pelos Jesuítas, mas tal colônia, decadente desde algum tempo, desapareceu completamente, quando no ano de 1815 se abriu a estrada de Ilhéus para o Rio Pardo. O resto da população foi então enviada para a vila de São Pedro de Alcântara, recentemente edificada à margem da mesma estrada. Sua alteza o Príncipe Maximiliano fora ainda testemunha ocular dos últimos Guerém. Depois disso morreu o velho índio Manoel e apenas alguns índios civilizados, provavelmente da tribo dos Tupiniquim, que nem mais sabiam expressar-se na língua de seus pais, ficaram a fim de servir de caçadores para os colonos. (SPIX & MARTIUS, 1819, p.129).
Apesar de estar fora da Comarca de Ilhéus – sita na de Porto Seguro – transcrevo a seguir a única informação disponível a respeito desta nova aldeia de São Pedro de Alcântara, posto que constituiu o novo nicho dos desafortunados remanescentes Guerém de Almada:
1819:
O lugarejo que em honra do atual soberano do Brasil traz o nome de Vila de São Pedro de Alcântara, chamado antigamente As Ferradas, consta de seis a oito miseráveis choupanas de barro, de uma pequena igreja da mesma construção, alguns telheiros abertos onde, ao chegar, encontramos três famílias de Guerém, imigradas de Almada, e alguns indivíduos, mulheres e crianças, da tribo dos Camacã. Presentemente os Camacã constituem o grosso da população, que conta cerca de 60-70 habitantes. Número igual morreu de febres malignas ou se dispersou logo após a fundação da aldeia. Nem mesmo encontramos a população restante completa; pois quase todos os homens estavam, havia oito dias, numa excursão às florestas de Minas, aonde foram buscar taquara para as suas flechas e uma planta para envenenar as pontas das mesmas. Todos esses índios foram aldeados graças aos esforços de um venerando sacerdote do Convento dos Capuchinhos da Bahia, Frei Ludovico de Liorne e instruídos nas elementares doutrinas da Igreja, como também na agricultura." (SPIX & MARTIUS, 1819, p.140)
Sobre os índios da nação Guerém, é o Príncipe Maximiliano (1816, p.331) quem nos esclarece a respeito de suas origens:
1862:
Vários autores afirmam que os Guerém são realmente descendentes dos Botocudos. A perfeita semelhança da língua desses dois povos prova-o indiscutivelmente. Pessoas há que há 30 anos os viram, dizem que então usavam botoques na orelha e no lábio inferior, e os cabelos cortados em coroa como os botocudos. A tribo pertence aos Aimoré, que em 1685 expulsou os Tupiniquim da Capitania da Bahia e da qual uma parte devastou os Ilhéus, Santo Amaro e Porto Seguro. Alguns deles voltaram para as suas matas, outros concordaram em morar em habitações fixas. (1816, p. 331; Southey, 1862, v. II, p. 562)
Na Torre do Tombo de Lisboa localizamos importante documento sobre esta etnia: dizia Frei José de Jesus Maria, capuchinho missionário na Bahia desde 1726, que em 1747 "sujeitei à fé duas nações de gentios Grém e Pocurunxém, no rio de Contas, os quais catequisei, batisei e aldeei."8 Rio de Contas foi uma aldeia indígena que se situava 12 léguas ao norte da sede da Comarca, seu nome, segundo relata o Professor Vilhena
foi imposto por um acontecimento que por tradição antiga chega a nossos tempos e vem a ser que passando dois missionários a pregar o Evangelho e chegando à margem daquele rio, viram na outra margem grande multidão de gentios, e então disse um ao outro: hoje, meu irmão, neste rio iremos às contas [...] (1798, p. 504)
Se no início os gentios deste rio eram multidão, seu número decaiu sensivelmente alguns anos depois. Primeiro os nativos foram aldeados ao redor da capela de Nossa Senhora dos Remédios, algumas décadas depois, na de Nossa Senhora da Piedade. Eis o relato dos viajantes e cronistas:
1757:
A freguesia de São Miguel da Vila de São José da Barra do Rio de Contas tem 1.060 pessoas de comunhão, dos quais 33 índios da língua geral. Tem anexa a Capela de Nossa Senhora dos Remédios da Aldeia dos Gentios Grém, que ao presente se acha extinta, sem missionário, situada no Rio da Cachoeira, distante três léguas. (VIGÁRIO MENEZES, 1757, p.188)
1798:
Subindo pelo Rio de Contas, meia légua acima da Vila, fica a aldeia de Nossa Senhora da Piedade, dos índios da nação Grém, administrada pelos Capuchos italianos. (VILHENA, 1798, p.506)
1799:
A Vila de Rio de Contas era uma aldeia de índios, com alguns portugueses foreiros do Colégio dos Jesuítas, a qual foi fundada vila pela Excelentíssima Donatária Condessa de Rezende, aos 27 de janeiro de 1732, incorporada à coroa em 13 de outubro de 1762. Um quarto de légua abaixo dos Funis, quis-se naquele terreno meu antecessor estabelecer uma vila de índios, que chegou a levantá-la, mandando para a mesma vir os índios de Almada e de várias outras partes, mas tal foi a desordem do Pároco e Diretor, que a Fazenda Real se tirou o prejuízo das somas dispendidas. (LISBOA, 1799, p.112)
1802:
Sendo Governador da Bahia D. Fernando José de Portugal, em 1790, pretendeu levantar uma aldeia de índios na Conquista das Salinas, de que era Capitão-Mor João Gonçalves da Costa, por terem ido os índios à sua presença em 8 de abril de 1790, pedindo pároco que os instruísse na Religião Católica e que os não pusesse debaixo da subordinação do dito Capitão Mor da Ressaca, e por carta de 25 de junho de 1790, escrita pelo mesmo Governador ao Ouvidor que foi da Comarca de Ilhéus, o Dr. Desembargador Francisco Nunes da Costa, Ihe fez ver os desejos que tinha da chegada dos ditos índios a esta Comarca, para que desse as providências, que deu aquele Ministro, para os situar acima do Rio de Contas, e foram tão ineficazes e opostas à estabilidade da aldeia, que a Real Fazenda ficou somente com as despesas que por aquele motivo se dispenderam. Os índios Grém da Almada e de outras partes que mandaram para ali, sem socorros externos, nem moradores portugueses, em pouco tempo desertaram, embrenhando-se pelos centros das matas, para os lugares de onde foram víolentamente trazidos, que sem embargo de se lhes dar uma légua de terra para fazerem as suas plantações, quiseram mais antes viver errantes nos bosques, que unidos em povoação, e apenas existem hoje naquele lugar quatro ou seis casais. (LISBOA, 1802, p.13-14)
Mais ao norte, próxima à vila de Maraú, estava outra aldeia, Barcelos, como as demais, também apresentando nítidos sinais de decadência. Eis o relato daqueles que a conheceram nos séculos passados:
1759:
Nossa Senhora das Candeias é a aldeia sita no rio do Maraú, dentro da Barra do Camamu, limites da freguesia de Maraú. Terá de 60 a 86 casais, pouco mais ou menos, índios de nação Tabajara ou Tupi. Fica distante da vila de Camamu 4 léguas pelo rio. (CALDAS, 1759, n. 54)
1798:
Distante uma légua de Maraú, e da parte oposta do rio deste nome, fica situada a vila de Barcelos, da invocação de Nossa Senhora das Candeias, fundada pelo Ouvidor Luís Freire de Veras, no ano de 1758, por provisão expedida pelo Conselho Ultramarino para criação das Vilas de índios. Está a vila de Barcelos em grande decadência, e a sua população apenas chega a 200 almas, índios Grém faltos todos de educação depois da extinção dos Jesuítas, bem como o seu templo, que tendo sido bom, se acha arruinado. (VILHENA, 1798, p. 498)
1799:
Fica na parte da terra firme, uma légua ao norte de Maraú, na alta montanha edificada, a vila de Nossa Senhora das Candeias de Barcelos, onde os Jesuítas edificaram excelente igreja e estabelecimentos grandiosos de lavoura. O lugar é sumamente alegre, o templo respeitoso, porém hoje mui arruinado. (LISBOA, 1799, p.113)
1802:
O único edifício de pedra e cal ali existente é a igreja e o colégio dos Jesuítas, que tem sofrido grande ruína. A Vila não tem 200 índios de povoação. (LISBOA, 1802, p.15)
1817:
Barcelos é uma vila pequena, e vantajosamente situada no ângulo da confluência do pequeno rio Paratigi com o Maraú, quatro léguas por ele acima e três abaixo da vila do mesmo nome. Seus habitantes são índios. (AIRES DE CASAL, 1817, p.231)
1819:
Da outra margem do braço de mar que largamente invade o continente está a pequena vila de Barlcelos, que visitamos no mesmo dia, na esperança de poder embarcar para a Bahia. A metade dos atuais habitantes, cerca de 150, são índios mansos. Há dois juízes, um escolhido entre sua própria gente, e o outro, dentre o restante da população." (SPIX & MARTIUS, 1819, p.157)
A mais interiorana das aldeias indígenas desta Comarca era Santarém, vulgo Serinhaém, que da mesma forma que Olivença e Barcelos, foi elevada à categoria de vila nos tempos de D. José I, seguindo o mesmo Diretório dos índios do Maranhão. Serinhaém em tupi significa "panela de siris", certamente originando tal nome da muita abundância desse crustáceo na localidade.
1759:
A aldeia de Santarém, tem por invocação Santo André: situa-se no rio Serinhaém, dentro da Barra do Camamu, limites da freguesia e vila do mesmo nome, distante dela seis léguas pelo rio. Terá 16 casais. Os índios são mistos, porque uns são Payayá, outros Tupi, ou Tabajara, que é o mesmo. (CALDAS, 1759, n. 91)
1794:
Esta vila fica situada em lugar eminente, ameno e aprazível. A sua população é de até 300 índios, em que entram muitas famílias de espécie degenerada com brancos portugueses. Tem 160 palhoças. A Igreja Matriz de Santo André é a mais indecente que encontrei, que ao mesmo tempo serve de um Iado de curral de ovelhas. (Capitão MONIZ BARRETO, 1794, p.6)
1799:
A aldeia de Santo André ou Nova Santarém dos Índios, foi criada pelo Ouvidor da Bahia Luis Freire de Veras em 1758. Sua povoação é de 280 pessoas: não tem igreja por se ter desmanchado a que tiveram os jesuítas pela sua total ruína e incapacidade e começaram uma nova, que está por cobrir. Deu-se-lhes uma légua de terra em quadra. (LISBOA, 1799, p. 115)
1802:
A vila de Santarém apresenta a mais brincada vista das suas ilhas, que a fazem sumamente alegre e formosa. Tem 70 casais. (LISBOA, 1802, n.17)
1817:
Serinhaém, por corrupção e vulgarmente chamada Santarém, é uma vila pequena ainda, sobre a embocadura do rio deste nome, e povoada de índios. (AIRES DE CASAL, 1817, p.231)
A mais setentrional das aldeias do sul da Bahia era São Fidelis do Una, elevada à categoria de Freguesia pelo Conde de Arcos, desmantelada nos primeiros anos do século XIX em favor da novel vila de Valença a ela contígua.
1757:
A uma légua da povoação de Nossa Senhora do Amparo, freguesia de Nossa Senhora do Rosário da Vila do Cairu, está fundada a aldeia de São Fidélis, regida por religiosos capuchinhos, para defesa do gentio bárbaro, que muito combateu e destruiu os moradores desta freguesia e depois que a esta aldeia se fundou, por meio dela se conseguiu, ou melhor, por intercessão do Senhor São Fidélis, e dos mais santos que este povo invocava em tão irremediável aflição, alcançaram de Deus Nosso Senhor reduzisse à paz e ao grêmio da Igreja Católica uma aldeia do gentio bárbaro que mais combatia esta freguesia e caminho das Minas, que atravessava quando vinha fazer guerra a estes povos. (Vigário SILVA, 1757, p. 192)
1794:
Fica esta aldeia distante da povoação do Una légua e meia. Está situada em lugar eminente, mas muito desagradável pelos bosques que tem vizinhos da povoação, e agrestes saídas. A sua população é de 120 casais de índios, os quais são dóceis e bem inclinados e ao mesmo tempo robustos. (Capitão MONIZ BARRETO, 1757, p.9)
1799:
Para se fundar a aldeia de São Fidélis do Rio do Una, foi convidado o capuchinho Frei Bernardino de Milão, a quem ordenou o Vice-Rei Conde de Arcos em carta de 13 de fevereiro de 1756, que ninguém contratasse com os índios sem consentimento e aprovação do dito padre. (LISBOA, 1799, p.105)
1801:
A freguesia dos índios de São Félix do Una foi criada em razão dos índios selvagens saírem, no tempo do Conde de Arcos, e flechavam os povos que habitavam pelos arredores; fugindo o povo para a ilha do Cairu, aonde se fez vila. Naquele tempo os índios foram aldeados por um capuchinho que erigiu freguesia. Hoje eles não têm mais que 20 casais, sem igreja, que se arruinou, indo sempre a Valença levar madeira.9
1802:
Os índios de São Fidélis estranharam tanto o sustento a que passaram, que enfermaram e morreram muitos, outros fugiram. (LISBOA, 1802, p.19)
1803:
A freguesia da aldeia de São Fidélis foi extinta pela nova criação da freguesia de Valença, contudo, o pároco que havia naquela aldeia e que foi sempre bem quisto dos moradores dela, ainda aí mora. (Ouvidor MACIEL, 1803, p.177)
A aldeia de Poxim é a de que dispomos menor número de informação: Caldas arrola-a com as seguintes particularidades:
1759:
Poxim pertence ao distrito da vila de Ilhéus, freguesia de São Boaventura, missionada por clérigo secular, nomeada posteriormente Almeida, tendo como orago da Aldeia a Santo Antônio de Arquim, sendo habitada por 17 casais de índios Tapuia. (CALDAS, 1759)
1756:
Na freguesia de São Boaventura do Poxim, logo no Pontal do Norte do Rio Grande, onde chamam o Peso do Pau, estão aldeados os índios Menhan, arbitrariamente administrados por um Capitão das Conquistas, sem forma e direção do Regimento das Aldeias, porque não têm igreja, nem querem vir a esta Matriz ou Capela vizinha para os instruir na doutrina cristã e nem ainda se sujeitam a aprendê-la na mesma aldeia com um instrutor a quem os tenho recomendado, e o pior é que morrem como brutos, sem sacramentos, pelo não procurarem. (Vigário GRAMACHO, 1756, p. 186)
1798:
Houve outro tempo uma freguesia no Poxim, o gentio, porém, há 50 anos, perseguiu cruelmente aquele lugar, obrigando os seus habitantes a retirar-se, desamparando-se o seu domicílio, em que ainda hoje há poucos moradores. (VILHENA, 1798, p.509)
1799:
Existe hoje no lugar das Canavieiras uma freguesia da invocação de São Boaventura de Poxim, por ter estado nele outro tempo a freguesia desamparada pelo receio e medo do gentio. (LISBOA, 1799, p. 108)
1802:
Na barra do rio Poxim houve uma freguesia com invocação de São Boaventura, porém os contínuos ataques do gentio Pataxó, que 40 anos infestou aqueles lugares, obrigou os povoadores refugiarem-se no Patipe.(LISBOA, 1802, p.11)
1817:
Em uma península formada pelo rio Patipe, junto à sua embocadura, num dos mais fecundos terrenos está a considerável freguesia de São Boaventura. Seus habitantes são brancos e indígenas. (AIRES DE CASAL, 1817, p.232)
Além dos índios aldeados nas supracitadas missões, encontramos referência que em várias partes da Comarca haviam famílias indígenas espalhadas em relativo isolamento:
1794:
No sítio Arobo, freguesia da aldeia de São Fidélis, encontram-se dispersos da povoação alguns casais de índios. São peritos navegadores do caudaloso rio Mapendipe, pelo qual descem com incrível facilidade sobre monstruosos paus até a boca ou foz da divisão deste rio e o de Una. (Capitão BARRETO, 1794, p. 9)
1798:
Na barra do rio Maruí, freguesia de Olivença, moram alguns índios que sem proveito destróem por partes as matas. (VILHENA, 1798, p. 509)
1799:
De Una a Comandatuba vão 3 léguas, igualmente inabitadas e desertas: apenas alguns índios que na pesca se entretêm, ali habitam. (LISBOA, 1799, p. 108)
1802:
Moram na beira da costa, na barra do rio Maruí, alguns índios de Olivença, a 3 ou 4 dias de viagem da vila, que vêm pescar neste lugar e fazem algumas pequenas lavouras para sua sustentação. Por ordem do Excelentíssimo Governador D. Fernando José de Portugal, abri um pequeno corte de madeiras de experiência. (LISBOA, 1802, p. 11)
1816:
A pouca distância da foz do Comandatuba, existem na margem meridional, nas areias brancas, algumas choças onde vivem famílias de índios, cujas plantações estão na margem setentrional. (Príncipe MAXIMILIANO, 1816, p. 320)
Quando da Devassade 1813, dos 85 índios ouvidos pelo Visitador, são referidos como local de nascimento dos denunciantes além das citadas aldeias de Olivença, Barcelos, Santarém, Rio de Contas e Poxim, as seguintes localidades das comarcas limítrofes: Jequiriçá, Belmonte, Patatiba, Prado e São Mateus – todas aldeias indígenas. Apesar de pouco numerosos, sempre existiram, nas aldeias de Ilhéus, índios provenientes de outras missões, tanto do Norte quanto do Sul da Bahia.
Resumindo e ampliando os quadros sinóticos de Caldas (1759) e de Vilhena (1798), tal era a situação indígena na Comarca de Ilhéus no final dos setecentos:
Quanto às distâncias destas aldeias e das vilas da Comarca entre si, de acordo com o "Plano para organizar o correio da terra de Valença para o Rio Doce", de autoria do Ouvidor LISBOA, temos o seguinte quadro:10
Quanto à distância das aldeias indígenas em relação a Salvador, Sede da Capitania, a que estava subordinadas no civil e no religioso, temos: São Fidélis do Una, 16 léguas; Poxim, 29 léguas; Santarém e Barcelos, 30 léguas; Rio de Contas, 40 léguas; Olivença, 50 léguas e Almada, 60 léguas.
No que se refere à população indígena, apesar de grande variação e lacuna das fontes, dispomos dos seguintes dados: (os números seguidos de "c" representam "casais")11
População das aldeias do Sul da Bahia
A mais completa relação demográfica das aldeias pertence à Notícia Geral de toda a Capitania da Bahia, do já várias vezes citado José Antônio Caldas (1759), incluindo cinco das povoações indígneas da região. Se basearmo-nos na estimativa de Spix & Martius, de que "se pode calcular em média 6 pessoas em cada família" entre os índios do Sul da Bahia, os quais, "comparados aos outros, são os índios mais prolíficos", teremos para 1759 uma população de aproximadamente 2.700 índios aldeados. Tomando como referência os dados coletados pelo Ouvidor Lisboa (1799-1802), seriam por volta de 1.434 os aborígenes das cinco aldeias-vilas da região. Spix & Martius calcularam, no ano de 1819, em 4.000 o número de índios de toda a Comarca, incluindo nesta estimativa as seis aldeias dos Mongoío-Camacã e outros grupos ainda não missionados, que segundo os cálculos dos mesmos naturalistas, atingiriam 2.000 almas (p. 141). Pelos dados de ViIhena, calculamos que os índios representavam 9,5% dos habitantes da Comarca.
Das povoações indígenas, Olivença é sem dúvida a mais densamente povoada: com base em Caldas e Vilhena, podemos avaliar em 1.040 o número de seus habitantes por volta de 1798. O Príncipe Maximiliano avaliou em 1.000 seus habitantes no ano de 1816. Quer dizer: uma população indígena bastante estacionária em meio século de história. A população de Santarém seguiu outra dinâmica: de aproximadamente 128 indivíduos em 1759, chegam a 300 no final dos oitocentos, baixando para 200 em 1802. Almada representa a maior tragédia na história demográfica dos aldeamentos regionais: chegou a contar com mais de 700 "almas", segundo a informação de Caldas, retificada por Vilhena; quando o Ouvidor Lisboa visitou-a pela primeira vez, estava reduzida a 160 pessoas; 15 anos depois, o Príncipe não encontrou senão o velho índio Manoel com mais duas ou três velhas, os últimos sobreviventes locais dos Guerém. Spix e seu colega Martius não encontraram mais nenhuma vivalma: os que restavam tinham sido transferidos para São Pedro de Alcântara.
Um aspecto intrigante na demografia indígena regional é o baixo índice de miscigenação deste grupo étnico. Tomando como amostra os "acusantes" inquiridos na Devassa de 1813, temos o seguinte quadro:
De um total de aproximadamente 1.500 denunciados nesta Devassa, são pouquíssimos os mamelucos, menos de 30 entre homens e mulheres. Nas duas longas Memórias do erudito e fino observador Baltazar da Silva Lisboa sobre a Comarca de Ilhéus, aparecem raríssimas referências aos descendentes de brancos com índios: apenas duas vezes são citados "curibocas" e nalgumas passagens refere-se o Ouvidor à presença de "populações misturadas".12 Mais adiante, quando tratarmos das relações matrimoniais e do concubinato entre os índios, voltaremos a esta questão.
Após este levantamento inicial da distribuição espacial dos índios na Comarca do Sul, e de sua estrutura e dinâmica demográficas, sempre nos valendo das próprias palavras e cifras dos cronistas de antanho, analisaremos a seguir alguns aspectos fundamentais de sua organização social, notadamente sua economia e cultura material, sua relação com a sociedade global, seu estilo de vida e costumes, a influência da religião e dos "Diretores" na dinâmica aldeã.
Cultura e sociedade
O homem primitivo não é bom nem é mau naturalmente. É um mero autômato cujas molas podem ser postas em ação pelo exemplo, educação e benefícios. Newton se nascera entre os Guarani seria mais um bípede que pisara sobre a superfície da terra, mas talvez um Guarani criado por Newton talvez ocupasse o seu lugar. (ANDRADE, 1823, p. 3)
O melhor e mais sintético retrato da situação aculturativa dos índios do sul da Bahia é dada por Spix & Martius em 1819:
A constituição física destes índios do litoral é robusta e a fisionomia muito mais simpática do que a dos Sabujá e Cariri. São bons remadores e nadadores. Quando se resolvem trabalhar em casa dos fazendeiros, por um salário diário, adiantam a derrubada das matas com muito jeito e perseverança. Da primitiva língua não encontramos nenhum vestígio, pois todos falam mau português. Em geral nos parecia que esses índios de todos os que tivemos ocasião de observar no Brasil, eram os mais assimilados à civilização européia... Dessa numerosa nação Tupiniquim, de quem se exaltam a brandura, lealdade e a docilidade, originam-se os índios mansos que moram ao longo da costa, nas vilas e em cabanas isoladas. São inofensivos, porém pouco operosos, restringindo sua atividade à caça, à pesca e à diminuta cultura do milho e mandioca, de que se nutrem sem outras necessidades da vida. (p. 21-22)
A perda da língua tribal parecia então, já ser generalizada na área. O Ouvidor Maciel, substituto de Lisboa na correição da Comarca, informava em 1804:
Pelo que toca ao temporal, usam geralmente os índios de Olivença, Barcelos e Santarém e os das aldeias de Almada e São Fidélis, do idioma português, tendo-se extinguido entre eles o uso da língua antiga, vulgarmente chamada língua geral. (p. 177)
Na vizinha comarca de Porto Seguro, seu Ouvidor informava que na vila do Prado, no mesmo ano, os índios "são civilizados no nosso idioma, mas a língua geral do seu natural nunca a perdem, porque aprendem logo no berço." (p. 180)
Tamanha assimilação civilizatória causou grande desapontamento ao Príncipe Maximiliano, sequioso de testemunhar maior primitivismo. Chegando em Olivença, em vez de deparar com selvagens nus, encontrou
índios vestidos de camisas brancas que ocupavam-se de pescar na praia. Havia entre eles alguns tipos muito belos. O seu aspecto lembrava-me a descrição que faz Léry dos seus antepassados, os Tupinambá. Os Tupinambá, escreve Léry, são esbeltos, bem conformados, têm a estatura média dos europeus, embora mais espadaúdos. Perderam infelizmente as suas características originais. Lastimei não ver avançar na minha direção um guerreiro Tupinambá com o capacete de penas na cabeça, o escudo de penas nas costas, os braceletes de penas enrolados nos braços, o arco e a flecha na mão. Ao invés disso, os descendentes desses antropófagos me saudaram com uma adeus à portuguesa. Senti com tristeza as vicissitudes das coisas deste mundo, que fazendo essas gentes perder os seus costumes bárbaros e ferozes, despojou-os também de sua originalidade, fazendo delas lamentáveis seres ambíguos. (p. 322)
No belo Atlas do incansável Príncipe renano, o leitor poderá ver "representada fielmente uma família de índios em viagem pela costa": são dois casais e duas crianças vestidos com calça curta e camisões, os homens, chapéu, espingarda e porrete na mão; as mulheres, com vestidos compridos até um palmo acima dos pés, acinturados, carregando na cabeça um grande balaio e nas costas um curumim nu. Todos descalços e acompanhados por um cão, elemento fundamental nas caçadas.
Não só na língua mas também nos nomes e roupas, nada distinguia esses índios de seus vizinhos "civilizados". Não encontrei nos documentos nenhum índio ou mameluco identificado com nome tribal. O Ouvidor Maciel esclarece: "Usam todos de sobrenomes que eles mesmos escolhem os que mais lhes agradam entre os de que usam algumas pessoas portuguesas que conheço." (1804, p. 177). De uma lista de 85 índios convocados pelo Visitador, em 1813, para denunciar os pecadores públicos e de suas respectivas aldeias, pouco mais da metade apresentava, além do prenome cristão, também um ou dois, alguns até três sobrenomes lusitanos, predominando o apelido "Gomes". A vila de Barcelos foi a que menor número de índios ostentava sobrenome, não obstante viver aí um Tupiniquim chamado nada menos que Bartolomeu Gonçalves Tourinho, reunindo dois nomes de família dos mais privativos das elites baianenses. Segundo Vilhena, os apelidos mais nobiliárquicos da região eram: Menezes, Barreto, Bezerra, Castro e Lacerda (1798, p. 495). Não encontramos entre os índios nenhum com tais apodos, contudo, em Santarém havia um índio chamado Inocêncio Ribeiro do Nascimento; em Barcelos, Francisco Correia Barbosa; em Olivença, Antônio da Costa Lima, e no Poxim, um João Mendes Álvares e José Gonçalves de Andrade – todos nomes identificados com as melhores cepas da Bahia de Todos os Santos.13 Lado a lado com tais nomes de família tão distintos, vários índios aparecem identificados nos documentos apenas com um prenome: Manuel, Efigência, Francisco, Emilia – ou com dois prenomes: Maria Lutécia, José Raimundo, Antônio Joaquim, ou ainda com o típico baiano (característico notadamente das populações de cor) sobrenome emprestado ao catolicismo, predominando os índios chamados Fulano de tal do Bomfim, do Espírito Santo, dos Anjos, do Rosário, da Conceição etc.14
Também na indumentária os índios não mais se distinguiam dos civilizados. Suas camisas brancas e "calções" de algodão, assim como o vestido e túnica das índias eram os mesmos usados pelo restante dos ribeirinhos regionais. O ouvidor Maciel dá mais um detalhe: "Andam os índios vestidos segundo o estado da terra e como lhes permitem as suas possibilidades. Todos os que estão empregados no serviço civil e militar, aparecem de casaca nas ocasiões públicas e em muitas particulares" (1803, p. 177). Não obstante tais relatos, o Ouvidor LISBOA, chocou-se ainda, em 1799, ao ver em Olivença as índias "nuas como se naquele momento tivessem saído das matas incultas." (p. 109). Oportuno seria recordar que nestas época, a nudez não era exclusividade dos ameríndios aldeados, mas costume ainda presenciado em plena capital da Bahia, tanto que a Câmara Municipal de Salvador, ainda em 1833, incluía entre suas posturas: "fica proibido andarem nuas pelas ruas pessoas de qualquer idade que sejam – pena de 4$000 ou dois dias de prisão aos infratores."15 Noutras vilas da Província havia tolerância apenas para crianças de menos de 9 anos que andassem nuas pelas vias públicas. A nudez das muIheres referida pelo Ouvidor LISBOA, supomos que restringia-se da cintura para cima, pois dificilmente os olivençanos, após séculos de controle moral jesuítico, teriam voltado a nudez primitiva. Os Tupiniquim andavam completamente nus antes do contato?
Os índios quando aldeados pelos inacianos e pelos demais missionários são tradicionalmente obrigados à construírem suas choupanas em retângulo ao derredor da Igreja, seguindo a mesma morfologia das antigas vilas luso-brasileiras. E graças à perspicácia do Capitão Domingos Alvares Branco Moniz Barreto16, podemos conhecer a morfologia de duas aldeias desta região, posto que deixou-nos as belíssimas Plantas das vilas dos índios de Santarém e São Fidélis e mais as plantas das aldeias das comarcas vizinhas, de Jequiriçá, Abrantes e Massargão.
Na planta de Santarém estão desenhadas 23 das suas 160 casas, distribuídas em duas fileiras face-a-face, nas bordas de um grande espaço vazio à semelhança de Praça Central. Na cabeceira da aldeia vê-se um Cruzeiro na frente da Igreja nova e ao lado, as ruínas do antigo templo. Quando Sua Alteza o Príncipe Maximiliano visitou uma habitação indígena, assim descreveu-a:
Fui ver os índios em suas choças. A maioria deles trabalhava na confecção de rosários (de coco de piaçava). Suas habitações são muito simples, não diferem das que se encontram ao longo de toda a costa. Todas as suas coberturas são de folhas de uricana, que substitui a palha. Em vez de folhas inteiras dos coqueiros, com que se cobre o alto das choupanas, para impedir a água de penetrar, empregam-se aqui as longas fibras da piaçava. Estas cabanas, dispostas em linha nos flancos duma colina, estão em aprazível situação, desfrutando-se daí a vista do oceano. (1916, p. 323)
A Planta do Capitão Moniz Barreto sugere que apenas uma das casas de Santarém tinha cobertura de telhas: era a residência do Diretor-Escrivão, que funcionava também como sede da Casa da Câmara e do Cartório, sendo a construção mais próxima, à mão direita, do principal edifício da localidade, a Igreja Matriz de Santo André. Seis das 23 choupanas alinhadas na Planta tinham uma só janela frontal, ao lado da porta; nove tinham duas janelas e apenas uma choupana não tinha janela. Há três casas que se distinguem das demais, pela maior grandeza; possuem cada uma seis janelas. Estas "casonas" talvez fossem reminiscências das antigas malocas coletivas destes ameríndios, que segundo Metraux, citado por Florestan Fernandes17, oscilavam entre 100 metros de comprimento por 10 a 16 de largura (1963, p. 67). O capitão Moniz Barreto encontrou-as ainda em 1794 na aldeia de São Fidélis, coincidentemente, remanescentes da tribo Tupinambá:
"As casas em círculo da aldeia de S. Fidélis mostram a forma de povoação e achei aqui o péssimo costume de morarem muitas famílias em uma só casa, ainda sem divisão alguma, para o pejo natural e honestidade que se requer," (p. 8).
Cinco anos mais tarde, o Ouvidor decreta o golpe final às moradias coletivas: "Não se lhes deve por forma alguma consentir que andem nuas as índias e que estejam três ou quatro famílias morando debaixo de uma mesma casa, onde todos vêem perpetrar-se os atos que a natureza quer esconder ainda no momento do pudor conjugal." (1799, p. 110)
Na aldeia de Santarém, o citado Capitão além de reclamar contra o desperdício de ter-se gasto 6 mil cruzados com o início da nova matriz, quando se podia somente com aquela quantia ter concertado a velha, dá um detalhe interessante relativamente à morfologia aldeã: assinala com uma cruz 4 casas situadas na mão esquerda da praça, explicando que em cada uma morava um oficial maior da aldeia, e quanto mais elevada era a cruz fincada à soleira da porta, maior a superioridade da patente do domiciliário. A maior de todas as cruzes, na frente da casa de cinco janelas, era a morada do Capitão-Mor da Aldeia.
Como o restante das vilas coloniais, também as antigas aldeias de índios tinham sua igreja, e alguns prédios civis. Informava o Ouvidor a Maciel: "As vilas dos índios têm casas de Câmaras e cadeias, e não obstante certas serem pouco fortes e aquelas pequenas, não são, contudo, inferiores às de algumas vilas da Comarca povoadas por portugueses." (1804, p. 15)
O panorama urbano em toda a Comarca é unanimemente descrito pelos que a visitaram naqueles lustros como de acelerado processo de arruinamento: os interessados em aprofundar esta questão consultarão com proveito as descrições das vilas locais feitas por Vilhena, Ouvidor Lisboa e Aires de Casal, todos citados na bibliografia.
Em Barcelos, como na maioria das demais aldeias, "o único edifício de pedra e cal que ali há é a igreja e o colégio dos jesuítas que tem sofrido (50 anos após a expulsão dos seus fundadores) grande ruína" (LISBOA, 1802, p. 15). Mesmo o Forte de São Paulo, na freguesia de Boipeba, o principal bastião de defesa da Bahia meridional, já nesta época apresentava-se "inteiramente arruinado". Em Olivença o estado dos logradouros públicos era calamitoso: "Não tem a vila casa de Câmara para as sessões da lei, nem cadeia para prisão e segurança dos malfeitores. Existe uma casa arruinada que foi do Colégio dos proscritos jesuítas, onde mora o vigário." (LISBOA, 1799, p. 111). Quando da Devassa de 1813, o Visitador Padre Sebastião Quirino de Santa Bárbara e Essa inspecionou 31 locais de culto desta região, entre matrizes, capelas e oratórios: destes, nove apresentavam grandes irregularidades quanto ao seu estado de conservação, apareIhamento das alfaias e objetos necessários ao culto litúrgico (MOTT, 1982, p. 48-49).
Eis como encontravam-se as igrejas e capelas das povoações de índios: a melhor conservada era a Igreja de Nossa Senhora das Candeias, de Barcelos, onde era Vigário o Pe. Antônio Pinto Teixeira. Diz o Visitador: "Tudo achou com a decência necessária para a celebração dos santos ofícios." A tão decantada igreja de Nossa Senhora da Escada de Olivença, com 38,5 palmos de largura de parede a parede, com o colégio jesuítico anexo, estava assim: "Muito pobre e com princípios de ruína. Visitou-se o único altar que tem, a pia bastimal, santos óleos e os paramentos do altar, que tudo achou com a decência para se poderem celebrar os ofícios divinos." Em Santarém, o edifício sacro já em 1794, provocava do Capitão Moniz Barreto o comentário crítico: "É a mais indecente igreja matriz que encontrei, e que serve ao mesmo tempo, de um lado, de curral de ovelhas." Em 1813, já arruinada, eram as casas de residência do Vigário Arcângelo Gabriel do Espírito Santo que serviam de local de culto. Na novel freguesia de Valença, o visitador Padre Essa vistoriou sete locais de culto, entre eles, a Capela da Aldeia de São Fidélis, situada quase duas léguas distante da sede municipal. Eis seu relato:
Esta capela está prevenida do que é preciso para a celebração dos Sagrados Mistérios com decência no que toca às vestes sacerdotais e mobília necessária para o Altar. Mas no que respeita a mesma Capela em si, achou-a no último desamparo, principalmente a Capela-Mor, porque o arco desta está ameaçando de ruína, a sacristia não existe mais, o altar-mor reduzido à última miséria, o camarim e frontespício dele todo podre, o pavimento semelhante ao das mais rústicas cabanas, o teto da mesma capela-mor tão arruinado, que parte dele está reparado com umas palhas cuja cobertura mandou fazer aquele vigário e devoto sacerdote, o Padre Nogueira, o qual também tinha já feito um pequeno concerto no frontispício exterior e telhado da mesma. O pavimento do corpo desta igreja está na mesma desordem. E não tem porta principal. (MOTT, 1981, p. 9-12)
Como podemos concluir, a situação material dos locais de devoção nas aldeias e vilas indígenas, quando da devassa de 1813, era assaz preocupante. Na povoação do Poxim, em 1756, diz-se que "a Igreja é fabricada de adobes de barro e rebocada de cal, sem mais retábulo nem de tábua lisa, com quatro tintas grossas, nem mais ornamentos, que para rezar a missa sem rubrica de cores" (Vigário GRAMACHO, p. 187).
Mais adiante, quando tratarmos da religião dos índios regionais, tornaremos a referir à questão dos templos. Antes porém, detenhamo-nos na reconstituição de alguns aspectos fundamentais da cultura material e do sistema econômico destas populações acabocladas.
Sistema econômico
O sul da Bahia é tido e descrito sempre como se fosse uma réplica tropical do paraíso terrestre: clima ameno, sistema fluvial ramificadíssimo e de fácil navegação, rios e praias abundantes de toda sorte de pescados e tartarugas, mangues coalhados de moluscos e crustáceos deliciosos, florestas forradas de madeiras de lei e árvores frutíferas e ervas medicinais de toda espécie,18 caça variada e abundante tanto de pena quanto de pelo. Os já citados Vilhena, Simão de Vasconcelos, tanto os Ouvidores, quanto diversos viajantes, dão excelentes descrições da fitologia, zoologia e economia regionais, textos que por amor à brevidade deixamos de reproduzir e que o leitor interessado pode localizar na bibliografia.
Outra constante no discurso regional é a inércia e preguiça da sua população que prodigamente deixa de explorar as inesgotáveis riquezas que tão generosamente a mãe natureza oferece a todo instante. Visitando a região em 1819, os naturalistas Martius & Spix ponderavam:
Quem lançar o olhar cheio de encanto para esta linda paisagem e se lembrar que já em 1540 aí foi fundada uma colônia portuguesa, perguntará admirado porque não se encontra uma cidade populosa e rica, em vez de algumas ruas cobertas de capim e de cabanas baixas? A indolência e a pobreza ali andam juntas. Os habitantes de Ilhéus, satisfeitos com o estado de constante ociosidade, sem maiores necessidades, descuidam-se tanto da agricultura que eles próprios, e ainda mais os estranhos que com eles se acham, estão expostos à fome, Atribui-se talvez com razão a visível preguiça e a rusticidade dos habitantes à circunstância de serem eles em grande parte tapuiada, isto é, de procedência indígena. De mais disto, os portugueses aí estabelecidos pertencem às classes baixas: são marinheiros, carregadores, e lavradores aborrecidos do trabalho, que se considerando iguais aos privilegiados, não podem elevar a moralidade, nem a indústria dessa população decaída. (p. 121)
Vilhena, o Ouvidor Lisboa, o Príncipe Maximiliano, todos que viajaram e exploraram a Comarca são unânimes em pintar este quadro lúgubre, malgrado a exuberância da natureza circundante. Vejamos então como sobreviviam os índios regionais desde os fins do Século XVIII até às vésperas da Independência: através destes relatos podemos vislumbrar diversos ramos de sua atividade econômica, a saber, a policultura de subsistência e agricultura comercial; a caça, pesca e coleta; o corte e transporte de madeiras; artesanato e indústria rural; prestação de serviços. Chamamos a atenção para as informações referentes à divisão sexual do trabalho, à sua ideologia econômica e aos problemas da interação comercial com os civilizados.
Comecemos por Olivença, a decana das aldeias meridionais, onde os índios possuíam sofisticada especialização artesanal:
1799:
Deu-se aos índios de Olivença uma légua de terra, que não lavram, na qual fizeram pequenas roças na vila, outras se alugavam aos particulares, que iam tirar madeira nas suas mesmas roças. Alguns índios se ocupavam em fazer contas (de rosário), arupembas, balaios; outros em obras de torno que com perfeição a desempenham, sendo o produto de seu trabalho e indústria convertido em aguardente, ficando as mulheres e filhos em total desamparo e miséria, valendo-lhes para o sustento a pesca do peixe e a caça, a que elas mesmas obrigadas da necessidade, se arrojam, sendo aliás todos eles, sadios, corpulentos e capazes de todo emprego e serviço. (Ouvidor LISBOA, 1799, p. 110)
1816:
Os índios de Olivença são pobres, mas em compensação, têm poucas necessidades. Como em todo o Brasil, a indolência é o traço distintivo do seu caráter. Cultivam as plantas necessárias ao seu sustento, tecem eles mesmos os panos leves de algodão de que fazem suas vestimentas. Não se ocupam absolutamente com a caça que em outros lugares é um dos principais passatempos dos índios, pois não têm pólvora nem chumbo, coisas que raramente se podem comprar em Ilhéus, e que por conseguinte, se têm que comprar por alto preço. Um dos principais ramos de indústria dos habitantes de Olivença é a fabricação de rosários que eles fazem com coquinhos de piaçava e carapaças de tartaruga careta. Nas mãos do torneador, toma um belo polido, donde a idéia de fazer rosários com eles. O maquinismo com que se torneiam os cocos é muito simples: uma corda ligada a um arco de madeira fixo no teto, tem preso na outra ponta um pau que se põem em movimento com o pé, o que faz as vezes de roda. Divide-se a noz em pequenos pedaços de dimensões convenientes para as contas do rosário, que são depois furadas e arredondadas. Um trabalhador pode fazer num dia uma dúzia de rosários, que custam apenas 10 réis (7 cêntimos) cada um. Saindo das mãos desse operário, os rosários são amarelo pálido: mandados para a cidade da Bahia, aí são tintos de preto. (Príncipe MAXIMILIANO, 1816, p. 222-223)
1819:
Em Olivença, a grande maioria dos índios se ocupa na fabricação de rosários de cocos de piaçaba. Informam que mandam anualmente para a Bahia cerca de 1.000 cruzados, importância desse artigo, posto que no lugar de origem custe um rosário apenas 10 rs. Outros se ocupam em fazer cordas, vassouras, esteiras de piaçaba e chapéus de palha de coqueiros, sabendo também tingir com pau brasil e tatagiba, os chapéus de palha e as fazendas de algodão. (SPIX & MARTIUS, 1819, p.122)
Certamente essa indústria de contas de rosário – e de outros objetos de tartaruga, como "cocos" de beber água, pentes de cabelo, piteiras, etc. – devem ter sido introduzidas pelos jesuítas a fim de ocupar seus missionados em atividades comerciais. É nesta ocasião que Dom José mandou abrir no Reino diversas fábricas de pentes, botões e bocetas para fumo, feitas de tartaruga, chegando a valer um arrátel da casca deste quelônio até 2.400 réis.19
Os índios de Barcelos têm economia bastante semelhante aos olivençanos, seus vizinhos, ambos descendentes dos Tupiniquim:
Em todas as obras de mão os índios de Barcelos são habilidosos, excelentes torneiros, vivem de fazer contas de coco e pau para venderem. Hábeis para falquejadores (i.e., cortadores de árvores e desbastadores de toras), porém o produto de seu trabalho e indústria se converte em aguardente. Nas terras de sua sesmaria, alguns suas roças fazem, plantam mandioca e cana, ficando a mais grande parte inculta. (LISBOA, 1799, p. 114)
Em Santarém os descendentes dos Paiaiá especializaram-se numa atividade que foi a primeira forma de exploração da mão-de-obra indígena da terra dos Brasis: o corte, desbastamento e transporte de madeira das matas para os portos de embarque. No século XVI e XVII, o pau-brasil; nos séculos XVII e XIX, outras madeiras de lei, matéria-prima indispensável para a construção civil e naval da Colônia e da Metrópole, atividade que foi incrementadíssima na região sobretudo após o terrível terremoto e incêndio de Lisboa de 1755. De acordo com um Ofício do Inspetor dos Reais Cortes de Madeira de Ilhéus, Francisco Nunes da Costa dirigido ao Governador da Bahia, (7-5-1787), apesar dos desfalques causados pelo incessante contrabando de pau-brasil nesta região, havia "fabricados" no mato de sua Inspeção mais de mil toras desta preciosa madeira às disposições da Real Ordem, e "com o auxílio dos índios, poder-se-ia fabricar neste ano até 15 mil quintais desta madeira."20Temos notícia de um contrabando de pau-brasil na embarcação inglesa, "Balandra", de um só mastro, que carregou em Belmonte 63 toros desta madeira. Tanto para o Rei, quanto para os contrabandistas, os índios eram a principal força de trabalho para falquejar as madeiras de lei: no machado e enxó, ninguém se comparava a eles, conforme os cronistas são unânimes em afirmar.
Os descendentes dos Tupinambá de São Fidélis também tinham no corte de madeira o principal esteio de sua economia:
Os índios desta aldeia são peritos navegadores do caudaloso rio Mapendipe, pelo qual descem com incrível facilidade sobre monstruosos paus até a boca ou foz da divisão deste rio e do de Una, donde são embarcados para o porto da Bahia em embarcações próprias que ancoradas esperam a sua correspondente carga. Do mesmo modo são os melhores serradores de madeira, principalmente de vinhático, que abundam aquelas matas, insígnes fabricadores de grandes embarcações de um só pau, que no Brasil chamam de canoas, muito próprias para a navegação do interior dos rios. Têm grandes conhecimentos de ervas medicinais. Agricultam arroz correspondendo a colheita com grande excesso à sementeira por serem as terras na baixa das matas muito próprias para esta plantação. São também grandes cordoeiros de diferentes estrigas, no que poupam muito à Real Fazenda no trabalho das puxadas dos grossos e pesados paus. As índias são famosas tecedeiras de pano de algodão, principalmente para as chamadas tipóias (redes) que são camas ordinárias de que fazem uso geral quase todos os índios daquela capitania, sustentadas por cordas. (Capitão MONIZ BARRETO, 1794, p. 10)
O estereótipo do índio irresponsavelmente preguiçoso e indolente não corresponde à realidade descrita por inúmeros viajantes que os conheceram nos séculos passados, sobretudo quando envolvidos em tarefas tão pesadas e penosas, como falquejar madeiras de lei:
Quando não estão embriagados, os índios são dóceis e civis, e contentes sofrem carregar em seus ombros, por insignificante prêmio, aqueles que os buscam para os levar em viagem prolongada, a que facilmente se prestam tão ligeiramente, que vencem em um dia 8 léguas. Se não são amantes do trabalho é por efeito da má educação em que tem vivido, da qual saíram agora, para manifestarem ao mundo a calúnia com que são ofendidos. (Ouvidor LISBOA, 1799, p. 110)
Curioso observar que apesar das gravuras antigas mostrarem geralmente negros carregando no ombro, as pesadas cadeirinhas, redes e liteiras, com pessoas abastadas em seu interior, não é apenas nesta região que observamos a utilização dos índios nestes misteres: no Rio de Janeiro, nesta mesma época, eram os índios os preferidos no transporte de certos objetos dentro do espaço urbano.21 Trabalhavam também os indígenas acaboclados como alugados e jornaleiros, isto em pleno período escravista:
A constituição física destes índios do litoral é robusta. São bons remadores e nadadores. Quando se resolvem a trabalhar em casa dos fazendeiros, por um salário diário, adiantam a derrubada das matas com muito jeito e perseverança. Grandes extensões de florestas foram derrubadas, queimadas e plantadas de milho, arroz e cana pelos escravos do Sr. Weyill e por índios trabaIhando a jornal. (SPIX & MARTIUS, 1819, p. 127)
Nalguns misteres são os ameríndios superiormente dotados vis-à-vis o restante da população: "Os mais hábeis condutores de jangadas são os índios civilizados da costa, que têm suas habitações nessa região do Una, espalhadas pelas matas litorâneas." (Príncipe MAXIMILIANO, 1816, p. 312). É na qualidade de guias de viajantes que os ameríndios revelam o quão intimamente conheciam os segredos da natureza, não sendo à toa que diversos viajantes registraram ser esta região das mais ricas em ervas medicinais, cujos poderes curativos ou como antídoto às serpentes venenosas, eram perfeitamente conhecidos e utilizados pelos aborígines.22 Eis o relato pitoresco dos cientistas alemães:
Cada lufada de vento que movia as copas tranqüilas, cada ruído que fazia um animal, era percebido pelos índios (guias) que dirigiam para todos os lados os pequenos olhos escuros e as orelhas acabanadas, apreendendo, de uma vez, todos os atos que se desenrolavam nesse grande espetáculo da natureza, através do qual passam, aproveitando-os consoante suas necessidades. Ora chamavam os papagaios dos galhos, imitando-lhes o grito, ora espiavam os esquilos que fugiam pelos ramos, ora pegavam uma paca ou coati a entrar nas tocas. Com agilidade apanhavam na madeira podre, enquanto andavam, larvas de grandes besouros, que consideravam excelente iguaria, ou quebravam uma haste nova de costos (sic), para matar a sede, chupando-lhe a seiva. Assim se utilizavam para seu proveito de tudo que os cercava, e seguiam o caminho com segura presteza, conservavam sempre fielmente a direção tomada de S.S.E. Orientam-se com segurança através da imensa floresta. Por diversas vezes usaram o frasco de cachaça, quebrando as pontas dos galhos onde passávamos para não errar na volta. À noite, os índios construíram cada um para si, abrigo: um rancho que cobrimos com folhas de algumas palmeiras e arranjando para leito espessa camada de fetos (samambaias). Os índios tiraram grandes pedaços de cascas de árvores com que se cobriram. Estávamos bastante providos de mantimentos e de café, porém nos esquecemos da vasilha para prepará-lo. A capacidade inventiva dos nossos guias encontrou recursos para isso. Uma folha nova, inteira, da palmeira pati foi amarrada em forma de canoa debaixo de uma vara, e cheia de água, foi colocada sobre o fogo. Para admiração nossa, a água chegou a ferver sem que a panela vegetal se arrebentasse [...]. (1819, p. 136)23
A posse da terra
Em 1758, o Marquês de Pombal eleva à categoria de vila dezenas de aldeias indígenas do Brasil, devendo reger-se todas elas pelo mesmo Diretório dado às tribos do Maranhão, que entre outras cláusulas, ratificava o costume praticado tradicionalmente em diversas capitanias, com certeza em Sergipe e no Piauí, de se reservar uma légua de terra em quadra para cada aldeia ou missão.
Encontramos referência explícita de que os índios de Olivença, Barcelos, São Fidélis, Almada e Santarém possuíam a tal famigerada légua em quadra, e tudo nos faz acreditar que todas as aldeias, de jure, também as possuíam, apesar de até então não termos localizado documento comprobatório. A "légua em quadra" funcionava como espécie de arras – penhor e garantia estabelecidos pelos donos do poder, primeiro como atrativo dos gentios nômades, prometendo-lhes em nome de El Rey, a propriedade e tranqüilidade dentro daquele espaço; segundo, a tal légua funcionava também como fator de sedentarização dos bandos tribais, que deviam restringir sua futura existência dentro daquele espaço, abandonando as matas, outrora o santuário inexpugnável do gentio bravo. Conforme mostramos páginas acima, a história da aldeia de Almada é particularmente interessante, pois permite-nos vislumbrar os mecanismos da redução da nação Grem, sua instalação na nova missão e seu desmantelamento.
Algumas aldeias mais antigas conseguiram, através do usucapião, ampliar seu território inicial: quando, em 1798, o Ouvidor Baltasar da Silva Lisboa efetuou o tombamento das terras devolutas da Comarca, cortando-lhes as matas reais, ao chegar em Olivença, diz que os índios "estendiam a sua légua até às vizinhanças do rio Aqui, abrangendo mais de duas léguas das que lhes foram dadas na criação da vila".24
Vários autores oitocentistas e novecentistas referem que boa parte das terras indígenas estavam arrendadas à não-índios, que as exploravam não apenas agricultando-as, mas sobretudo, com a rendosa extração de madeiras reais. O caso de Barcelos é documentado pelo Professor Vilhena e pelo arguto Ouvidor Lisboa:25
Uma grande parte das terras dadas por sesmarias aos índios de Barcelos acha-se arrendada a diversos brancos, que por ali habitam. As cabeceiras do rio Tapugá arrendadas pelos índios têm bastante e ótimas madeiras para construção naval, como sejam sucupiras-açu, adernos, sapucaias, paus de bleo, paus roxo, com cômodas puxadas para o porto de embarque. (VILHENA, 1798, p. 498)
"Os foreiros que se admitiram na data (de terras) de Barcelos, fazem mais proveitosamente a cultura de mandioca e da cana, que exportam para a cidade da Bahia." (Ouvidor LISBOA, 1799, p. 114)
Em Santarém os foreiros alienígenas construíram significativo povoado nas terras dos Tupinambá: "Deu-se uma légua de terras em quadra aos índios de Santarém, da qual uma parte a trazem arrendada a vários portugueses que com os seus escravos constituem uma povoação de 350 pessoas." (Ouvidor LISBOA, 1799, p.115)
Em 1813, quando o já citado visitador Padre Essa, nomeado pelo Bispo D. Frei José de Santa Escolástica, faz a inquirição canônica na povoação de São Fidélis, a qual nesta época era missionada por um clérigo secular, e não mais pelos capuchinhos italianos, encontrou-se aí um total de 39 fogos que abrigavam 139 almas de confissão. Informa o vigário Nogueira que a aldeia "tem uma légua de terras habitada de muitos foreiros que pagam renda à dita Capela." (MOTT, 1981, p. 10) Quer dizer: a renda paga pelos foreiros das terras arrendadas aos índios era embolsada pelo orago São Fidélis e não pelos índios, seus legítimos proprietários. Provavelmente o mesmo devia suceder com as rendas auferidas com os arrendatários de Olivença, Barcelos e Santarém, cujos padroeiros das igrejas, melhor dizendo, seus capelões e vigários, se encarregavam de cobrar anualmente o estipêndio foral. Em Olivença, verbi gratia, quando da Devassa de 1813, o Capitão-Mor Manuel de Jesus, índio, era acusado de ter consumido um pouco de gado pertencente à Igreja de Nossa Senhora da Escada, "não prestando conta dele".26 Quer dizer: além do foro das terras aldeãs, Nossa Senhora da Escada era fazendeira, possuidora de rebanho bovino. Zelando por esse patrimônio, o clero estava apenas cumprindo o que Jesus ordenara:
"Que haja um só rebanho, e um só pastor..." Aliás, o Ouvidor Lisboa registra que os párocos das freguesias limítrofes de Belmonte e Canavieiras viviam em pé de guerra "em razão das benesses a que ambos pretendem ter direito, um pela administração dos sacramentos e o outro pelo direito de domiciliário. (Ouvidor LISBOA, 1799, p. 109)
De acordo com as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707), "as premícias, oblações e ofertas que se oferecem às Igrejas e Capelas destinam-se ao ornato dos templos e sustentação de seus ministros" (§ 432) – portanto, os coitados dos índios não podiam reclamar, e antes, até denunciavam aqueles mesmos índios que tentassem apropriar-se dos gados e rendas pertencentes à capelania da aldeia. Os foros das terras arrendadas certamente deviam ser privilégio clerical. Sabemos, porém, que os índios, por tradição jesuítica, estavam isentos de pagar os dízimos à Igreja, privilégio importante, importantíssimo mesmo, posto que nesta época o clero baiano era tão avaro e explorador, que cobrava o dízimo até das pacas e tatus apanhados pelos caçadores: um matuto de Jaguaripe, Isidoro da Silva, foi preso e enviado aos cárceres do Santo Ofício de Lisboa, por ordem do Comissário João Calmon (1732), exatamente por ter dito que "os dízimos eram cobrados pela Igreja para sustentar clérigos vadios." Ao ser cobrado do dízimo das alimárias que caçava, desabafou com a blasfêmia causadora de sua derrota: "Nosso Senhor não come caça, nem carece de dízimos: tudo é uma ladroíce!"27
Já que tocamos no tema "clero", vejamos, a seguir, o que os contemporâneos revelam-nos a respeito da situação religiosa das aldeias desta comarca cuja proteção celestial fora encomendada a São Jorge – santo aliás cujo direito aos altares foi cassado contemporaneamente pelo Sumo Pontífice João XXIII...
Religião
"A maior infelicidade a que pode chegar a criatura racional neste mundo é a de não conhecer nele a verdadeira religião," (Capitão MONIZ BARRETO, Plano sobre a Civilização dos Índios, 1788).
A Comarca de São Jorge dos Ilhéus, como grande parte das povoações brasileiras, nasceu sob a sombra das sotainas dos Jesuítas. Mem de Sá teve sempre grande fervor à Companhia de Jesus, e como já referimos, doou aos Inacianos do Colégio da Bahia, doze léguas com reserva de água, para levantar um engenho, no Rio das Contas e Camamu (1563-1567). Aí fundaram os religiosos duas grandes fazendas, Santa Inês e Santana, ambas com uma população de mais de 250 escravos. Em IIhéus, os Jesuítas do Colégio de Santo Antão de Lisboa ganharam também duas léguas de terra, acrescidas posteriormente de outras volumosas doações pias, possuindo excelente casa e igreja, contando mais de 300 cativos.
Foi portanto mais fácil aos Jesuítas o estabelecerem-se nesta Comarca, porquanto em razão do seu ministério apostólico, se puderam favoravelmente introduzir no ânimo do gentio, afirmar que eram os únicos senhores do país, pois dominavam aos gentios e impuseram pensões de reconhecimento aos foreiros. Toda a comarca constava de aldeias de índios e poucos portugueses." (Ouvidor LISBOA, 1799, p. 104)
A catequese jesuística, apesar de etnocida, como a praticada pelos demais missionários, indubitavelmente foi menos catastrófica para os índios, do que após a transferência da direção das aldeias para o clero secular ou para a tutela dos Diretores leigos. Carles Expilly, arguto e polêmico viajante francês que percorreu esta região nos meados do Século XIX, "cuja admiração pelos Jesuítas não deixa de ter reservas", não obstante, revela-se franco defensor da ação benfazeja dos irmãos de Anchieta e Nóbrega:
Durante duzentos anos os santos padres governaram os índios do Brasil. Durante dois séculos, a sorte dessas hordas selvagens foi consideravelmente melhorada. As aldeias surgiram como por encanto. Os indígenas abandonavam as matas e vinham receber a lei dos missionários. A tutela dos Jesuítas foi benfazeja, ninguém o contestará, e os sucessos que coroam os seus esforços testemunham a superioridade da sua administração. Eles eram amados pelo bem que faziam. (1854 , p. 139)
Algumas aldeias jesuíticas disputavam em grandeza com as vilas dos portugueses: os Inacianos, mesmo que fosse em proveito da Companhia, sempre estavam defendendo "seus" índios contra a ambição e prepotência dos colonos. A tal ponto desejavam isolá-los do contágio com os brancos e demais colonos, zelosos de sua hegemonia, que chegaram a derrubar o primeiro pelourinho erguido na vila de Camamu (1644), para evitar que fizesse a novel povoação concorrência com a vizinha aldeia dos Tupiniquim de Barcelos – então conhecida como "Aldeia do Marahu". (Ouvidor LISBOA, 1799, p. 105). Vezes houve em que os índios tomaram armas para defender os religiosos, como no episódio da prisão do Padre Simões, na Ilha de Boipeba, nos primeiros anos da colonização: o leitor interessado em conhecer maiores detalhes sobre a ação missioneira dos inacianos na região, encontrará boas informações em Simões de Vasconcelos, Serafim Leite, Almeida Prado e Silva Campos, todos citados na bibliografia. Digno de nota, contudo, são dois episódios ocorridos nesta região envolvendo um dos mais controvertidos jesuítas que andaram pelo Brasil, o já referido taumaturgo Padre Gabriel Malagrida, S. J., que terminou seus dias queimado pela Inquisição em 1761. Malagrida percorreu a Comarca de Ilhéus no ano de 1736, pregando as Santas Missões em Cairu, ao falar do inferno e das chamas que esperavam os pecadores, colocava suas mãos sobre uma vela acesa e após tempo considerável, a retirava ilesa, causando grande devoção e arrependimento mesmo nos corações dos mais empedernidos pecadores. Nesta localidade, um indivíduo incrédulo, querendo mostrar que não havia naquele ato nada de espantoso, pôs um dedo na chama, mas com grande confusão sua, tirou-o, rapidamente, e tão queimado, "que até esteve a pique de perder o braço!" Não é difícil imaginarmos o terror e piedade cristã que devia abater sobre a "tapuiada", presenciando fenômeno tão inaudito, acrescido de outros prodígios que Malagrida geralmente praticava. Em Boipeba, pregando, certa feita, o mesmo padre-santo numa praça, para imensa multidão, "uma revoada de pássaros esvoaçou sobre o auditório trinando agradáveis cantares" (MURY, 1875, p. 76-801). A catequese deste missionário escorava-se fundamentalmente no emocionalismo fanático: Malagrida entrava nas vilas e povoações descalço, com uma corrente no pescoço e crucifixo na mão, seguido da turba devota que o acompanhava para a Igreja. No alto do púlpito, flagelava-se com a corrente de ferro até correr seu sangue pelo chão, respingando-o sobre os fiéis. Promovia, após demorada pregação, a procissão dos mortos, carregando num andor "uma caveira exposta enquanto a turba lamuriante gemia ao som do miserere". Seu sermão repetia o mesmo leitmotiv: "Estão condenados a morrer todos os homens. E certo que dentro em pouco se farão assim os funerais de uns desses que a esta hora me escutam. E então: riquezas, honras, prazeres e vaidades, de que servem?" (MURY, 1875, p. 92).
Malgrado o elã místico do inaciano Malagrida, somente em 1813 que os moradores de Boipeba vão requerer do Arcebispado o poder para erigir um tabernáculo na nova capela, a fim "de estar Deus vivo permanente nesta vila para o socorro espiritual do povo". Neste mesmo ano, também os nativos de Barcelos ao erigir a Irmandade do Santíssimo Sacramento na aldeia, declararam que "a única consolação dos miseráveis moradores" era a ereção do sacrário na matriz de Nossa Senhora das Candeias, a protetora da localidade.28 Para os índios aldeados, o período jesuítico representou, sem dúvida, o momento de maior brilho em sua inserção no mundo civilizado. As igrejas e os colégios da Companhia eram os edifícios mais sólidos e imponentes de toda a Comarca; as alfaias, vasos sagrados, cortinados e demais objetos de culto de suas igrejas e capelas ostentavam luxo e requinte inigualáveis. O inventário das alfaias da Capela de Santa Inês são uma prova.29
Foi durante a tutela jesuítica que dois índios, um Tabajara de Olivença e um Tupiniquim de Barcelos, atingiram o ápice do prestígio e reconhecimento social permitido a um nativo: "merecendo da Real Contemplação o serem honrados com o Hábito de Cristo, pelo se animarem a verrumar debaixo d’água, na Barra do Camamu, uma nau holandesa, com cujos furos foi a pique". (Ouvidor LISBOA, 1799, p. 113). Imaginemos esses dois tapuias vestidos com a sotaina branca com a cruz de Cristo bordada no peito, participando das cerimônias litúrgicas e procissões em suas respectivas aldeias. Cerimônias certamente que deviam contar com requintado acompanhamento musical à européia, posto que nosso arguto Ouvidor ainda encontrou notícia, em Barcelos, de um índio chamado Inácio Jorge, que fabricou "uma harpa e rabecão com suas cordas correspondentes, afinando-as com tanta arte como se nela fosse insignemente instruído, atraindo a admiração dos professores que o viram acompanhar, com toda harmonia, as músicas e a missa a três vozes sem perder um só tom" (LISBOA, 1799, p. 114). Lastimavam aí os anciãos "que morriam de mágoa tanta, quando se recordavam que os seus antepassados tinham sido mais afortunados de que seus filhos, sabendo a maior parte música perfeitamente e que de presente não tinham um só menino a quem pudessem ensinar a música, posto que não sabiam ler, havendo entre os velhos um único que soubesse, por terem os mais perecido. "Como se sabe, a música sempre constituiu elemento fundamental na catequese jesuítica. É do próprio Anchieta a experiência e a frase lapidar: "Com música e harmonia me atrevo a trazer à fé de Cristo todos os gentios da América".30
Com a expulsão dos discípulos de Santo Inácio (1760), as aldeias entraram em nítido e acelerado processo de desestruturação: os colonos invadiram as terras outrora tão zelosamente defendidas pelos religiosos, a instrução escolar perdeu a regularidade ou se extinguiu, os templos e construções administrativas se arruinaram. Segundo informações do Capitão Moniz Barreto (1788), "o governo e jurisdição que têm os párocos temporalmente nos índios é tão despótica, que eles arbitrariamente e absolutamente os condenam a horrorosos castigos de golilhas, de prisões à ferros." Se os próprios "párocos", ministros do Evangelho, tratavam os índios com tanta crueldade, imaginemos os Diretores e demais seculares.
Às vésperas da expulsão dos Inacianos – entre os anos 1756-1757, contava a Comarca de São Jorge com seis vigários seculares, a saber: Pe. Luís Soares de Araújo, de Ilhéus; Pe. Roberto de Brito Gramacho, de Poxim; Pe. Antônio Telles de Menezes, de Rio das Contas; Pe. Pedro do Espírito Santo, de Maraú; Pe. Joaquim Pereira da Silva, de Cairu; Pe. José Borges de Serqueira Merello, de Boipeba. Alguns desses sacerdotes permaneciam a vida toda em suas freguesias, como é o caso do Padre Joaquim Pereira da Silva, que já em 1716 solicitava pela primeira vez à Mesa de Consciência e Ordens de Lisboa o auxílio régio anual de 40$000 para as despesas de manutenção de uma canoa e o pagamento de dois remeiros a fim de desobrigar todas as almas de sua freguesia do Cairu.31Em 1757, o mesmo sacerdote ainda permanecia no comando de seus fregueses: quase meio século de ministério sacerdotal!
Em 1759, informava o Ouvidor Lisboa que só a vila de Cairu – a povoação mais rica da Comarca nesta época, abrigava nove sacerdotes, sendo quatro capuchinhos velhos e cinco padres seculares (p. 116). Em 1813, quando da Devassa, foram arrolados ao todo catorze sacerdotes nesta região, acrescidos de dois clérigos in minoribus e três sacristães. A virtude e a disciplina não eram a tônica dos ministros do altar: seis desses presbíteros foram acusados ao Visitador de não cumprirem o celibato eclesiástico, alguns deles vivendo concubinados "pública e escandalosamente, tendo filhos dessas uniões duplamente pecaminosas". (MOTT, 1982, p. 21)
Quanto aos missionários e capelães das aldeias, os documentos revelam ter havido alguns eclesiásticos muito abnegados e virtuosos, conquanto a maioria deixasse muito a desejar. O Ouvidor LISBOA, profundo conhecedor dos problemas regionais, sugeria que se nomeassem preferencialmente "em lugar de pároco sacerdote secular, um religioso (frade) de boa vida, que acostumado ao retiro e à exação de uma vida mais dura, ensinasse aos índios a doutrina, a ler e a latinidade aos que julgar mais hábeis". (1799, p. 110) Os protestantes Spix & Martius não poupam elogios a um missionário capucho:
Se houvesse alguém capaz de conseguir converter aos sentimentos de mansidão e tornar susceptíveis à voz da religião esses irrequietos e incultos filhos da floresta, deveria ser o digno ancião Frei Ludovico de Liorne. Da nobre fisionomia desse homem, transpareciam tranquilidade e serenidade. Seu porte nobre o exalçava como um ser de espécie mais elevada sobre os tímidos selvagens, que pela confiança nele depositada, se preparavam para tecer as primeiras centelhas dos sentimentos religiosos. Se tais meios de humanizar não atingirem a meta, então se deve desesperar em geral da possibilidade de elevar a verdadeira condição de homem esses decaídos filhos da América. (1819, p. 140-141)32
Também o Visitador Essa, em 1813, observou no Padre Nogueira, vigário dos índios de São Fidélis, "zelo e caridade sacerdotal", pois mandara fazer uma cobertura de palha para proteger da ruína total o camarim e frontespício da capela da aldeia, tendo o mesmo sacerdote já feito anteriormente pequeno concerto no telhado da mesma (MOTT, 1981, p. 11).
Na Biblioteca do Porto tivemos a ventura de encontrar o manuscrito de um sermão proferido perante este virtuoso sacerdote, datado de 1791. Traz o título: Oração que foi repetida por Domingos Alves Branco Muniz Barreto, na presença do povo indiano da aldeia de São Fidélis, da Capitania da Bahia, depois da Missa que mandou celebrar pelo Reverendo Vigário Padre Antônio Nogueira dos Santos, na colocação que se fez da Imagem do Sagrado Coração de Jesus no Altar-Mor da Igreja Matriz. O tom desta falação é civilizatório apesar da ocasião e do local serem sacros:
Não se tem extinguido de todo aquela barbaridade dos vossos primeiros antepassados, mas até agora todos vós tendes sido privados das conveniências temporais que podíeis ter conseguido pela vossa melhor cultura e civilidade. Esta desordem tem sua primeira origem no abuso que se fez logo no princípio dos vossos estabelecimentos, das vossas liberdades, com transgressão das leis divinas e humanas, e pela usurpação dos vossos bens, mas nem por isso deixa de proceder à sua segunda causa, da péssima administração com que depois tendes sido educados e ainda pela vossa indolência e frouxidão... Uma das maiores relaxações em que viveis é a da falta do pejo natural da compostura e honestidade. Quem dissera que tendo sido o Brasil descoberto há 291 anos, ainda vos conservais debaixo de umas palhoças que mal vos resguardam do sol e da chuva, imitando assim a muitos gentios que se acham nesses sertões vivendo como brutos? Outro vício bem dominante e universal entre vós é o da bebida d’aguardente, o que concorre para a desunião em que viveis nas vossas povoações e para a desordem entre os povos vizinhos e para os continuados insultos que fazeis.
Conclui o discurso estimulando o "povo indiano" desta aldeia a desenvolver a "honesta ambição", para o incremento do comércio e agricultura. "Assim é que me direis que poucas terras se vos permitiram ou destinaram para as vossas plantações e lavouras: cultivem primeiro o pouco e então nossa Augusta Rainha, com piedade e beneficiência, dar-vos-á maior socorro e proteção". Se os índios de São Fidélis entenderam discurso tão cheio de palavras eruditas, de fato já eram bastante instruídos na língua de Camões...33 Digno de destaque é este detalhe devocional: "a a colocação que se fez da Imagem do Sagrado Coração de Jesus no Altar-Mor da Igreja Matriz de São Fidélis" – lembrando que o culto aos Sagrados Corações, embora difundido pela cristandade sobretudo após as visões de Santa Margarida Maria Alacoque (1647-1690), visitandina francesa de Lion, teve em Portugal, como sua principal devota e propagandista, a Rainha D. Maria I, a Louca (1777-1816), instituidora de seu culto na Basílica da Estrela, em Lisboa, muito estimulando a divulgação desta novel devoção também na América Portuguesa, inclusive em remotas aldeias indígenas, como nesta, da Comarca de Ilhéus.34
Mesmo após a transferência da sede da freguesia de São Fidélis para a nova vila de Valença, o pároco "que sempre foi bem quisto dos moradores, ainda aí mora – a 1/4 de légua – e tem suas plantações de mandioca e outros frutos do país", ratificava o Ouvidor Maciel em 1803. (p. 177)
Contudo, a maior parte das referências aos vigários das aldeias do Sul da Bahia enfatiza, antes, sua inércia, materialismo, simonia e imoralidade – nada de virtudes cristãs. Eis algumas denúncias:
Os párocos que a desgraça trouxera para Almada, tratavam só de fazer para si algumas lavouras na sesmaria dos mesmos índios, e à custa deles, tirarem madeiras, reduzidos pois ficaram sem alguma diferença de selvagens centrais, que nas cabeceiras habitavam, os quais podiam já hoje estar habitando em aldeias, pois que saiam pacificamente, ora ali, ora na cachoeira da vila, ou em algumas fazendas dos moradores: (Ouvidor LISBOA, 1799, p. 110)
O último sacerdote que se deu aos Índios de AImada, tinha tanto desejo e tão ardente da sua felicidade, e era tão levado aos interesses da glória de Deus, que deixava passar um mês e dois sem lhes dizer missa. Tinha deixado por desmazelo e irreligião furtar os sanguíneos e corporais, e parte da pedra dara, animando-se a celebrar sobre uma pequena parte dela, chegando a tanta lástima a profanação das alfaias sagradas, que um Manuel da Encarnação, pio e religioso, tomou a seu cuidado a guarda do resto das ditas alfaias. (Ouvidor LISBOA, 1799, p. 110)
Santarém estava sujeita durante décadas ao sacerdote mais devasso de toda a Comarca: o Padre Joaquim Francisco Malta. Foram treze os "homens bons" que o denunciaram ao Visitador, de estar concubinado há anos com a branca Policarpa, da qual tinha vários filhos (MOTT, 1982, p. 21), conduta aliás já em 1799 denunciada pelo Ouvidor LISBOA, o que reforça nossa opinião a respeito da imparcialidade e objetividade das informações prestadas por este rigoroso observador:
"Vizinho a Santarém há um clérigo que só pela coroa parece sacerdote, Joaquim Francisco Malta, dissoluto, altivo, vingativo e orgulhoso, muito perigoso naquela povoação." (1799, p. 116) Nesta mesma freguesia, outro presbítero também resvalava no 6° Mandamento: o Pe. João Batista, de Trabaoé, o qual era acusado de "tratar ilicitamente com Faustina".
Em Olivença, a letargia e ganância do clero não tinham limites:
Na insuficiência dos meios, na falta de doutrina e instrução civil e eclesiástica, se entorpecem aqueles índios. Apenas têm três sacerdotes, entrando o pároco, doente, sem forças para exercer o seu pastoral ministério, que ainda sendo de um vigor extraordinário, Ihe era impossível o desempenho sem ter coadjutor, nem algum outro sacerdote que confesse. Que infinidades de males se não seguem? A religião é o mais poderoso freio dos mortais, porém, e uma vez que os homens se familiarizam com os crimes e pela falta dos conhecimentos da religião, não são instruídos e avivados as idéias da fé que professam, eles se abandonam aos prazeres dos sentidos e não têm outra regra de viver que a satisfação do mesmo prazer, e o que motiva seus próprios interesses. O desprezo da religião e das coisas sagradas vão por esta causa minando de perversa corrupção o coração dos povos... O vigário de Olivença, tendo tão pequena côngrua com a qual se não pode manter sem ter a unção necessária para tomar a si o tirar da brutalidade os que Ihe foram cometidos, dos quais só pretendem as conhecenças, incomodando aos magistrados para tirar do sangue e da miséria dos índios, o pagamento das mesmas, chegando a tanta irreligião, que perante mim se requereu se penhorassem as miseráveis cabanas cobertas de palha em que moram, ou ao menos em contas (de rosário) e em serviços arbitrariamente impostos. O que se pode esperar de semelhantes pastores? Os meninos não sabem ler, menos a doutrina; as mulheres e homens da mesma forma ignoram os princípios da moral e da religião. (Ouvidor LISBOA, 1799,p. 109-110)
O já citado vigário de Santarém, Padre Malta, além de público concubinato e pai de filhos naturais, era também acusado por diversos fregueses de ter-se ausentado da vila deixando algumas pessoas morrer sem sacramentos, não ensinar a doutrina, não enterrar os defuntos sem o pagamento prévio das espórtulas.35
A displicência do clero – sobretudo durante o período pombalino – é apontada como um dos fatores grandemente responsáveis pela irreligiosidade e imoralidade dominantes na Comarca em geral, e nas aldeias indígenas em particular. O outro grande culpado são os Diretores de Índios, assunto que trataremos mais adiante. Vejamos agora quais elementos os contemporâneos nos ensinam a respeito da vida moral da "tapuiada".
Sexo e família
Quando os europeus entraram em contato com os brasis, ficaram chocadíssimos, não apenas com a nudez, poligamia e práticas incestuosas dos indígenas, como também com a lascívia e gosto com que praticavam e falavam sobre todo tipo de "sujidades" do sexo. "São os Tupinambá tão luxuriosos que não há pecado de luxúria que não cometam", dizia Gabriel Soares de Sousa em 1587 (p. 372).
No início do Século XIX, o Ouvidor Navarro de Campos postulava categórico: "A religião das nações índias da América é toda acomodada ao gozo dos prazeres [...]" (1804, p. 178)
Nas culturas ameríndias, a valorização diferencial dos sexos e de suas atribuições era bastante acentuada: sobre as costas das mulheres, como já vislumbramos através dos documentos aqui citados relativamente à atividade econômica, recaía parte significativa e rotineira do trabalho de subsistência. Os homens, por seu turno, dedicavam-se notadamente à derruba e transporte de madeiras, à confecção das contas de piaçava e ao artesanato de carapaça de tartaruga, à pesca e caça. Mesmo a caça, como observou o Príncipe Maximiliano, em Olivença, quase não era mais praticada na segunda década dos oitocentos: Sua Alteza teve dificuldades em encontrar um índio caçador para acompanhá-lo mato a dentro.
Provocava espanto no Ouvidor Baltasar Lisboa o tratamento dispensado pelos "vermelhos" às suas mulheres, escandalizando-se com suas expressões sexuais pouco cristãs. Eis como este ilustrado pensador filosofava sobre o tema:
Pretenderam alguns escritores que o calor da zona tórrida influía na fraqueza da constituição dos índios, e daqui vinha o desprezo com que tratavam as mulheres, sujeitas comumente aos trabalhos mais fortes. Mas quem dirá que aquela paixão do amor destinada à união social e como uma fonte de ternura, e que mais ardentemente abrasa o coração humano, seja comum ao homem civilizado e ao selvagem? Se as mulheres são deles tratadas com frieza e indiferença, não é de admirar, pois, que só nas sociedades civis é que aquela paixão toma sua energia, que a religião adoça e regula. O índio sim, olha a mulher com uma espécie inferior a sí, não se ocupa de ganhar o seu afeto por cuidados contínuos e menos conservá-la por complacência e doçura, pois que nos índios a paixão de amor é um instinto da natureza. Na sociedade, é efeito de delicadeza de sentimento e da religião, que dão vigor aos sentimentos d’alma e a que a agitam e a penetram das mais ternas afeições possíveis. E se nas mesmas sociedades as relações entre os dois sexos variam tanto, como não deve produzir mais espantosos efeitos nos homens selvagens? O índio não tem alguma idéia de castidade, nem é virtude que apreciam. Os pais são, muitas vezes, os que corrompem as filhas e os mesmos filhos não têm horror de se ajuntarem com as mães, nem os parentes mais propínquos com as suas próximas parentas. Um só dentre eles tem ciúmes da mulher, senão quando estão embriagados, e não duvidam entregar assim a esta, como às filhas, a quem aguardente lhes subministra. (1802, p. 20)
E, noutra parte, acrescenta:
Os pais dormem juntamente com os filhos e filhas casadas, solteiras, e todos são testemunhos da sua corrompida brutalidade. E muitas vezes são os próprios pais e parentes que abrem às suas filhas o caminho da prostituição, o que é geral em todas as povoações. (p. 18)
As casas grandes dalgumas missões onde persistia "o péssimo costume de morarem muitas famílias juntas" certamente facilitavam a persistência de práticas sexuais pouco cristãs, "indecentes", na ótica do catecismo tridentino. Em 1788, propunha o Capitão Moniz Barreto: "Os párocos não devem permitir a amancebia, nem permitir que casamentos sejam feitos ao modo gentílico, com superstições, danças torpes e obscenas, e com pública consumação, punindo-se exemplarmente os transgressores." (Plano sobre a Civilização dos Índios do Brasil) A situação de desorganização da cultura tribal, notadamente no que tange à distribuição espacial das unidades familiares ou grupos domésticos, a remodelação do sistema de parentesco e dos tabus de incesto, certamente levaram a "tapuiada" à adoção de uma prática sexual sincrética, aliás, como devia ser a regra também para os africanos e seus descendentes da região, inclusive para os brancos das classes de menor convivência com o clero romano. De um total de 596 moradores da comarca de Ilhéus acusados na Devassa de 1813, 361 – 60,5% – tinham resvalado no campo da moral familiar, entrando nesta rubrica os seguintes comportamentos pecaminosos: concubinato, tratos ilícitos, incesto, alcovitice, meretrício, ausência do cônjuge, maltrato à mulher (MOTT, 1982). De um total de 58 índios e índias denunciados ao Visitador, 40 – 70% o foram por irregularidades na moral familiar. Comparados com o restante da população, os brasis demonstravam maior resistência à adoção da moral imposta pela Igreja. Vejamos alguns detalhes sobres esta questão.
Viviam concubinados 28 índios, seja índio com índia, seja pardo, preto e branco com índias. Encontramos apenas 5 índios que tinham como amásias mulheres pardas, nenhum amigado com brancas ou negras. As brancas, bem muito raro e disputado, certamente não davam vez para os "vermelhos"; quanto às pretas, certamente, os próprios índios as discriminavam. As palavras do velho botocudo ouvidas por Expilly não deixam dúvida: ao ser convidado a partilhar de uma refeição na mata, na qual além dos europeus, também estariam presentes dois capitães-do-mato mulatos, bradou o velho pajé: "Nunca, nunca me degradarei a ponto de aceitar a companhia dos filhos de uma negra! Aos brancos o meu ódio, aos mulatos o meu desprezo." (1854, p. 185). Preconceito que pode ser explicado em parte como mecanismo consciente de auto-defesa da eugenia e imunidade indígenas, posto que a lei protegia os brasis e seus descendentes (mamelucos e curibocas) de serem escravizados. Um descendente da união de um índio com uma negra, ou de um negro com uma índia (cafuso), caso apresentasse fortes fenótipos negróides, poderia eventualmente ser reduzido à escravidão, inclusive ser roubado e vendido alhures como escravo. A documentação registra freqüentes casos de crianças de cor e traços amestiçados que eram roubadas e reduzidas ao cativeiro: a legislação previa sanções contra os ladrões-traficantes, sendo os ciganos useiros em tal violência.36 Além desta explicação pragmática para o preconceito racial dos índios contra os negros, não podemos nos esquecer que o preconceito e discriminação contra os negros era generalizadíssimo em toda a Colônia durante os tempos escravistas, e na própria vila de Cairu ocorreu aquele episódio já citado acima, que chegou até a ser denunciado no Tribunal do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa, e que revela a força do sentimento anti-negro em nosso passado. Em 1762, nas festas realizadas em honra a São Benedito, o baiano Alexandre da Fonseca, morador na Maricoaba, "deu um tiro na bandeira do Santo, em opróbio, desprezo e irreverência, dizendo em altas vozes: "O que faz aqui este feiticeiro à vista de Deus e de todo mundo?"37 Apesar do desacato sacrílego, os Inquisidores não deram atenção à denúncia, quem sabe, coniventes com a intolerância do branco racista inconformado em ver alguém da cor dos escravos sendo alvo de tanto respeito e devoção.
Se por um lado não encontramos índios amasiados com pretas, há dois casos inversos: em Valença o crioulo forro Narciso tinha contratado se casar com a índia Domiciana, "vivendo publicamente como se já fossem casados", tendo inclusive o dito preto ameaçado seus vizinhos caso jurassem contra ela na Devassa de 1813. Em Rio de Contas era o preto Paulo Monteiro, casado e separado de sua primeira mulher, que vivia amancebado com a índia Inácia, solteira. Apesar do ditado popular defender que "o amor é cego", notamos que na escolha dos parceiros, mesmo a nível de concubinato, existem regras relativamente precisas, como os varões elegendo preferencialmente mulheres mais claras, ou de "raça menos infecta" – termo usado correntemente nos séculos anteriores. Encontramos apenas um branco amigado com uma índia: o viúvo Martinho dos Santos, que desde quando era casado, mantinha um romance no seu sítio com a índia Ana de tal, fato público e notório na vila de Boipeba.
Um detalhe importante sobressai quando analisamos o estado civil dos amancebados: enquanto são apenas sete os amantes solteiros, onze os casados e quatro os viúvos, no lado do "sexo frágil", são treze as índias concubinadas solteiras, quatro as que foram casadas e duas as viúvas. Aos homens interessava mais amigar-se com solteiras, de preferência donzelas virgens que tiraram da casa paterna, como foi o caso do índio Vitorino, morador do sítio Catu, em Boipeba, que "tirou uma moça parda da casa dos seus pais, e vive como se fossem casados há anos, com vários filhos." Assim sendo, a relação das índias amigadas que eram antes solteiras face aos concubinos solteiros é de treze para sete. Em contrapartida, são onze os casados que mantinham além da legítima, uma segunda mulher índia. As quatro índias casadas que são denunciadas como vivendo amancebadas encontravam-se separadas de seus legítimos maridos, geralmente vivendo cada qual em lugares distantes um do outro.
Certamente, várias das mulheres separadas do marido – conduta também condenada pelas Constituições do Arcebispado da Bahia, e susceptível de degredo para Angola – ausentaram-se do conúbio devido aos maus tratos de que eram alvo. SebastiãoTeles, índio de Santarém, é acusado de "dar má vida à sua mulher, que é muito honrada, por causa de Damásia, índia casada ausente do marido, com a qual trata ilicitamente." Antônio Dias, índio casado "dá má vida à sua mulher, com escândalo", por causa da índia Maria, viúva, com quem está concubinado." A mesma acusação é feita contra o índio José Gordiano, de Olivença, que prefere sua concubina parda Vitória, solteira, espancando a sua legítima consorte Josefa. "Dar má vida à mulher" deve ser entendido como causar preocupações, não cuidar do sustento, desprezar, tratar com violência: o índio Francisco Pinto, morador nas matas circunvizinhas de Santarém, é acusado de "dar pancadas em sua mulher índia". A violência do macho brasileiro, indubitavelmente, tem grande parte de sua inspiração e legitimação também nas tradições dos brasis: não há como negá-lo, posto que a documentação é rica de detalhes neste triste particular da cultura ameríndia.
Vários são os índios das aldeias da Comarca de Ilhéus que prometeram casar-se com donzelas – também há vários casos envolvendo pardos – promessas muitas vezes que eram feitas ou de palavra ou mesmo através de escrito ("casamento de compromisso"), passando então o casal a coabitar à espera da chegada do padre, ou quando ajuntassem dinheiro suficiente para a espórtula ou para a compra de roupa conveniente. Passa ano, entra ano, e nada do amante cumprir o prometido: o índio Inácio da Costa, de Valença, "prometeu casamento e deflorou a filha de Maria da Conceição, pardas", ambos eram solteiros e desimpedidos e na ocasião da denúncia já ostentavam dois rebentos de sua pecaminosa união. A mesma "promessa" de se casar fez o filho do Capitão-Mor de Olivença a Ana de Sena, viúva, vivendo ambos "de portas a dentro como se fossem casados". Neste outro caso de Poxim, foi um pardo forro, Severino, quem engabelou a índia Vitória, solteira, com quem "tratou para casar e não casou."
Conflitos conjugais entre os índios redundavam, como já vimos, quer em pancadaria, quer em separação dos cônjuges, via de regra, a mulher ficando na pior. A índia Florinda quando preterida por seu índio marido Reinaldo José, em benefício da amante Ana, não teve outra saída: voltou para a casa de seus pais em Santarém. Este outro episódio se passou na freguesia de São Boaventura do Poxim: no dia 9 de setembro de 1813, na povoação do Una, perante o Visitador comparece o lavrador Alexandre José da Costa, pardo, 20 anos, delatando que "Francisco José, casado, desprezou sua legítima mulher, Carolina, ambos índios, por cuja causa ela se retirou para os seus parentes." Mais adiante, outros denunciantes dão outra versão do mesmo imbróglio: teriam sido Eufrásida e seu marido Pedro Celestino, pais da índia Carolina, que "tomaram a mulher de Francisco José e correram com ele", desfazendo desta sorte o consórcio. Casamento, tanto entre os índios, quanto entre os civilizados, não é arranjo só de marido e mulher: casamento é negócio de família e "tomar a filha de volta" aparece nesta devassa mais de uma vez nesta região. Já em 1791, no Discurso proferido pelo já nosso conhecido Capitão Moniz Barreto perante ‘o povo indiano de Santarém" e em face ao vigário Pedro Gonçalves Ferreira, exortava-se que os brasilíndios "tivessem grande vigilância nas vossas famílias, promovendo o casamento das vossas filhas logo que chegarem à proporcionada idade, visto que a experiência tem mostrado que elas não sofrem maior demora." Somente uma pesquisa sistemática nos arquivos paroquiais dessas freguesias-aldeias, caso ainda existam, poderia fornecer-nos elementos para concluir se a idade do casamento e do primeiro parto entre as índias era mais precoce do que o observado nas demais etnias regionais. Na ótica de José Bonifácio de Andrade, a religião cristã significava uma proteção especial para a mulher indígena:
Entrando no seio da Igreja, terão de deixar os índios suas contínuas bebedices, a poligamia em que vivem e os divórcios voluntários, e daqui vem que as raparigas casadas são as que melhor e mais facilmente abraçam a nossa santa religião, porque assim seguram os maridos e se livram das rivais [...] (1823, p. 3)
Diversos índios são acusados de manterem relações incestuosas. O incesto era dos crimes mais gravemente condenados pelas Constituições do Arcebispado da Bahia: "Crime abominável a Deus e aos homens, chamam os Sagrados Cânones ao crime de incesto, por ele se tira a confiança que deve haver entre os parentes" (§969). Sobre o incesto e seu significado enquanto universal da cultura, rios de tinta já correram, documentando-se nas mais diversas sociedades humanas a grande variedade de formas classificatórias que este tabu assume. Mesmo castigando com maior severidade aos clérigos que praticassem o incesto (§969-970), também os leigos são rudemente penitenciados quando cometem qualquer tipo de aproximação carnal com seus familiares. (MOTT, 1982, p. 44-45)
Em Poxim é que foram denunciados casos mais "cabeludos" de incesto. O índio Miguel Gomes, filho de João Gomes, vivia concubinado incestuosamente com sua própria irmã Maria, da qual tivera dois filhos. Diz um dos cinco acusantes que o denunciado já viera excomungado das "vilas do Norte" pelo mesmo pecado, estando ainda sem absolvição. O próprio João Gomes, pai do faltoso, também era inculpado de ser "consentidor dessa desordem de seus filhos, morando com eles na mesma casa."
O consentidor também era punido pelas Constituições de D. Sebastião Monteiro da Vide (1707), rotulando-se tal pecado de "crime detestável e péssimo" (§1002), podendo implicar até em degredo dos incorrigíveis para a ilha de São Tomé. Também na povoação do Poxim havia outro caso de escândalo público: numa única e mesma choupana viviam dois casais de parentes concubinados: o índio Francisco do Carmo, aproveitando-se "estar sua esposa enferma em uma cama", amigou-se com sua comadre Tereza, índia viúva, "morando todos na mesma casa". Além deste pecado, era consentidor que seu filho Antônio vivesse amigado com Ana, vivendo todos sob o mesmo teto de palha. O incesto neste caso era menos grave, posto que envolvia apenas parentes rituais, compadres, sem laços consangüíneos, não obstante, é grande o descaramento do dono da casa, consentindo a amancebia do filho e preterindo a mulher entrevada em favor da dita comadre.
Em Olivença encontramos entre os índios dois pseudo-incestos curiosos, que envolvem também poligamia: Manuel da Penha era casado com Vicência, a qual trouxera para o conúbio Joana, filha de outra união precedente, a qual é acusada de ter-se tornado concubina de seu padastro. Caso semelhante ocorreu com João Francisco Aguiar, casado com Sebastiana Pedrosa, índios, o qual também se concubinara com sua enteada Ana, tendo com ela dois filhos, vivendo todos na mesma palhoça: dez vizinhos confirmam esta escandalosa irregularidade. Somente uma pesquisa nos livros de casamento e batizado destas freguesias poderiam esclarecer estas duas curiosas uniões entre padastros e suas enteadas: qual a idade das esposas e de suas filhas ao se casarem. Pergunto aos etnólogos meus leitores: há exemplos na literatura ameríndia de uniões toleradas ou preferenciais entre esses parentes afins? Na vila do Rio de Contas outro incesto público foi denunciado como causador escândalo e merecedor de castigo: o índio Miguel Rafael, viúvo, vivia concubinado com a parda Ana Maria, mulher de seu filho Manuel Oliveira, "por cuja causa sua nora concubina deixou a companhia de seu marido e vive com o sogro". Tanto neste, como nos dois casos anteriores podemos observar a mesma tendência gerontocrática dominante no sistema sociocultural dos Tupinambá, posto que os amantes, padastros e sogros, provavelmente ostentavam o dobro da idade de suas concubinas, filhas de criação ou noras. (FERNANDES, 1963, p. 153)
Encontramos apenas uma denúncia de bigamia formal em toda a comarca de Ilhéus: o índio João de tal, de Santarém, "sendo ainda viva sua mulher, se casou com Damásia dos Santos", ausentando-se para Jequié. Bigamia era não apenas pecado, mas perigoso crime penitenciado e perseguido pela Inquisição, susceptível de prisão, encarceramento nas prisões do Santo Ofício de Lisboa, açoites, tormentos, degredo para as galés ou para o território africano. A bigamia entre os brancos era muito mais freqüente, posto que para esse grupo, privilegiado social e economicamente, a plenitude da cidadania e do prestígio só se obtinha com o estado de casado, excluindo-se os clérigos, obviamente. Para as camadas mais pobres da sociedade, mais fácil era amigar-se com uma segunda mulher, do que tentar casar-se uma segunda vez alhures ou utilizando-se de artifícios escusos e caros, como pagar a testemunhas falsas que jurassem ser celibatário o pretendente ao matrimônio. No caso dos índios da vizinha comarca de Porto Seguro, havia, inclusive, uma Portaria exarada pelo Bispo do Rio de Janeiro (1761), autorizando aos vigários "receberem em matrimônio aos nubentes sem provisão ou preparatório", privilégio que certamente foi utilizado pelos interessados para ocultar prévias uniões sacramentais que se descobertas, anulariam o enlace matrimonial posterior.38
Obviamente, não era privilégio dos índios os deslizes na moralidade sexual: toda a Comarca, a Bahia inteira, o Brasil-Colônia in totum viviam muito mais luxuriosamente do que se costuma imaginar hoje em dia.39 Gilberto Freyre tem razão neste particular e o material secreto da Inquisição por nós pesquisado não deixa dúvida que outrora nossa sociedade era tão ou mais permissiva sexualmente falando, do que a contemporâne, mesmo pós-revolução sexual. O próprio clero sul-baiano, uma das principais forças de repressão na sociedade colonial, era quem dava o pior exemplo. Como esperar fervor religioso se o próprio vigário de Santarém, o valente e fogoso Padre Malta, era acusado de ter asseverado "que não há inferno e se alguma pessoa vai para o inferno, tem só três dias de hóspede!" (MOTT, 1982, p.50). Como esperar castidade e continência dos fiéis, se a maioria dos clérigos vivia em concubinato "público, notório e escandaloso, tendo mulher teúda e manteúda portas a dentro?" O mau exemplo e displicência dos pastores, a convivência com sistemas morais diferentes, e nalguns aspectos mais permissivos, e a própria situação colonial em que os brancos donos do poder usavam e abusavam impunemente dos serviços sexuais das raças dominadas, tudo isto redundou certamente em grande permissividade sexual entre os índios, sobretudo quando órfãos e livres da supervisão dos impolutos jesuítas. Este documento de 1763, encontrado no Caderno do Promotor nº 126 da Inquisição em Lisboa, na Torre do Tombo, dá-nos a dimensão de quão empírico e real era o ditado popular dos conquistadores, "abaixo do Equador não há pecado": trata-se de uma denúncia contra o Mestre de Campo da Conquista do gentio Nogoió, nesta mesma capitania meridional, acusado de defender publicamente que "se morresse só com pecados do 6º Mandamento, infalivelmente, se havia de salvar, por não ser a fornicação pecado". Razão prática de tal heresia: "Isto dizia por viver entrando no mato e viver sensual e luxuriosamente com os gentios."40
Irreligiosidade e feitiçaria
Com base nas denúncias registradas no livro de Devassas de 1813, nada distingue os índios dos demais denunciados na comarca de Ilhéus quanto à prática do catolicismo. Ao todo, 204 pessoas foram acusadas de irreligiosidade, quer por resvalarem na observância dos preceitos da Igreja, quer por praticarem rituais interditos. Os índios representam menos de 10% destes "irreligiosos", distribuídos nos seguintes desvios:
Feitiçaria.................................... 9
Não ouve missa.......................... 6
Não se confessa.......................... 3
Total ....................................... 18
Dez anos antes desta Devassa, em 1803, afirmava o Ouvidor Maciel: "Os índios desta Comarca tão civilizados estão, que se acham inteiramente livres das superstições do paganismo, e reduzidos ao grêmio da Igreja: têm cada uma das vilas um pároco que lhes administra o pasto espiritual". (177)
A Devassa revela-nos, entretanto, que a cristianização dos ameríndios não era assim tão absoluta. Em Olivença, por exemplo, apesar dos mais de dois séculos da evangelização jesuítica e da presença de três sacerdotes na passagem do século XVIII para o seguinte, é contraditoriamente o lugar onde os índios são mais acusados, pelos próprios índios, de pouca observância cristã. Os tupiniqum José Pinto, João Soares e João da Veiga não ouviam nunca a Santa Missa nos domingos e dias de obrigação, o mesmo acontecendo com José Ribeiro, do Poxim. Também na decana das aldeias sulinas, o índio Inácio Germano era apontado como culpado de há três domingos não se confessar, o mesmo ocorrendo com Antônio Manuel e Antônio Gomes de Barcelos. A velha Felícia, além de não ir à Missa, é acusada de benzer doentes, acusação que também recai sobre o barcelense José Gomes, o qual "benze doentes com rezas". Mais grave que benzer, seis índios são acusados de praticar feitiçarias. Quem sabe não seriam tais feiticeiros os continuadores dos 800 pajés convertidos miraculosamente pelo Padre Nóbrega nos inícios da evangelização da Capitania? (VASCONCELOS, 1663, p. 203). Destes denunciados, a metade é residente em Olivença: João Reis Marques, apesar de altissonante sobrenome, tem fama de feiticeiro entre os olivençanos, a mesma pecha inculpando Eugênia e Manoel Xavier, este último acusado de ter dito a seus vizinhos "que era mesmo feiticeiro". Maria Lutércia, índia de Poxim, também era tida como feiticeira. Aliás, são apenas duas, as mulheres, para cinco xamãs masculinos. Em Barcelos, o índio José de Sousa é acusado de ter curado com feitiços a Eleutério, filho de Benedito Gomes, enquanto que o próprio irmão da vítima acusa-o de ter enfeitiçado o moço "que ia escapando de matar". O índio Inácio Gonçalves de Santarém, tinha curriculum mais terrível: "infamado de fazer feitiçarias e ter matado pessoas com feitiços". Aliás, não só feitiços mortíferos eram conhecidos pela tapuiada regional, mas também os defensivos, alguns incorporando elementos do sincretismo luso-católico, como fica documentado para a aldeia da Almada, onde por desmazelo e irreligião do pároco, como vimos acima, haviam furtado os sangüíneos e corporais e parte da pedra d’ara, ingredientes indispensáveis usados desde a Idade Média em Portugal e em todo nosso período Colonial, para rechear as famigeradas "bolsas de mandinga", "patuás" e relicários que todo nosso povo fazia questão de carregar escondido no pescoço ou na roupa, a fim de garantir a proteção celestial, ou, quando feito o "pacto", garantir o patrocínio de Satanás, costume que levou à barra da Inquisição inúmeros brasileiros, sobretudo nordestinos, inclusive os citados quatro negros de Jacobina.41 Para o sul da Bahia, dispomos de uma denúncia contra Roberto Araújo, morador em São Fidélis, filho bastardo de Paulo de Araújo, que em 1763 defendia a proposição herética de que "o diabo valia mais que Deus, pois o Demo dava melhor tempo que Deus..."42 Curioso notar que na Devassa de 1813, são em número aproximado os brancos, pretos mestiços denunciados como praticantes de feitiçarias. Assim, certos sortilégios cabalísticos, como "fazer quibando para descobrir coisas encobertas", ou "fazer oração de quibando", ou "fazer orações supersticiosas" e ainda "usar de pós para amansar o gênio das criaturas", eram praticados exclusivamente por não-índios, sejam brancos que adotaram o "quibando"angolano, sejam negros que aprenderam as orações supersticiosas lusitanas, num recíproco sincretismo cultural que interligava mais a branco e negros, e seus descendentes mestiços, e em menor escala a tapuiada, provavelmente por conservarem mais fielmente as tradições cabalísticas de seus antepassados.
Os diretores de índios
O clero, sobretudo o secular, é o grande acusado pelo atraso, ignorância, pobreza e gentilidade pertinaz dos índios aldeados. Logo a seguir aos sacerdotes, muitas vezes mancomunados com estes, os Diretores são generalizadamente apontados como responsáveis pelos mesmos males.
Os índios são acusados de inconstantes, e não o são os portugueses? São argüidos de incontinentes e de costumes dissolutos, mas que lição têm eles de moral? E que perfeitas idéias de religião e que exemplos de virtudes encontram no pároco e diretor, que à face deles mesmos, corrompiam as suas mulheres e filhas, tendo em suas mesmas casas o penhor da sua impudicícia e do escândalo? Que amizades criminosas mantidas entre o pároco e o diretor? Ambos, à porfia, querem tirar da miséria e simplicidade daqueles povos o partido que possam autorizar seus caprichos e seus crimes." (LISBOA, 1799, p. 110).
"Que lástima não me causou o espetáculo daqueles infelizes índios de Olivença [...] o mesmo diretor lhes fornecia aguardente para se embriagarem, favorecendo aos seus vícios para se entorpecerem." (LISBOA, 1799, p. 109).
Parte dos descalabros causados pelos Diretores era devido a pequenez de seus emolumentos, obrigando-os a acumular diferentes funções públicas a fim de ampliarem seus ganhos.43 Em Barcelos, em 1813, Brás Diniz de Vilas Boas, além de Diretor dos índios, exercia os cargos de Escrivão da Câmara, Juiz dos órfãos e Tabelião.44 Eis a sensata opinião do Ouvidor da Comarca de Ilhéus, Dr. Domingos Ferreira Maciel, em 1803:
Se os Diretores, que são os mesmos escrivães das Vilas, fossem pessoas mais hábeis, poderia ter-se aumentado mais a agricultura entre os índios, porém acontece que esses ofícios de escrivães diretores pelo seu diminuto rendimento só são procurados por pessoas menos hábeis, e que não podem alcançar outras ocupações mais úteis. A falta que acho de pessoas capazes de cumprir como devem as obrigações dos ditos ofícios, me tiram toda a escolha, porque aqueles que me parecem hábeis não os querem servir, e aqueles que os querem, não me satifazem. (p. 178)
Em Santarém, o Capitão Moniz Barreto assim descreve a situação em que encontrou o Diretor local:
Os índios desta aldeia têm bons costumes, e são regidos por um escrivão diretor, sendo porém o atual que ali achei, indigno deste exercício, pela sua ignorância, como de comum são todos os que têm sido e são nomeados, ainda deixando de parte o crasso erro com que se uniram estas duas serventias, para que um diretor que se deve entender como na verdade é, um agente para educar e advertir os índios, protetor e pai para os defender, sendo igualmente escrivão, sem aquele ordenado que deve ser correspondente àquele cargo, se vê quase na obrigação de promover a desordem, para que pela multiplicidade de muitas vezes de insignificantes delitos, possa tirar dos processos judiciais emolumentos que subsista. (1794, p. 4)
Barcelos não oferecia melhor situação administrativa:
Esta vila está em grande decadência, para o que tudo concorre a inabilidade, negligência e avareza dos diretores inábeis e mandriões, que por não quererem trabalhar, procuram aquela ocupação, servindo-se dos índios como escravos e sustentando-se do suor dos mesmos, pelo que dignos de perpétua abolição. (VILHENA, 1798, p. 498)
Alguns desses oficiais, associados a párocos materialistas, são acusados de destruidores da pacificação das novas tribos, como aconteceu em Rio das Contas em 1799:
Foi tal a desordem do pároco com o Diretor, que a Fazenda Real somente tirou prejuízo das somas despendidas na tentativa de estabelecer uma vila de índios nos funis do Rio de Contas [...] Que resultados, que efeitos eram de esperar vantajosos à execução dos sábios projetos do Governador em uma grande distância, tendo-se dado por Diretor da nova aldeia um curiboca da família de João Gonçalves, Capitão-Mor das entradas dos sertões da Ressaca? (Ouvidor LISBOA, 1799, p. 112)
No caso de São Fidélis, a distância residencial do Diretor era apontada pelo Capitão Moniz Barreto como prejudicial à sua eficaz atuação: "Esses índios são regidos por um administrador regente que como reside o mais do tempo na povoação do Una, distante da aldeia de São Fidélis perto de duas léguas, de nada serve para educar os pequenos índios." (1794, p. 11) Segundo este mesmo arguto informante, "todos os Diretores nomeados são de ordinário pessoas indigentes e consentem por isso na prática dos vícios. Este é o meio de terem maior número de índios trabalhadores de vontade própria, sem estipêndio nem jornal algum." (Plano sobre a Civilização dos Índios, 1788). Em troca da impunidade dos desvios, os índios trabalhavam na roça do funcionário del Rey.
Uma das obrigações dos Diretores era ensinar aos índios a escrita e leitura, tarefa que apesar de desempenharem mal, alguns apontavam como justificativa o fato "dos meninos faltarem quase sempre à escola porque seus pais quando vão para o trabalho, não os deixam nas vilas e os conduzem consigo com a mais família para qualquer parte que vão." (Ouvidor MACIEL, 1804, p. 1781) O ideal, segundo o prognóstico do Dr. Baltasar Silva Lisboa, era que o Diretor-Escrivão "seja homem de probidade, casado e cuja mulher se não deve desdenhar de ensinar às índias a coser e aos mais misteres de uma casa." (1799, p. 1101) Não encontramos nenhum indício que informasse ser casado algum dos Diretores das aldeias desta Comarca.
Malgrado o analfabetismo generalizado na região, numa amostra de 84 índios ouvidos na Devassa de 1813, encontramos dezesseis (19%) que sabiam quando menos assinar seus nomes: cinco moravam em Santarém, cinco em Olivença, quatro em Barcelos e dois no Poxim. Nestas mesmas vilas, 40% dos "civilizados" arrolados como denunciantes na mesma inquirição sabiam assinar seus nomes, o que reforça a ilação da menor escolarização dos ameríndios. A instrução, no entretanto, parecia ser um grande sonho de alguns aldeados, cujos avós tinham sido catequisados nos bancos escolares dos proscritos jesuítas:
Os meninos não sabem ler, menos a doutrina. As mulheres e homens da mesma forma ignoram os princípios da moral e de religião, sendo aliás hábeis para as aplicações das ciências e das artes, os quais muito me manifestaram os seus desejos, expondo-me com que dor viam os seus sem alguma instrução. (Ouvidor LISBOA, 1799, p. 109)
Esse mesmo informante narrava, em 1802, que
os índios de Olivença são mansos e de bom entendimento não estando embriagados. Desejam a cultura do espírito para seus filhos, e muitas vezes me rogaram que lhes desse um Diretor que os ensinasse. E o que mais me enterneceu, provocando até as lágrimas, foi ver com que alegria saudaram os nossos Augustos Soberanos quando lhes propus para irem dois meninos aprenderem no Reino as ciências naturais e se obrigavam a dar no porto de embarque, 20 dúzias de pranxões de jacarandá para as despesas da sustentação de seus filhos, e passaram imediatamente a irem tirar os mesmos jacarandás, que lhe embargou um mau cidadão, déspota daqueles territórios, Manoel da Silva Ferreira, e o Exmo. Governador recebendo em ar de riso as demonstrações vivas que lhe expus daqueles desgraçados índios, fez torná-los ao seu antigo estado. (p. 10)
Declínio de um povo
Nosso principal condutor na etno-história desses índios, o tantas vezes já citado Ouvidor Baltasar da Silva Lisboa, ponderava com inteligência, em 1799:
Os historiadores têm pintado os índios de preguiçosos, incapazes da civilização e que como animais brutos, se devessem reputar. Os portugueses que com eles vivem, longe de os instruírem e civilizarem, foram os que lhes introduziram muitos vícios, que não tinham. (p. 116)
Os dois primeiros séculos de contato, como vimos em páginas anteriores, foram marcados por cruel genocídio: aldeias inteiras, às dezenas, foram exterminadas na sangrenta "Guerra dos Ilhéus". No mesmo ano que em Lisboa se fundava a Casa Pia destinada ao tratamento dos enfermos pobres (1780), os civilizados praticavam na recém fundada aldeia de Almada, ignóbil guerra bacteriológica contra os indefesos silvícolas:
O Sargento Mor Inácio de Azevedo Peixoto embaraçou para sempre a confiança dos índios, pois há 20 anos enchendo várias cabaças com trapos que embrulhados envolviam cascas de bexiguentos (varíola) e por uma horrível e imperdoável maldade, levou o espanto e a morte e o estrago aos desgraçados gentios, introduzindo nas suas infelizes habitações a peste das bexigas, que tanto dano lhes causaram, que jamais ousaram aparecer nas vizinhanças dos Ilhéus ou de Almada, chamando aqueles infelizes povos, ainda que baldamente, pelo socorro da humanidade para que lhes mitigasse seus males e opressão. (Ouvidor LISBOA, 1799, p. 110)
Na vizinha Comarca de Porto Seguro, onde havia ainda nos fins do século XVIII muito índio em situação tribal, repetia-se o mesmo cruel genocídio, tendo como corifeu o terrível Capitão Mor das Conquistas, João Gonçalves, senhor absoluto do imenso território situado entre os rios Gavião, Batalha, Arraial, Xoxá, Salinas e Aruba, na região denominada Salinas e Ressacas, "árbitro de vida e de morte dos índios, fazendo-lhes guerra ainda aos domésticos e mansos; com imensas tiranias. Muitos foram mortos e outros castigados com açoites e palmatoadas." (Ouvidor LISBOA, 1799, p. 112).
Mesmo em Olivença, a decana das missões indígenas da região, a doença rondava inexorável as choças de seus infelizes habitantes:
Aí todos vivem gemendo debaixo do fatal golpe das sezões e febres renitentes, produzidas pelos charcos e pantanosos lugares, levados às sepulturas sem haver um só que compassivo embarace o golpe dos sucessivos males com que ainda os que escapam na palidez do rosto, inchado o ventre, enchem de espanto e susto aos que de novo entram naquela povoação, surdos oradores, que persuadem e que fujam dos danos de que eles têm sido vítimas. (LISBOA, 1799, p. 111)
Além das mortandades e perseguições aos índios não apenas aos gentios brabos, mas inclusive aos mansos e domésticos – um dos fatores que mais sensibilizaram os contemporâneos denunciantes da prepotência e crueldade dos civilizados, era o efeito catastrófico causado pelo aguardente nas populações nativas.
Ao tratar desta questão, começa o Capitão Moniz Barreto informando que os índios desta área conheciam mais de 80 diferentes tipos de "vinhos" feitos com frutas silvestres (Plano sobre a Civilização dos Índios do Brasil, 1788), e em 1802, o Ouvidor Lisboa resumia com uma frase lapidar o significado da cachaça para os silvícolas:
A aguardente é a alegria e a ruína dos índios". (p. 11) Vários contemporâneos já citados, repetiram a mesma observação: quando sóbrios, os índios são calmos, morigerados, trabalhadores. Em compensação, "a quem aguardente subministra-lhes, não duvidam em entregar assim à mulher como às suas filhas. (Ouvidor LISBOA, 1802, p. 20)
Bêbados, os nativos ficavam violentos, ciumentos, agressivos, ou então, completamente abestalhados no sono típico do entorpecimento alcoólico.
Não era privilégio dos índios o consumo da aguardente. O Príncipe Maximiliano tivera problemas com seus guias cachaceiros: "Não havia conveniência em permanecer em Ilhéus porque os brasileiros que encontrara para me acompanharem na travessia da floresta, eram todos grandes bebedores de aguardente e deram ocasião a várias cenas desagradáveis." (1816, p. 333). O mesmo nobre viajeiro informa-nos a respeito das diferentes qualidades de bebidas encontradiças na região:
No rio Taípe, encontra-se um engenho de açúcar e várias engenhocas de cana, onde se fabrica aguardente. A qualidade mais comum no Brasil é a chamada aguardente de cana; a que é um pouco mais bem destilada se chama aguardente de mel, e a melhor de todas, vinda da Bahia, cachaça. Trazem da Europa várias espécies de bebidas fortes, como por exemplo, a aguardente do Reino, que vem de Portugal, e a genebra da Holanda, o rum etc. (p. 331)
Só a freguesia de Maraú, em 1802, produzia 3.289 canadas de cachaça, produção certamente que encontrava nos índios grandes consumidores; de Barcelos se exportava 1.600 canadas45 de pinga todos os anos (LISBOA, 1802, p. 14). E conforme vimos na parte consagrada à economia das aldeias, em algumas vilas indígenas constava o plantio de cana entre os diversos vegetais cultivados pelos brasis. Se chegavam eles próprios a destilar o melado, infelizmente não há documentação que esclareça, mas o que é certamente provável, seria o uso da garapa fermentada, à moda do tradicional cauim, que apesar de mais fraco que a cachaça, também embebeda quando tomado em boa quantidade.
Os brancos, conhecedores da fascinação exercida pela pinga, usaram-na fartamente como forma de exploração dos pobres gentios: já citamos o caso de um Diretor de Olivença, que fornecia aguardente a seus dirigidos "para se embriagarem, favorecendo aos seus vícios para se entorpecerem." Tão cobiçado néctar era vendido a preços extorsivos: "Os índios suportam todos os enganos que os portugueses lhes fazem no ajustamento das contas, pagando-lhes com fazendas e aguardente por tão extraordinários preços que o miserável índio sempre lhe fica devedor," (LISBOA, 1799, p. 115). Os lucros do artesanato e demais atividades econômicas dos olivençanos "vão entregar imediatamente nas tabernas, estabelecidas no caminho e dentro mesmo da vila" (1802, p. 10). Mesmo os puritanos colonos suíços, por volta de 1816, não titubeavam em usar da cachaça como arma para amansar os últimos e legítimos proprietários das terras onde se instalava a novel colônia de imigrantes europeus:
O velho índio Capitão Manoel, botocudo de Almada, aprecia aguardente acima de tudo. A chegada do Senhor Weyl foi para ele o acontecimento mais feliz que podia desejar. Nunca, na casa desse homem generoso, deixou de soar a hora em que Ihe distribuíam a divina bebida. Tampouco o Capitão Manoel conhece em Almada tempos tão felizes [...]. (Príncipe MAXIMILIANO, 1816, p. 331)
Mais uma vez, é a sensibilidade do Ouvidor Lisboa quem diagnostica a trágica situação dos últimos descendentes dos valorosos Tupiniquim: "Os índios de Barcelos têm chegado à última degradação da civilização: o aguardente, vício comum entre eles, os tem levado à total miséria. A aguardente é a alegria e a ruína dos índios de Olivença [...]". (1802, p. 15-20)
Para o teórico José Bonifácio de Andrade, a cachaça configurava-se como um sério problema nacional para a civilização dos brasis, e no § 23 de seus "Apontamentos", datados de 1823, determinava que os missionários não permitissem a introdução e uso de aguardente nas aldeias, interditando inclusive a abertura de tavernas em suas imediações. Cachaça na aldeia, só como remédio para os enfermos ou para os que "se empregavam em trabalhos árduos e penosos."
A revolta dos índios
Não foi apenas nos primeiros anos da conquista que os silvícolas reagiram à invasão civilizatória. Verdade que nos dois primeiros séculos, a reação indígena foi mais sangrenta, causando centenas de mortes aos invasores, destruindo e queimando suas propriedades e engenhos, desfalcando seus rebanhos. Contudo, durante todo os Oitocentos, a ameaça de certas tribos continuava a ser tenebroso pesadelo para os colonizadores. Os Pataxó eram apontados como o inimigo número um da comarca de Ilhéus: em 1756, o vigário de São Boaventura do Poxim informava que
à duas léguas acima da barra do Rio Grande, há sítios admiráveis para moradia, as terras são excelentes para toda a lavoura, tudo coberto de madeira de lei, tudo porém infestado e possuído das duas nações Pataxó e Anaxó, que corridos do poder das Minas, se vieram acoitar nesta grota de mato que corre à beira mar, onde não se tem forças, nem há quem os persiga, antes, vitoriosos, passam por estes bosques como dentro de muralhas, e detrás de cada pé de pau se teme um tapuia, porque donde se menos cuida, vem a flecha. (Pe. GRAMACHO, p. 186)
No ano seguinte, o Vigário de Ilhéus completava a informação: "Da aldeia de Nossa Senhora da Escada dos reverendos padres da Companhia, e da aldeia dos Socós, caminhando para Una, não há morador por ser uma parte deserta e costumar andar também por ela o gentio chamado Pataxó." (Pe. ARAÚJO, 1757, p. 184). Em 1788, o Capitão Moniz Barreto descrevia os Pataxó como sendo o suprasumo da selvageria: "O gentio Pataxó é uma raça em extremo feroz, carnívora e tragadora de carne humana, entregue a feitiçarias, multidões de mulheres e outros semelhantes erros da gentilidade." (Plano sobre a Civilização dos Índios). Dez anos depois, o Professor de latim e grego, Luís dos Santos Vilhena, ensinava que os mesmos Pataxó continuavam a "infestar" a região, impedindo o livre trânsito de viandantes e boiadeiros para o interior das minas da Ressaca:
A estrada que sai da vila do Camamu, quase no centro da comarca conduz para os sertões da Ressaca, Gavião e rio Pardo, donde por ela descem gados para o consumo da comarca vizinha e os bois necessários para os arrastos das madeiras de Sua Majestade. Carece ser freqüentada e cultivada para os condutores transitarem com segurança, livres dos assaltos do gentio bravo, principalmente Cataxó (sic), que com facilidade poderiam expulsar-se, se no Ribeirão da Areias se estabelecessem os índios Mongoió, que me consta terem pedido se lhes crie naquele sítio uma vila com as circunstâncias das demais. Como me consta que se estes índios ali estabelecidos forem subsidiados com munições, armas e ferramentas, distribuídas com prudência e economia, ficando aquela povoação no centro da estrada, não só afugentariam os Mongoió todos os gentios que por ali vizinhassem, como agricultariam grande cópia de algodão. (p. 501)
Um ano depois desta informação de Vilhena, é Baltasar da Silva Lisboa quem dá mais detalhes sobre esta etnia indomável, que mais de uma vez obrigou os civilizados a mudarem seus planos de ocupação territorial:
De Tejuípe até Ilhéus, o terreno ainda hoje está inculto e despovoado, que apenas se contam seis fogos, ficando da mesma sorte inculto o terreno que vai da vila de Ilhéus até Una, que são 9 léguas, onde dando o gentio Pataxó no sítio chamado Ornanas em 1730, acoçados e perseguidos das Bandeiras que contra eles se dispuseram, fugindo da ocasião a se estabelecerem naquele lugar várias pessoas, donde saíram ricos e poderosos com a cultura da mandioca, devastando matas preciosas em distância de 4 léguas, pelas margens do rio, sendo o terreno fertilíssimo. Com os vários assaltos do gentio, atemorizados os moradores, puseram em fugida, de sorte que hoje ali só habitam alguns índios de Olivença." (p.108).
Três anos depois, o mesmo Ouvidor completa a informação: "Os contínuos ataques do gentio Pataxó, que 40 anos persistiu a infestar a barra do rio Poxim, obrigaram aos povoadores da freguesia de São Boaventura a refugiar-se no Patipe. (p. 11)
Como se vê, de 1730 em diante, até nossos dias, os Pataxó continuam indômitos na sua triste sina, de encontrarem territórios onde possam viver em paz, sempre ameaçados pela expansão frenética e deletéria da "civilização". Maiores informações sobre este grupo podem ser obtidas nas teses de Mestrado das professoras Maria do Rosário Carvalho e Maria Hilda Paraíso, da Universidade Federal da Bahia, citadas na bibliografia.
Além das continuadas correrias capitaneadas pelos Pataxó, outra movimentação indígena marcou a história regional, episódio que temos a alegria de incluir pela primeira vez na historiografia baiana: trata-se da "Sublevação de Quiepe", episódio documentado pelo Capitão Moniz Barreto em manuscrito inédito existente na Biblioteca Nacional (RJ), intitulado Notícia da viagem que fez o Capitão Domingos Alves Branco Moniz Barreto entre os índios sublevados nas vilas e aldeias da Comarca de Ilhéus e Norte da Capitania da Bahia.
Em resumo, eis o conteúdo de tal Notícia: começa o texto enfatizando a importância de se dar maior atenção à civilização dos índios, "acostumando-os a agricultar as terras para depois passar a amansar aos que se acham embrenhados seguindo os erros do paganismo." Segundo o Capitão Moniz Barreto, isto redundaria que, em 20 anos, o preço dos escravos importados d’África rebaixaria, pela inserção de mão-de-obra nativa nas lavouras, "desanimando o violento comércio que se faz contra a lei da natureza". Constata que os índios vivem descontentes e são atualmente duas vezes menos numerosos do que quando se iniciou a conquista, "pelas muitas violências, injustiças e cativeiros com eles praticados." Aí narra como se deu a Sublevação de Quiepe: pelo ano de 1784, 56 casais de índios da Aldeia de Jiquiriçá dirigiram-se em grupo, em direção à Comarca de Ilhéus, conseguindo a adesão em Santarém de mais 35 casais e 4 índios solteiros, e na Aldeia de São Fidélis, de mais 22 casais e 3 celibatários, de modo que todos juntos instalam-se na ilha de Quiepe, fronteira à barra de Camamu, vivendo nesta localidade, "sublevados", por 8 anos seguidos. A idéia e emulação desta transumância partira dos Tupinãe da aldeia de Nossa Senhora dos Prazeres de Jequiriçá, distante 18 léguas de Salvador e que em 1757 possuía 63 choupanas com 173 brasis acima de 13 anos de idade. Na época da migração para Quiepe, sua população era de 200 almas, apontados como os piores gentios da Capitania: "revoltosos, dados à embriaguês e assassinos, cujos vícios lhes provém da falta de educação por não terem há muitos anos, Diretor que os advirta". Foram os jequiriçanos que "reduziram os índios das vizinhas aldeias à fuga de suas povoações", pois como se sabe, nenhum aldeado podia ausentar-se de seu local de moradia sem autorização expressa do Diretor ou Capitão-Mor respectivo. Se contarmos – lançando mão da estimativa de Spix & Martius, em média quatro filhos para cada casal destes índios, teriam se reunido em Quiepe o vultuoso número de mais ou menos 800 índios, certamente, o maior conglomerado indígena da região nos últimos anos do século XVIII.
Entreguemos a descrição deste episódio ao próprio autor da informação:
Na ilha de Quiepe os índios não levantaram povoação alguma à borda do mar, mas sim palhoças concentradas pelo espesso e frondoso mato que se vê naquela ilha, saindo desse coito em tempos mais serenos a fazer muitos insultos aos moradores da terra firme, sem quererem de modo algum cederem às persuasões de seus oficiais maiores e respectivos ministros para voltarem às suas aldeias, nem mesmo serem obrigados por força de castigo, porque o mais reconcentrado do mato lhes servia de muito forte abrigo. As funestas conseqüências que podiam resultar para o futuro, pelo grande número de índios que se achavam dispersos das suas povoações, esquecidos dos dogmas da religião, vivendo já como brutos à lei da natureza, diferindo bem pouco dos bárbaros gentios,
fez com que o zeloso Capitão se dispusesse a recambiar os revoltosos às suas aldeias originais. Chegando na região, este militar encontrou grande descontentamento entre os proprietários, que já haviam tentado organizar "uma espécie de junta particular onde alguns vogais deram razões que não me pareceram prudentes, de fazer arder os espessos matos daquela ilha, prenhe de imensos índios". Descartou tão sinistra idéia não apenas para evitar a mortandade dos aborígenes mas também por considerá-la "muito danosa à navegação", pois iria destruir árvores antigas que serviam de referência para os navegantes daqueles cursos. Após debaterem os prós e contras, aceitaram os regionais sua proposta: "só com considerada brandura" seria possível acabar com a sublevação. Dirigiu-se então o astuto Capitão em direção à ilha de Quiepe, fazendo-se acompanhar apenas por quatro soldados e um oficial inferior, não divulgando a ninguém o motivo de seu intento, propalando, antes pelo contrário, "que ia fazer algumas observações sobre a história natural daquela rica comarca."
Partiu a 2 de setembro de 1791 para o Morro de São Paulo, onde o Comandante Dionísio Lourenço Marques, "oficial que pela sua honra" mereceu a confiança de conhecer o fim desta sua viagem, recebendo aí mais quatro soldados, que todos juntos tomaram o caminho de Cairu, onde ficou alguns dias examinando ervas medicinais, "para evitar toda desconfiança". Passados alguns dias embarcou para o Porto de Jequié, indo a pé para a povoação de Santarém, descendo a seguir para o Porto do Rio Grande, embarcando daí para a Barra do rio Serinhaém, onde esperando a moção favorável, desceu para a ilha de Quiepe, "com grande risco e perigo de vida", dada a violência da correnteza que separava a ilha da terra firme.
Informa o militar que os índios ao atravessarem em suas canoas este turbulento canal, apesar de exímios nadadores e navegadores, sempre traziam amarradas à cintura, uma porção de cabaças, para boiarem no caso de sofrerem um naufrágio. Chegando na ilha, o Capitão e seus nove acompanhantes armaram uma palhoça com o auxílio dos índios remadores que os acompanhavam, fazendo a todos crer que seu fim era apenas examinar as ervas medicinais do local. Avisado do perigo de ser flechado pelos índios do mato, mandou-lhes recado pelos seus remadores que desejava ser visitado pelos silvícolas e que lhes trouxera presentes e roupas. No dia seguinte, enquanto herborizava próximo à praia, chegou um índio com uma índia pequena: "com toda brandura os fui abraçar", e após conversarem longamente sobre plantas, cipós, folhas e raízes, o índio reclamou asperamente das violências dos brancos. Aí o Capitão Moniz Barreto presenteou-os com camisas, miçangas, brincos, rosários e estampas de santos, dando ao índio um gorro vermelho que muito apreciou, "acarinhando a indiazinha e beijando-a muitas vezes."
No dia seguinte, dezesseis índios e dez índias chegaram à praia, trazendo balaios com frutas, peixes frescos, recebendo cada qual um donativo em contrapartida. "Fazendo-me desentendido inteiramente dos crimes que tinham cometido em desamparar sem ordem superior suas aldeias", conseguiu o astuto Capitão fazer-se convidar a ir onde se arranchavam. Diz que teve de caminhar muito, por caminhos tão íngremes que não teria sido possível ir a cavalo. Ao aproximar-se da aldeia, "começaram a bradar ao seu modo festivo com vivas e me receberam com alegria e me conduziram para uma grande palhoça onde me ofereceram a comer alguns cereais. Após conversar sobre ervas, iniciou seu discurso, incitando-os a voltar para as aldeias, retirando-se daquele quase deserto" e que não tivessem medo dos castigos, que ele os "apadrinharia". Informa Moniz Barreto que os mais resistentes a seus argumentos eram os índios de Jequíriçá, que repetiam as mesmas reclamações contra as grandes tiranias que contra eles se praticava antes da fuga.
Na Ilha encontrou o Militar "grandes roçados de legumes e cereais", infelizmente, sem prestar mais informações sobre outros aspectos culturais desta insólita diáspora ameríndia. Para dobrar-lhes os ânimos, distribuiu fartos presentes "de pequeno custo", prometendo-lhes maiores dons ao retornarem às suas aldeias e a garantia de Sua Majestade que não seriam castigados.
Surpreende-nos a rapidez e eficácia com que este Capitão conseguiu convencer quase mil indígenas a abandonar suas lavouras, aldeia e oito anos de liberdade, tudo isso em apenas dois dias de conversa. Providenciadas as canoas, foram embarcados 113 casais e 7 índios solteiros para suas respectivas aldeias. Sucedeu contudo que os índios de Jequiriçá "tornaram a suscitar uma espécie de nova rebelião, pondo-me de má fé entre os índios, o que me pôs em perigo de perder a vida, se com novos estratagemas eu os não assegurara do perdão e de uma nova reforma para o seu melhoramento e interesses, com o que então embarcaram."
Conclui Moniz Barreto sua notícia: "Dando graças a Deus por ter conseguido em tão breve tempo o reduzir homens quase sublevados, sem fazer sangue, mandei queimar todas as palhoças". Para solidificar a redução dos sublevados, percorreu cada uma das aldeias, Santarém, São Fidélis, Jequiriçá e mais as de Abrantes e Massarandupió, sendo sempre recebido "com festas, pela ambição de receberem o prometido." Foi nesta ocasião que pronunciou os já citados dois "Discursos perante o povo indiano" de Santarém e São Fidélis, registrando o visual das aldeias visitadas em cinco belíssimas aquarelas.
Nada impede-nos de conjecturar que toda essa transumância dos índios de Jequiriçá, Santarém e São Fidélis, todos do tronco Tupinambá, repetia a prática tradicional desta sociedade que através de grandes movimentos coletivos, migrava em busca da "terra sem males" (FERNANDES, 1963, p.343; CALANSAS, 1952; VAINFAS, 1995). Desafortunadamente, não há registro se houve um líder messiânico que liderou a caminhada e fixação em Quiepe. O Capitão Moniz Barreto informa apenas que entre os retirantes de Santarém encontravam-se "duas famílias das mais principais". A presença de sete índìos solteiros entre os migrantes de Santarém e São Fidélis permitem-nos conjecturar que poderiam tratar quiçá de alguns "tibira", os famigerados sodomitas da sociedade Tupinambá, posto que somente eles teriam condição de sobreviver sem a cooperação de uma mulher, estando isentos da rígida divisão sexual de trabalho (FERNANDES, 1963, p. 159; CLASTRES, 1972). Pode ser até que liderava esta migração um "tibira" posto que o xamanismo entre diversas tribos do Brasil, e de outras regiões do mundo, estava organicamente associado às práticas homoeróticas e/ou travestismo (MARTIUS, 1844, p.129).
De certo, temos apenas a informação do Capitão Moniz Barreto que, orgulhosamente, incluiu em seu curriculum a recondução dos sublevados às suas respectivas aldeias. Diz que os índios de Santarém "ficaram inteiramente satisfeitos e radicados no amor, respeito e veneração que deviam, como devem, a Sua Majestade e a todos os seus delegados"; os de Jequiriçá, corifeus da sublevação, foram os que mais resistiram ao retorno para suas primeiras habitações; quanto aos de São Fidélis, mais fiéis, "voltaram de igual modo às suas nacionais palhoças, onde os admoestei com toda brandura para ficarem, como ficaram, satisfeitos e em sossego." (1794, p. 3-11).
Este é o triste fim de uma epopéia até então desconhecida, gerada há dois séculos atrás.
Outra forma de resistência, embora menor que a de Quiepe, mas de grande significação simbólica, foi praticada pelos índios de Santarém alguns anos após seu retorno à vila. Quando da correição da Comarca, informa o Ouvidor Lisboa que nesta localidade
nem o exemplo dos foreiros, nem as repetidas recomendações que lhes fiz, têm sido bastantes para que se estimulem a aplicarem-se à lavoura, em tanta forma que, depois de terem nos seus quintais muitos pés de cacau às minhas instâncias plantado, prometendo-lhes dar por eles um bom preço a que ninguém chegaria, meteram neles o machado, dizendo que para nada lhes serviam aquelas plantas, nem é de esperar algum melhoramento da civilização. (p. 18)
Certamente as promessas de melhorias e presentes feitas pelo "pacificador" Moniz Barreto, como não tivessem sido cumpridas, provocou tamanha revolta nos nativos, conhecedores do quanto a "civilização" significava tristeza, privações, extermínio e quimera. Aliás, este será o tema da conclusão deste trabalho.
Hoje, quando os Pataxó "invadem" as fazendas de cacau da região, recuperando seus antigos territórios, em vez de imitar seus antepassados revoltados, colhem e vendem os preciosos frutos do cacaueiro, cuja cotação de seu preço, em Ilhéus e na bolsa de Londres, diariamente a televisão baiana se encarrega de divulgar.
Conclusão: o discurso de um Botocudo
Concluo este trabalho, tratando de um problema crucial na história passada e no presente destes povos: a civilização.
Civilizar, cristianizar, escolarizar, educar para o trabalho mercantil, moralizar, eis o ideal de todos os contemporâneos que escreveram sobre os índios não só do Sul da Bahia, mas de todo o Brasil nos séculos passados. Alguns, como o Príncipe Maximiliano, descreram da possibilidade de que estes "decaídos filhos da América" chegassem a civilizar-se; outros, como o erudito Ouvidor LISBOA, conhecedor de Rosseau, Buffon, Adam Smith, malgrado a decadência e resistência às suas inovações modernizadoras, confiava que a política do Marquês de Pombal seria coroada de sucesso. Pedimos vênia para transcrever um longo trecho de autoria deste arguto Ouvidor, sem dúvida o mais douto e humanitário das autoridades que escreveram sobre a região, amigo e defensor dos índios, sensível a ponto de verter lágrimas quando foi testemunha da opressão e decadência em que encontrou seus queridos brasis. Sua erudita filantropia fazem-no constantemente denunciar as injustiças, espoliações e maltratos sofridos pelos primeiros moradores da América Portuguesa. Se o baianense Dr. Baltasar da Silva Lisboa dispusesse de nossa a bibliografia antropológica atual, certamente seria, além de brilhante etno-historiador, valoroso indianista.
Não parece desacertado fazer-se alguma reflexão sobre essa geração que há poucos anos saiu das matas, examinando o seu estado e caráter nas situações variadas em que a Natureza os pôs, com os progressos do estado de sociabilidade em que passaram, quais os esforços da sua atividade, movimento das suas afeições. Os antigos filósofos, mestres neste gênero de exames, não podem servir de guia em matérias estranhas a seu conhecimento, pois que os habitantes do Brasil, muito diferentes da Europa e mais partes do antigo Mundo, vivem sem indústria, amor ao trabalho, ignoram as artes, não têm idéias perfeitas da propriedade, pois que gozam em comum o que a fecundidade espontânea da Natureza produz, e todos com o mesmo caráter que parecem até ser nascidos de um mesmo Pai comum, pela semelhança da sua forma e uniformidade dos seus sentimentos. É geralmente recebido serem os índios criados para a escravidão, como uma raça estúpida, incapaz de adquirir idéias de religião e de serem acomodados às instituições da vida civil. Ainda que alguns ardentemente disputavam serem dóceis, capazes de instrução e de serem bons cristãos e cidadãos. Os filósofos se dividiram, pois, em opiniões e alguns tocados de aparência da degradação, que parece ter chegado aquela espécie humana, espantados de verem um tão vasto continente ocupado de uma raça de gentes nuas, tímidos, e ignorantes, sustentaram insensatamente que esta parte do globo tinha ficado mais longo tempo coberta das águas do mar que a antiga conhecida terra, e pouco própria de ser habitada pelo homem, e em toda a parte lhes parecia encontrar vestígios de uma origem moderna, e que seus habitantes tinham sido há pouco chamados a existência, e que estando no começo de sua carreira, não podiam ser comparados com os habitantes do antigo Mundo (M. de Buffon, Hist. Nat. tom. 3, pag. 494; tom. 9°, pag. 113-114). Outros imaginaram que tais homens dominados pela influência de um clima pouco favorável que enfraquece o princípio da vida, não podiam chegar ao grau de perfeição, de que era susceptível pela sua natureza, ficando um animal de uma classe inferior sem força na sua constituição física, sem sensibilidade e vigor nas suas faculdades morais. (M. de Par, Recherches philos. sur des Americ.) Outros, opostos àqueles, pretenderam que o homem chegava ao mais alto grau de dignidade e de excelência possível não tocando o estado de civilização, pois que na simplicidade da vida selvagem possuía uma elevação de alma e sentimento de independência e valor de afetos que inutilmente se buscaria nos membros das sociedades polidas (M. Rousseau a cada passo), afirmavam que o estado do homem era tanto mais perfeito, quanto ele era menos civilizado, descrevendo costumes dos míseros selvagens, como se por modelos os devesse receber a sociedade polida. É sem dúvida assim: estes índios de que falo com todos os outros do Brasil, sem união civil entre si, viviam independentes, e não faziam membro dalguma sociedade regular. Eles tinham as suas Aldeias nos sertões que iam para a Capitania de Minas, onde hoje existem fazendas de gado. Errantes de um a outro lugar, debaixo do manto da noite se acoutavam, para dar de manhã cedo nas povoações, mandando com as suas taquaras, a morte a quantos encontravam, e feita aquela empresa, se retiravam no mesmo dia, não devorando os cadáveres em satisfação de sua vingança, como outros povos praticavam. Estes selvagens depois de reconciliados com os moradores, conservaram, contudo, os seus naturais sentimentos, que a autoridade da polícia e da força pública pouco modificaram da sua ferocidade. Ainda que a cor universal de todos os índios seja de um vermelho escuro, cor de cobre, cabelos negros e compridos, sem barba, cara redonda, testa pequena, a extremidade das orelhas longe da cara, beiços grossos, nariz chato, olhos negros e pequenos, sem pelo em todo o corpo, senão na cabeça, estes contudo, eram claros como os portugueses, membrudos, sombrios, desconfiados, ágeis e dotados de força, porém indiferentes a todo o motivo de interesse, de glória, de honra, e de reconhecimento: envelheciam sem sair da infância, manifestavam sua alegria por saltos e risos imoderados sem algum motivo. (1802, p. 18-19)
Noutro documento, o mesmo cronista aconselha brandura no trato com essas "crianças" saídas da floresta:
Deve-se evitar que se faça o menos mal aos índios, tanto domésticos como centrais, que pelo seu desgraçado estado merecem mais terna compaixão do Governo, aqueles bárbaros tendo parecido algumas vezes aos portugueses, nenhum dano até agora lhes fizeram, seria um vantajoso serviço ao Estado empregarem-se todos os meios de brandura e os que subministram os da liberdade, para trazerem à luz aquelas vítimas cegas a favor de quem clama a humanidade por todo o socorro. (1799, p. 109)
Deslocando a análise para o outro lado: e os próprios índios, o que pensavam da "civilização"? Ao cortar os pés de cacau, revoltados, os índios de Santarém vociferavam "não esperar algum melhoramento da civilização!" certamente que esta palavra tão deletéria, civilização, devia ser constantemente pronunciada nas regiões povoadas pelos "gentios", "selvagens", "tapuiada’’, Assim sendo, não devemos desacreditar da possibilidade de ter existido todo um discurso nativo questionador de tal "civilização".
Temos o privilégio de dispor de um longo discurso proferido por um índio desta região, registrado por Charles Expilly em seu livro Mulheres e Costumes do Brasil, editado a primeira vez em 1854. Tal discurso seria apócrifo ou verdadeiro? Os pés de cacau arrancados algumas décadas anteriores, a contumaz resistência dos Pataxó até nossos dias, dão um voto de credibilidade ao viajante francês e às palavras que ele recolheu da boca do botocudo "Tio Barrigudo". Seu encontro com o selvagem foi casual: viajando pela comarca de Ilhéus, à procura do pai de uma negra Mina do Rio de Janeiro recém-alforriada, eis que no meio da mata encontra-se o viajante com dois capitães do mato que traziam amarrados três prisioneiros: um escravo africano acusado de ter assassinado seu senhor, um moleque mulato de 10 anos e
um velho de barbas brancas, aspecto disforme embora mantivesse a cabeça erguida como quem tem o hábito do mando. Era evidentemente um pele vermelha, um índio Botocudo. Tinha as mãos atadas às costas. Sua idade avançada, o orgulho que brilhava nos olhos, fizeram com que eu me interessasse por ele. (p.168)
São os Capitães do Mato que completam as informações: dizem que o índio chamava-se "Tio Barrigudo" ou "Advogado Vermelho", porque advogava sempre em favor da independência das tribos e em matéria de religião, fazia frente mesmo aos padres. Era um Pajé de nomeada nas florestas. A sua tribo fora inteiramente destruída há quatro anos, e a idade o tinha salvado, sendo Tio Barrigudo internado na AIdeia Barra do Salgado, onde já existiam reunidos 120 a 130 Botocudos. A lagoa do Patipe servia de ponto de reunião destes índios. "Oh! os pele-vermelhas! Não podem se acostumar à existência dos civilizados", completavam os dois mulatos que narraram tais detalhes ao viajante francês. (p. 169)
Seguindo a mesma jornada pela mata a dentro, compartilhando da mesma refeição, descansando à sombra das mesmas árvores, Expilly teve bastante tempo para bem observar, se informar e dialogar com o velho botocudo. Qualquer um ficaria fascinado com o "selvagem":
O índio era extraordinário. Julgá-lo-á o leitor. Tio Barrigudo é um velho seco e anguloso. Sua pele, encolhida como pergaminho, não conservou a cor moreno avermelhada particular à sua raça. A tonalidade desapareceu com os anos. Foi substituída pelo tom amarelado, amarelo sujo, que se nota nos mamelucos e em certas crioulas de origem suspeita. Os ossos salientes do rosto, o nariz achatado, as pernas longas e magras, os olhos divergentes, não deixam nenhuma dúvida quanto à raça que pertence. O que oferece de horrível essa fisionomia é a ausência de pestanas e sobrancelhas. E também o comprimento exagerado das orelhas, cujos lóbulos dilatados apresentam um orifício redondo. E sobretudo um lábio dividido em dois, que excede as medidas e desce até o meio do queixo, deixando descoberto o maxilar vazio e descarnado [...] Assim, essas orelhas que tocam quase os ombros, como as de um cão de caça, essa boca desdentada e pendente, dão uma expressão repugnante à cara do velho chefe. Somente sua atitude é respeitável, altiva mesmo, apesar das cordas que ligavam suas mãos. Os olhos, aos quais nem a idade, nem o infortúnio conseguiram roubar uma vivacidade austera, refletem um orgulho desdenhoso que é, a despeito de palavras, como o supremo desafio lançado ao vencedor pelo vencido.
Sou contra os historiadores que dotaram os botocudos de uma estúpida indolência e de uma apatia embrutecedora, que exclui todo o trabalho do pensamento. O indivíduo que eu tinha diante de mim era vivo, bem vivo de corpo e espírito. A seguir ele me daria a prova de que a sua alma transbordava de enérgicos sentimentos de amor e de ódio. A princípio o índio encerra-se em desdenhoso silêncio. Por certa consideração chamei-o de tio, perguntando-lhe se os quatro anos passados entre os brancos não lhe tinham diminuído as saudades da vida independente, mas difícil em que se vive nos matos.
O velho mediu-me soberbamente sem responder. O seu olhar, em todo o caso, dizia-me tudo o que a boca silenciava. Conhecendo a paixão dos índios pelos licores fortes, ofereci-lhe um copo de cachaça. Foi excelente inspiração. Tio Barrigudo, indicando-me com os olhos as mãos presas, fez-me compreender que aceitaria de bom grado o meu oferecimento, se Ihe fosse possível. Sob a minha responsabilidade pessoal, obtive dos capitães do mato que as cordas fossem desatadas, enquanto durasse o nosso colóquio... Agradeceu-me em português declarando que pelo meu procedimento, ainda mais que pelo meu gesto, ele adivinhava que eu pertencia a uma nação diferente da de seus inimigos. Antes de levar o copo à boca o Botocudo espalhou no chão algumas gotas do líquido. Queria isto dizer que essa libação se dirigia em primeiro lugar a Taru, o criador de todos os seres, e em seguida às divindades inferiores que habitavam a floresta. Depois de lastimar que o tio Barrigudo tivesse caído nas mãos dos Capitães do Mato, ajuntei que eu o julgava dotado de bastante coração e inteligência para que um dia se reconciliasse com a civilização. Esta palavra fê-lo estremecer. O seu amor feroz pela liberdade explodiu logo nesta exclamação que ele proferiu com um ronco surdo do peito: Ah! a civilização! Tenho-a encontrado mais de uma vez em meu caminho. Os brancos trazem-na no canhão e nos fuzis e a lançam voluntariamente no deserto acompanhando a mentira a espoliação e o homicídio!
Todo o orgulho, toda a raiva que pode conter a alma de um índio ressumava nessas palavras. Naturalmente pretendi reabilitar aos seus olhos a raça branca, mostrando o magnífico papel de iniciação que ela ocupa no mundo. O velho pajé escutava-me atentamente sem protestar contra minha argumentação, senão por um sorriso rasgado. O fim da minha última frase fê-lo novamente explodir, e um clarão selvagem iluminou-lhe as pupilas: Conheço essa palavra, disse com azedume. Os pajés da aldeia (missionários) repetirem-na vinte vezes por dia, durante os quatro anos que me tiveram em seu poder. Os pajés da aldeia fazem belos discursos, porém os atos dos civilizados desmentem as suas palavras!
Animando-se à proporção que falava, continuou: É por humanidade que os brancos invadem os nossos sertões e arrancam por violência a herança de nossos pais? É ainda por humanidade que eles nos repelem para o fundo das florestas e nos massacram, se tentamos defender os nossos territórios, a nossa caça, as nossas famílias, a nossa independência secular? Enfim por humanidade, sempre por humanidade, que eles acorrentam os sobreviventes, pobres velhos como eu, que levam como cativos? Oh! Juro por Taru, Criador do Mundo, que como à vossa civilização, que tenho horror à humanidade!’
Continuando o diálogo, repliquei: Mas tua nação professa, segundo me dizes, um grande respeito pela vida humana. No entanto, cada dia que passa nos traz a notícia de um novo atentado, acompanhado de incêndio, executado pelos botocudos bravios. Não foi por causa da longa série de horrores praticados pelos descendentes dos Aimoré que os brancos e os mestiços dizimaram as aldeias?
O pajé lançou-me um olhar colérico, e respondeu: Isto é verdade. Mas a quem cabe a responsabilidade desta situação? Aos brancos, que depois de terem invadido os nossos territórios de caça, atiram-nos à sua frente, como uma vara de porcos, ou a nós, que nos defendemos contra tão insolentes e cruéis opressores? O primeiro sangue, quem derramou? Os brancos. A guerra existe, pois entre nós há muitos séculos. E o de que nos acusam, como sendo crime, não é outra coisa senão represália.
Que pensam desta lógica do Botocudo? Quanto a mim, confesso, não esperava encontrar nas florestas do Novo Mundo um argumentador dessa força. Convenhamos que o Advogado Vermelho merecia bem o seu nome. Havia outra questão que eu ansiava por tratar, sem ter ainda ousado abordá-la. O momento pareceu-me propício. Decidi-me aproveitá-lo: Que consideração se poderia ter para com selvagens que, refugando o trabalho e oprimidos pela fome, assassinam os seus semelhantes para comê-los em seguida? Esperei com inquieta curiosidade a resposta de Tio Barrigudo.
Compreendo o teu pensamento, disse. Na aldeia também os Pajés (missionários) e os senhores acusam-nos de comer a carne dos inimigos. Mas, responda-me francamente: que é preferível a um valente soldado, ter por sepultura as entranhas de um guerreiro ou o ventre dos urubus e dos jaguares?
Então, exclamei: confessas que as tribos ainda não renunciaram totalmente a esse costume execrando? Não confesso nada, disse ele, senão que os nossos antepassados, os Aimoré sacrificavam os seus prisioneiros e nutriam-se da sua carne. Mas os tempos mudaram. Hoje os Botocudos matam para se defender. A caça e a guerra dão-lhes amplamente os meios de subsistência. É unicamente como desculpa às atrocidades cometidas para com as nossas tribos que os brancos os acusam de devorar seus inimigos. É permitido destruir as onças e os guarás; mas os canibais não serão mais perigosos ainda que os animais selvagens? É em favor desta covarde calúnia que a Civilização faz por Humanidade a caça ao homem e despovoa o sertão! rematou ele com mordaz ironia.
Depois desta declaração um peso enorme caiu do meu peito e os meus pulmões, contraídos, dilataram-se. Tio Barrigudo recomeçou com dobrada energia: Que o meu filho branco guarde estas palavras do pajé botocudo: nunca existirá uma aliança entre os opressores e os oprimidos. Entre as nações indígenas, há umas que foram aniquiladas até o último varão, outras submeteram-se e outras ainda estão dominadas pelo terror. Nós outros, fomos particularmente perseguidos, sitiados, massacrados, porque somos mais valentes e a independência nos é mais cara do que a vida. O nosso ódio não pode nem crescer nem se extinguir. Enquanto houver um Botocudo de pé, esse Botocudo marchará pelo caminho da guerra. Os brancos e os mulatos possuem armas de fogo que lhes facultam quase sempre a vitória. Mas os pele-vermelhas receberam do Criador dos seres a astúcia e a paciência... Recusamos o bem estar que nos ofereceis. À vossa civilização opressiva, preferimos a existência livre nas florestas. O trabalho das cidades não foi feito para nós. Não se aprisiona nem o jaguar nem o tucano... Restituí-nos todos os bens que nos pertencem, e viveremos à nossa vontade. Se não, desconfiai. Porque os Botocudos errantes, dispersados, perseguidos como feras ou vigiados como animais de tropa, serão sempre, e por toda parte, implacáveis inimigos dos brancos e dos mestiços...
Minhas simpatias tinham sido conquistadas por Tio Barrigudo. O índio não era, afinal, senão um prisioneiro político, social, se o preferirem, e a sua fuga da aldeia, tão natural na sua situação, não provaria indignidade. Ao meu ver, tratava-se de um insurreto da civilização [...]". (Expilly, 1854, p. 166-183)
Retomo minhas palavras na Introdução deste trabalho: que este trágico vaticínio de Tio Barrigudo, a impossibilidade de aliança entre índios, brancos e afro-descendentes, apesar do sangrento passado de violências e mortandades, seja substituído por uma nova era de respeito e boa vizinhança, sem opressores nem oprimidos. E que índios, negros e brancos construamos uma nova sociedade baseada na igualdade de direitos de todos cidadãos, independentemente de sua raça, sexo ou orientação sexual. Onde a felicidade seja um direito garantido a todos e todas.
Notas
1 Este artigo, com pequenas modificações, foi originalmente publicado com o título Índios do Sul da Bahia, na Revista Cultura. Salvador, nº 1, Fundação do Estado, 1988, p. 93-120.
2 MOTT, Luiz. Os pecados da família da Bahia de Todos os Santos. Salvador: Publicações da Universidade Federal da Bahia, Centro de Estudos Bahianos, nº 99, 1982, 55 p.
3 Eis uma lista das principais obras históricas que tratam da Comarca de Ilhéus: ALAMEIDA PRADO, J.F. A Bahia e as capitanias do centro do Brasil (1530-1626). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1945; BORGES DE BARROS, F. Bandeirantes e sertanistas bahianos. Salvador: Imprensa Oficial do Estado, 1911; SILVA CAMPOS. Crônica da capitania de São Jorge dos llhéus. Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, MEC, 1981; VASCONCELOS, Simão. Crônica da Companhia de Jesus. Petrópolis: Editora Vozes, 1977 (dois volumes). Como "fontes secundárias" lançamos mãos dos seguintes autores: CALDAS, José Antônio. Notícia geral de toda esta Capitania da Bahia desde o seu descobrimento até o presente ano de 1759. Salvador: Tipografia Beneditina, 1961 (Edição fac-símile); EXPILLY, Charles. Mulheres e costumes do Brasil (1854). São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1977; MAXIMILIANO, Príncipe de Wied-Neuwied. Viagem ao Brasil. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1940; VON SPIX &VON MARTIUS. Através da Bahia. Salvador: Imprensa Oficial do Estado, 1928; VILHENA, Luís dos Santos. A Bahia no século XVIII. Salvador: Editora Itapuã, 1969 (v. 2); AIRES DE CASAL, Pe. Manuel. Corografia brasílica. São Paulo: Livraria Itatiaia/USP, 1976.
4 EXPILLY, Charles. Mulheres e costumes do Brasil (1854). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977, p. 182.
5 Foram tantas as vezes, neste trabalho, que recorreremos às informações e escritos de BALTASAR DA SILVA LISBOA, que reputamos merecedor de uma informação bio-bibliográfica. Este ilustre brasileiro nasceu na Bahia aos 6 de janeiro de 1761, irmão mais novo de José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu, com o qual estudou Direito e Ciências na Universidade de Coimbra, onde publicou aos 25 anos sua primeira obra: Discurso Histórico,Político e Econômico dos progressos e estado atual da Filosofia Natural Portuguesa, acompanhado de algumas reflexões sobre o Estado do Brasil. (Lisboa: Oficina de Antônio Gomes, 1). De volta ao Brasil, sucedeu seu irmão no posto de Ouvidor da Comarca de Ilhéus, ocupando por 20 anos o cargo de "Conservador das Matas de Ilhéus", tendo durante este período escrito as seguintes obras: Tombo das Terras pertencentes à Sua Majestade desde o Rio Aqui até Canavieiras cujas matas ficam coitadas (Manuscrito, Biblioteca Nacional, RJ, n.° I, 31. 21, 35. 1) 1798; lnformação sobre a Comarca de llhéus a sua origem a sua agricultura, comércio, população e preciosas matas, Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa), 1799, Documento n° 19209 (reproduzido no Inventário dos Documentos relativos ao Brasil existentes no A.H.U., v. 4); Memória sobre a Comarca de llhéus (1802), Arquivo Histórico Ultramarino, Doc. nº 24002 (reproduzido no Inventário, v. 5); Memória sobre as Matas de llhéus (1803), Biblioteca Nacional, Ms. I, 31, 30, 27; Plano para se organizar o Correio de terra para o Rio Doce (1808) Arquivo Nacional, RJ, Códice 806, v. 7 – Profundo conhecedor da flora desta região escreveu ainda em 1823: Riqueza do Brasil em madeiras de construção e carpintaria, Tipografia Nacional, RJ, 1823. Sua principal obra impressa intitula-se Anais do Rio de Janeiro, publicada entre 1833-1835 (7 volumes), escrita quando ocupou na capital do Império os seguintes cargos: Juiz de Fora, Desembargador da Relação, Presidente da Câmara Municipal. Foi, ainda Comendador da Ordem de Cristo e Lente da Faculdade de Direito de São Paulo. Morreu no Rio de Janeiro em 1840.
6 Para uma avaliação dos bens dos Jesuítas nessa região, consulte-se: Cartório Jesuítico, Maço 54: Inventário do Engenho de Santana, Ilhéus, 14/11/1752, Arquivo Nacional da Torre do Tombo; Arquivo da Cúria de Salvador, Maço 2, n° 14, "Irmandades e Capelas": "Inventário das alfaias da Capela de Santa Inês dos Jesuítas", Cairu, 25/10/1785.
7 Boa descrição deste conturbado período pode ser encontrada em Silva Campos, op. cit., Capítulo VII e ss.
8 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, Caderno dos Solicitantes, nº26, fl. 143, (3/1/1748).
9 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Ordem de Cristo, Maço 2, "Bahia", Informação sobre a Freguesia de São Félix do Una (30/05/1801).
10 Arquivo Nacional (RJ), Códice 807, v. 7 (12/10/1808).
11 Fontes para o quadro da população das aldeias do Sul da Bahia: 1740 - Fr. MODESTO DE TAUBATÉ, Os missionários capuchinhos no Brasil. São Paulo: Tipografia La Squilla, 1929, p. 75; 1757 – "Relação das Povoações e Lugares e Rios e distâncias que há entre eles nas Freguesias de Ilhéus, Poxim, Rio de Contas, Camamu, Maraú, Cairu, Boipeba." (Arquivo Histórico Ultramarino, Doc. nº 2676-2683, reproduzido no Inventário de Eduardo de Castro e Almeida, v. V, p. 184-193); 1759 - CALDAS, J,A., Notícia Geral (op. cit,); 1792 – Capitão MONIZ BARRETO (cf. nota 14); 1794 - Capitão Moniz Barreto (cf. nota 14); 1798 – VILHENA, Luís dos Santos (op. cit.); 1799 – Ouvidor LISBOA (op, cit.); 1801 – Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Ordem de Cristo, Bahia, Maço 2; 1802 – Ouvidor Lisboa (op. cit.); 1813 – Livro de Devassa da Comarca do Sul, Arquivo da Cúria de Salvador; 1816 – Príncipe MAXIMILIANO (op. cit.); 1819 – SPIX & MARTIUS (op. cit.).
12 "Curiboca" ou "Cariboca", segundo os dicionários de Moraes e Aurélio, seriam sinônimos de "mameluco", i.e., descendente da união de europeu com índia, ou vice-versa. Para o Ouvidor Antônio José de Morais Durão, no Piauí (1722), "curiboca é o filho de mestiço com índia", cf. MOTT, Luiz: Descrição da Capitania de São José do Piauí, Revista de História, n. 112, 1977, p. 543-574. Diversa parece ter sido a relação interracial na Comarca da Bahia, pois segundo o Ouvidor Tomás Navarro de Campos, em 1804, os índios são muito dados ao matrimônio, por isto casam de poucos anos e são inclinados a enlaçar-se com os portugueses e há disso exemplos [...]"acrescentando o seu desiderato: "Se fosse possível, promover com suavidade o matrimônio dos índios com os portugueses, chegarão os descendentes mais depressa ao verdadeiro ponto da civilização, fazendo-se mais úteis ao Estado e à Religião." (Ofício do Ouvidor, Bahia, 23/01/1804, Arquivo Histórico UltraMarino, doc. nº 26331, reproduzido no Inventário, p. 178-179). Ainda sobre os privilégios concedidos aos mamelucos, cf. Livro de Leis n° 9 (1751-1756) do A. N. da Torre do Tombo: "não ficam com infâmia e seus descendentes serão hábeis e capazes de qualquer emprego, honra e dignidade, proibindo-se que sejam tratados de ‘cabouclos’ ou outros nomes injuriosos. Os requerentes a ofícios públicos façam referência a sua particularidade de descendentes de índios para mais particularmente serem atendidos:’ (D. José I).
13 Ao estudar uma "Relação nominal de 625 índios de Sergipe (1825), encontrei a mesma regularidade: 54% dos nativos possuíam sobrenomes, e dentre estes, alguns apelidos ainda mais nobres e tradicionais, como Albuquerque, Rocha Pitta, Bezerra de Sampaio, Vieira Machado etc. MOTT, Luiz. Sergipe Del Rey: população, economia e sociedade, Aracaju: Fundesc, 1986.
14 A respeito dos nomes de família entre diferentes grupos étnicos da Bahia, cf. Eliene S. Azevedo: Análise antropológica e cultural dos nomes de família na Bahia, Ensaios e Pesquisas nº 8, Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais, maio 1981.
15 Arquivo Municipal de Salvador, Posturas da Câmara de Salvador, Livro 119-5, fl. 60, § 99.
16 Não poderíamos deixar de registrar algumas informações bio-bibliográficas sobre DOMINGOS ALVES BRANCO MONIZ BARRETO, nossa segunda mais rica fonte nesta incursão pelo Sul da Bahia. Encontramos poucos dados sobre sua vida: sabemos tão somente, até agora, que é natural da Bahia, tendo sido Capitão de Infantaria de Estremoz e Escriturário da Contadoria Geral da Junta da Fazenda da Capitania da Bahia. Passou alguns anos na Comarca do Sul, pois são de sua autoria as seguintes obras: Plano sobre civilização dos índios do Brasil e principalmente para a Capitania da Bahia, (1788), Mss. (Biblioteca Nacional, RJ, 1, 3, 291; Descrição da Comarca de Ilhéus (1790), Mss. (Biblioteca Nacional, RJ, 1, 14, 10); outro exemplar na Biblioteca do Porto, Mss. Nº 180 (diz-se ter sido enviada para Academia Real das Ciências de Lisboa com 70 pranchas); Observações sobre a fortificação da Cidade da Bahia e Governo do Arsenal pela Intendência da Marinha e Armazéns Reais (s/d), Biblioteca do Porto, Memória nº 181 . Pesquisador meticuloso, aponta na sua Descrição da Comarca de Ilhéus várias imprecisões cometidas pelo Ouvidor Manuel Pereira de Gama no seu "Ensaio de descrição física e econômica da Comarca de Ilhéus" (Memórias Econômicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, 1789). Também extremamente crítico revela-se no opúsculo: Os abusos que tem introduzido na Administração da Justiça e Governo Capitania da Bahia (s/d), Mss. Biblioteca Pública do Porto, Memória nº 1105, onde não poupa duras palavras ao clero arquidiocesano. Dentre seus escritos, os que mais retamente nos forneceram subsídios na reconstrução da etno-história dos índios dessa região foram 4 manuscritos: Discurso que foi repetido por Domingos Alves Branco Moniz Barrem, Cavaleiro professo da Ordem de São Bento de Aviz, na presença do povo indiano da vila de Santarém, Capitania da Bahia, depois da missa que em louvor do Santíssimo Coração de Jesus foi celebrada pelo Rev. Vigário Padre Pedro Gonçalves Ferreira, no ato de colocação que ele também fez na Igreja Matriz, 1791, Biblioteca Nacional, RJ, Ms. (1, 1, 8); Oração que foi repetida por Domingos Alves Branco Moniz Barreto, na presença do povo indiano da Aldeia de São Fidelix, da Capitania da Bahia, depois da Missa que mandou celebrar pelo Rev, Vigário o Padre Antônio Nogueira dos Santos, na colocação que se fez da imagem do Santíssimo Coração de Jesus no Altar Mor da Igreja Matriz, 1791, Mss. Biblioteca Pública do Porto, n° 1052; Notícia da viagem e jornadas que fez o Capitão Domingos Alves Branco Moniz Barreto entre os índios sublevados nas vilas e aldeias da Comarca de Ilhéus e Norte da Capitania da Bahia, 179?, Mss. Biblioteca Nacional, RJ, 3, 1, 18; Descrição das vilas e aldeias de índios da Comarca de Ilhéus 1794, Arquivo Histórico Ultramarino, Doc, 15794-15798, reproduzido no Inventário de Eduardo de Castro e Almeida e em cópia fac-símile no Arquivo Público do Estado da Bahia, Os interessados em conhecer maiores detalhes sobre a vida deste ilustrado Capitão, encontrarão na Biblioteca Nacional (RJ) outros manuscritos sobre suas atividades administrativas.
17 FERNANDES, Florestan. Organização social dos Tupinambá. São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1947.
18 "No Brasil, não há parte alguma onde se conheçam tantas e mais ervas medicinais do que nas matas da Comarca de Ilhéus", dizia o Capitão Moniz Barreto na sua "Descrição" (op. cit.).
19 LISBOA, B. G. Discurso histórico, (op, cit.), 1786, p. 61.
20 Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro, Livro de Receitas e Despesas do Recolhimento de Nossa Senhora do Parto (1786): "pagou-se 4$000 aos índios que conduziram para a igreja os tocheiros, prata, bancos e tapetes."
21 MOTT, Luiz. Rosa Egipcíaca: uma santa africana no Brasil. Rio de janeiro: Bertrad, 1988.
22 Ainda hoje, segundo depoimento de alguns índios Pataxó de Pau Brasil, várias pessoas mordidas de cobra têm sido curadas com a aplicação de ervas conhecidas pelos índios mais velhos do lugar.
23 Na ocasião que redigimos este trabalho, tivemos oportunidade de entrevistar alguns índios Pataxó do Monte Paschoal que de Salvador se encaminhavam a Brasília a fim de "brigar" pela demarcação de suas terras no sul da Bahia. Comentando com eles alguns costumes antigos dos Pataxó, meus informantes confirmaram que até hoje, quando no mato, usam as folhas de palmeira para ferver água e até cozinhar carne, e que também comem o ‘bicho de pau" que tanta admiração causou nos viajantes alemães. Quando contei-lhes que os historiadores antigos se admiravam da habilidade dos índios que desciam enormes troncos de madeira pelas correntezas e cachoeiras, afogando-se alguns, acidentando-se gravemente outros, "a troco de duas patacas", informou-me um Pataxó mais velho que conhecia 4 índios na sua região que tiveram de amputar uma das pernas por tê-las esmagado em conseqüência do golpe produzido pelo choque destas madeiras – exatamente como acontecia há duzentos anos. E mais um detalhe importante: após o acidente, as pernas esmagadas desses desafortunados falquejadores foram tratadas com ervas do mato, que provocam a cicatrização da ferida, secando-se a carne abaixo do lugar onde se deu o esmagamento, cortando-se em seguida o osso "morto" com, um simples serrote.
24 Em Cairu, por alturas de 1780, o foro anual de uma légua de terra era 2$100, entretanto, na zona pecuária (sertão da Bahia) desde os começos do século, já esse preço era fixado em 10$000, segundo Antonil. As terras de maior valor econômico eram as de Belmonte. Silva Campos, op. cit., p. 181.
25 LISBOA, B. S. Tombo das Terras (op. cit.).
26 Arquivo da Cúria de Salvador, Livro de Devassas da Comarca do Sul 1813, fl. 107.
27 Arquivo da Cúria de Salvador, Capelas e Irmandades, Maço 2, n° 40 e 41. No Arquivo Histórico Ultramarino, o leitor interessado encontrará os Compromissos das Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de Camamu (1788) e das Santas Almas de Boipeba (1791), in "Compromissos e Irmandades", Bahia, nº 1 e 8.
28 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, Processo 2289 (1732).
29 Arquivo da Cúria de Salvador, Irmandades e Capelas, Março 2, nº14 (1785).
30 ANDRADE, José Bonifácio de. Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil, (1823), Biblioteca Nacional, RJ, Or/63 (5).
31Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Padres do Brasil, Ordem de Cristo, Bahia, Maço 1. "Vigários que têm auxílio régio anual para ministério".
32 Nem sempre os missionários capuchinhos nortearam-se no Brasil pela brandura e caridade cristãs. De acordo com documentos conservados no Arquivo Histórico Ultramarino, na vizinha Capitania de Pernambuco, os mesmos Barbadinhos italianos eram acusados pelo Chanceler José Carvalho de Andrade, junto ao Conde de Oeiras, de "praticarem tiranias, crueldades e violências, chegando até a fazerem morrer índios às pancadas de paus, arrastados e queimados com o pretexto de serem feiticeiros". (Doc. 5351 no lnventário de E. Castro e Almeida)
33 Biblioteca Pública do Porto, Mss. n° 1052 (1791).
34 MOTT, L. Rosa Egipcíaca, op.cit.
35 Todas as informações referentes aos "pecadores" da Comarca de Ilhéus foram extraídas do Livro de Devassas (1813), conservado no Arquivo da Cúria de Salvador e cuja publicação integral estamos preparando para breve.
36 MOTT, Luiz. Sergipe colonial e imperial. Aracaju: Editora da UFSe, 2008.
37 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, Caderno do Promotor, n.125, fl. 513;
38 Arquivo da Cúria do Rio de Janeiro, Livro de Portarias e Ordens, nº 2, Portaria para que na Aldeia dos índios de Vila Verde, Comarca de Porto Seguro, os vigários recebam em matrimônio os índios sem provisão ou preparatório.
39 Vainfas, Trópico dos Pecados, op.cit.
40 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Caderno do Promotor nº 126, Inquisição de Lisboa, fl. 85, 14/03/1763.
41 MELLO E SOUZA, Laura. O inferno atlântico: demonologia e colonização, séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
42 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Caderno do Promotor nº 126, Inquisição de Lisboa, fl. 268 (7/6/ 1763).
43 GALVÃO, Erilza. O Diretor de Índios: Estudo sobre o Diretor parcial de Aldeia de Índios, Bahia, 2ª metade do século XIX, Dissertação de Mestrado em Antropologia, UFBA, 1988.
44 Arquivo da Cúria de Salvador, Irmandades e Capelas, Maço 2, n° 41 (1813).
45 Antiga unidade de medida de capacidade para líquidos, equivalente a quatro quartilhos, ou seja, 2,662 litros.
Referências (além das citadas nas notas)
CALANSAS, Jose. A Santidade de Jaguaripe. Bahia, Artes Gráficas, 1952
CARVALHO, Maria do Rosário. Os pataxó de Barra Velha; Seu subsistema econômico. 1981. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador.
CLASTRES, Pierre. Chronique des Indiens Gyayaki. Plon, Paris, 1972
MOTT, Luiz. Matrizes, igrejas paroquiais, capelas e oratórios e casas de oração no Sul da Bahia, 1813, Revista Monumento, Salvador: Ipac, 2 (13), maio-junho, 1981, p. 9-12.
PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Caminhos e ir e vir e caminho sem volta: Índios, estradas e rios no sul da Bahia. 1982. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador.
SOUZA, Gabriel Soares. Tratado Descritivo do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971.