5

Amanhecia no Redbeck Café & Motel, terça-feira, 17 de dezembro de 1974.

Dirigi toda a noite e voltei para lá, como se tudo voltasse para lá.

Paguei por duas semanas e recebi o correspondente:

Quarto 27, bem na esquina, com dois ciclistas de um lado e uma mulher com quatro filhos do outro. Não havia telefone, banheiro nem televisão. Mas por poucas libras a noite eu tinha direito a uma visão do estacionamento, uma cama de casal, um armário, uma mesa, uma pia e nenhuma pergunta.

Dei duas voltas na tranca da porta e fechei as cortinas úmidas. Deixei a cama nua e prendi o lençol mais pesado nas cortinas, depois apoiei o colchão contra o lençol. Peguei uma camisinha usada e meti dentro de um pacote de batatas fritas pela metade.

Voltei ao carro, parando para mijar num daqueles banheiros onde comprara minha passagem para aquela viagem mortífera.

Fiquei lá, de pé, mijando, sem saber muito bem se estávamos numa terça ou quarta-feira. Balancei o pau e abri a porta com os pés, sabendo que não encontraria nada além de cocô turvo e inscrições obscenas.

Fui ao bar e comprei dois cafés pretos grandes com quilos de açúcar, tudo em copos de isopor sujos. Abri a mala do Viva e peguei o saco de lixo preto, levando para o quarto 27, junto com os cafés.

Tranquei novamente a porta dando duas voltas, tomei um dos cafés, esvaziei o saco de lixo preto no estrado da cama e comecei o trabalho.

Os arquivos de Barry Gannon e todos os envelopes estavam nomeados. Ordenei alfabeticamente numa das metades da cama, depois fiz o mesmo com o grosso envelope pardo de Hadden, colocando as folhas de papel nas pastas relevantes de Barry.

Alguns dos nomes tinham títulos, outros, posições, mas a maior parte dizia simplesmente mister. Alguns nomes eu conhecia, outros não me eram estranhos, mas a grande parte não significava nada para mim.

Do outro lado da cama espalhei minhas pastas em três pequenas pilhas e uma maior: Jeanette, Susan e Clare, e à direita Graham Goldthorpe, o Ratcatcher.

No fundo do armário encontrei um rolo de papel de parede. Pegando um punhado dos alfinetes do meu pai, abri o papel e o prendi na parede logo acima da mesa. Com uma caneta vermelha, dividi as costas do papel em cinco grandes colunas. No topo de cada uma delas, em letras maiúsculas e vermelhas, escrevi cinco nomes: JEANETTE, SUSAN, CLARE, GRAHAM e BARRY.

Ao lado do papel de parede prendi um mapa de West Yorkshire que encontrei no Viva. Com minha caneta vermelha, marquei quatro cruzes vermelhas e fiz uma seta em Rochdale.

Bebendo o segundo café, firmei o corpo.

Com mãos trêmulas, peguei o envelope no topo da pilha de Clare. Pedindo perdão, abri o envelope e tirei de lá três grandes fotografias em preto e branco. Meu estômago se revirou, minha boca ficou seca, voltei ao painel feito com papel de parede e, cuidadosamente, prendi as três fotografias ali, logo abaixo dos três nomes.

E me afastei, com lágrimas nos olhos, olhando para o novo papel de parede, para aquela pele tão pálida, aqueles cabelos tão claros, aquelas asas tão brancas.

Um anjo em preto e branco.

Três horas mais tarde, com os olhos vermelhos por conta das lágrimas derramadas após ter lido tudo o que li, levantei do chão do quarto 27.

A história de Barry: três homens ricos: John Dawson, Donald Foster e um terceiro que ele não pôde ou não soube nomear.

Minha história: três meninas mortas: Jeanette, Susan e Clare.

A minha história, a história dele — duas histórias: a mesma época, os mesmos locais, nomes diferentes, rostos diferentes.

Mistério, história: Alguma conexão?

Pousei uma pequena pilha de moedas em cima do telefone que havia na recepção do Redbeck.

— O sargento Fraser, por favor?

A recepção era toda em tons de amarelo e marrom, e cheirava a fumaça. Através das portas de vidro, vi jovens brincando na sala de bilhar e fumando.

— Sou o sargento Fraser.

— Aqui é Edward Dunford. Recebi informações sobre domingo à noite, sobre Barry...

— Que tipo de informação?

Prendi o fone entre o queixo e o pescoço e acendi um fósforo.

— Uma ligação anônima, dizendo que o senhor Gannon foi a Morley por causa de Clare Kemplay — disse, com um cigarro entre os dentes.

— Algo mais?

— Pelo telefone, não.

Ao lado do aparelho, desenhados com uma esferográfica, as palavras Pau jovem e um número de telefone de seis dígitos.

— Melhor nos encontrarmos antes do inquérito — disse o sargento Fraser.

Do lado de fora, vi que chovia novamente e que os motoristas de caminhão colocavam casacos sobre a cabeça ao correrem em direção ao bar.

— Onde? — perguntei.

— No Angelo’s Café, em uma hora? Em frente à prefeitura de Morley.

— Certo, mas eu preciso de um favor.

Busquei um cinzeiro, mas tive de usar o chão.

Fraser murmurou do outro lado da linha:

— O quê?

Começaram os apitos, e coloquei mais uma moeda.

— Preciso do nome e endereço dos trabalhadores que encontraram o corpo.

— Que corpo?

— De Clare Kemplay. — E comecei a contar os corações amorosos riscados aqui e ali em volta do telefone.

— Eu não sei...

— Por favor — pedi.

Alguém escrevera “Para sempre” dentro de um dos corações, em vermelho.

Fraser perguntou:

— Por que eu?

— Porque acho que você é um cara decente e porque preciso de um favor e não tenho ninguém mais a quem pedir.

Silêncio, depois:

— Vou ver o que posso fazer.

— Em uma hora, então — eu disse, desligando.

Coloquei o fone no gancho, mas voltei a pegá-lo, introduzindo uma nova moeda e discando.

“Comedor de casadas.”

— Sim?

— Diga a BJ que Eddie ligou e dê a ele este número: 276578. Peça que pergunte por Ronald Gannon, quarto 27.

“Foda-se, Ken!”

Coloquei o fone no gancho, mas voltei a pegá-lo, introduzindo uma moeda nova e discando.

“O amor verdadeiro nunca morre.”

— Aqui é Peter Taylor.

— Oi. Poderia falar com Kathryn, por favor?

— Ela ainda está dormindo.

Olhei para o relógio de meu pai. Depois pedi:

— Quando acordar, poderia dizer que Edward ligou?

— Certo — disse o pai dela, como se estivesse fazendo um enorme favor.

— Até logo.

Coloquei o telefone no gancho, mas depois voltei a pegá-lo, depositei minha última moeda e disquei.

Uma velha passou pela recepção, vinda do bar, cheirando a bacon.

— Ossett 256199.

— Sou eu, mãe.

— Você está bem, querido? Onde está?

Um dos jovens perseguia outro na sala de bilhar, brandindo um taco de sinuca.

— Estou bem, no trabalho — respondi.

A velha sentou-se numa das poltronas marrons da recepção, bem em frente ao telefone, olhando para os caminhoneiros e para a chuva.

— Acho que vou precisar dar uma saída por alguns dias.

— Para onde?

O jovem na sala de bilhar conseguira encurralar o outro.

— Para o sul — respondi.

— Você vai me ligar, não vai?

A velha peidou bem alto, e os meninos pararam de brigar na sala de bilhar, vindo até a recepção.

— Claro...

— Eu te amo, Edward.

Os meninos arregaçaram as mangas, colocaram os braços junto à boca e começaram a imitar o som de peidos.

— Eu também.

A velha olhava para os caminhoneiros e para a chuva, enquanto os meninos dançavam à sua volta.

Coloquei o fone no gancho.

4 LUV.

Angelo’s Café, em frente à prefeitura de Morley, lotado.

Eu tomava meu segundo café, supercansado.

— Quer alguma coisa? — perguntou o sargento Fraser, que estava no balcão.

— Um café, por favor. Preto, com açúcar.

Olhei em volta e pude ler as manchetes nos jornais de quem estava por ali, tomando café da manhã.

Déficit de 434 milhões de libras na balança; Gasolina sobe 12%; Trégua de Natal do IRA; uma foto do novo Doutor Who; e Clare.

— Bom dia — disse Fraser, deixando um copo de café na minha frente.

— Obrigado. — Terminei de tomar o café anterior e experimentei um gole do novo.

— Falei com o médico-legista antes de vir. Ele disse que vai precisar adiar.

— Estavam se precipitando um pouco, de qualquer maneira.

Uma garçonete trouxe um café da manhã completo e deixou-o à frente do sargento.

— É... mas agora vem o Natal, a família, seria legal.

— Merda, claro. A família.

Fraser colocou a metade do prato no garfo.

— Você os conhece?

— Não.

— São adoráveis — disse Fraser, suspirando, movendo os ovos e os tomates e passando tudo sobre uma fatia de torrada.

— Sério? — perguntei, imaginando quantos anos teria Fraser.

— Vão liberar o corpo em pouco tempo, assim poderão fazer o funeral.

— Para livrar-se disso...

Fraser deixou faca e garfo na mesa e afastou o prato para o lado.

— Quinta-feira, eu acho que ouvi.

— Certo. Quinta-feira. — Eu não conseguia me lembrar se cremamos meu pai numa quinta ou sexta-feira.

O sargento Fraser recostou-se na cadeira.

— E quanto à tal ligação anônima?

Inclinei o corpo para a frente, baixando o tom da voz:

— Como eu disse. No meio da maldita noite...

— Vamos, Eddie.

Olhei para o sargento Fraser, para seus cabelos loiros, para os olhos azuis pálidos e para seu rosto avermelhado, notando um leve sotaque escocês e a aliança de casado num dedo. Ele parecia o garoto que se sentava a meu lado no laboratório de química do colégio.

— Posso confiar em você?

— Acho que seria melhor — ele respondeu, oferecendo-me um cigarro.

— Barry tinha uma fonte, você sabe. — E acendi um cigarro.

— O quê?

— Uma fonte.

Fraser deu de ombros.

— Vá em frente.

— Recebi uma ligação na redação, ontem à noite. Sem nomes, apenas disseram que fosse ao Gaiety, na Roundhay Road. Você conhece, certo?

— Não — ele respondeu, sorrindo. — Claro que conheço. Como saber se isso não estava armado?

— Barry tinha muitos contatos, conhecia muita gente.

— A que horas foi isso?

— Por volta das dez. Aliás, eu fui sozinho e me encontrei com o cara...

Fraser estava com os braços apoiados sobre a mesa, o corpo inclinado, sorrindo.

— Quem era ele?

— Um cara negro, sem nome. Disse que esteve com Barry no sábado à noite.

— Como ele era, fisicamente?

— Negro. — E peguei mais um cigarro do maço.

— Jovem? Velho? Baixo? Alto?

— Negro. Cabelos ondulados, nariz grande, lábios grossos. O que você quer que eu diga?

O sargento Fraser sorriu.

— Ele falou sobre Barry ter ou não bebido?

— Eu perguntei, e ele me disse que Barry tinha bebido um pouco, mas que não estava bêbado nem nada parecido.

— Onde foi isso?

Fiz uma pausa, pensando que nesse ponto estragara tudo, e respondi:

— No Gaiety.

— Alguma testumunha por lá? — Fraser pegou seu bloco de anotações e começou a escrever.

— As testemunhas do Gaiety, acho.

— Imagino que você não tenha obrigado nosso amigo negro a relatar qualquer dessas coisas a um membro do corpo policial local?

— Não.

— Então?

— Por volta das onze, mais ou menos, ele disse que Barry fora para Morley. E que isso tinha algo a ver com o assassinato de Clare Kemplay.

O sargento Fraser olhava por cima do meu ombro, observando a chuva e a prefeitura logo em frente.

— Como?

— Ele não sabe.

— Você acreditou nele?

— Por que não?

— Porra, ele está te enganando. Onze da noite de um sábado, após uma passagem pelo Gaiety?

— Foi o que ele disse.

— Certo. O que você acha que Gannon poderia saber para ir até lá, numa hora daquelas, num sábado à noite?

— Eu não sei. Só estou contando o que esse cara me disse.

— E isso é tudo? — perguntou o sargento Fraser, sorrindo. — Imaginei que você fosse um jornalista. Deveria ter perguntado mais coisas a ele.

Acendi outro cigarro.

— É. Mas estou lhe dizendo, ele não sabia de nada.

— Certo. Mas o que você acha que Gannon descobriu?

— Eu já lhe disse, não sei. Mas isso explica por que ele foi a Morley.

— Brass vai adorar saber disso — suspirou Fraser.

Uma garçonete se aproximou e levou embora os copos e o prato. O homem na mesa ao lado nos escutava, olhando para o retrato falado do Estuprador de Cambridge, que poderia ser qualquer pessoa.

Eu perguntei:

— Você conseguiu os nomes?

O sargento Fraser acendeu um cigarro e inclinou o corpo.

— Isso fica entre nós dois?

— Claro — respondi, pegando uma caneta e um pedaço de papel do meu paletó.

— Dois pedreiros, Terry Jones e James Ashworth. Estão trabalhando nas novas casas atrás da prisão Wakefield. É da Foster’s Construction, eu acho.

— Foster’s Construction — repeti, pensando em Donald Foster, Barry Gannon, uma conexão.

— Não tenho o endereço deles, e nem lhe daria se tivesse. Isso é tudo.

— Obrigado. Só mais uma coisa.

— O quê? — perguntou Fraser, levantando-se.

— Quem tem acesso às fotos e ao relatório da autópsia de Clare Kemplay?

— Por quê? — ele perguntou, sentando-se novamente.

— Só estou curioso. Quer dizer, um policial envolvido no caso poderia ter visto?

— Estão disponíveis, sim.

— Você viu?

— Eu não estou no caso.

— Mas deve ter formado parte da equipe de busca?

Fraser olhou para o próprio relógio.

— Sim, mas o departamento de Homicídios fica fora de Wakefield.

— Então você não saberia dizer quando tudo isso foi disponibilizado pela primeira vez?

— Por quê?

— Só queria conhecer os procedimentos. Fico curioso.

Fraser voltou a se levantar.

— Não são perguntas pertinentes, Eddie. — Depois sorriu, piscou o olho e disse: — Melhor eu ir embora. Nos vemos do outro lado da rua.

— Certo.

O sargento Fraser abriu a porta do café e depois olhou para trás.

— Não desapareça, certo?

— Ah, claro que não.

— E não escreva nada. — Ele abriu um meio sorriso.

— Nenhuma palavra — murmurei, dobrando o pedaço de papel.


Gaz do “Esportes” subia a escadaria da prefeitura.

Eu fumava meu último cigarro, sentado nos degraus.

— Que merda você está fazendo aqui?

— Isso é muito charmoso, certo? — disse Gaz, abrindo seu sorriso sem dentes. — Eu sou uma testemunha.

— Sério?

O sorriso desaparecera.

— Sério. Eu devia ter me encontrado com Baz no domingo, mas ele não apareceu.

— Isso vai ser adiado, sabe?

— Você está de brincadeira? Por quê?

— A polícia ainda não sabe o que ele estava fazendo no domingo à noite — respondi, oferecendo um cigarro a Gaz e acendendo outro para mim.

Gaz pegou o cigarro solenemente e o acendeu.

— Mas sabem que está morto, certo?

Eu fiz que sim e disse:

— O funeral será na quinta-feira.

— Merda. Tão rápido assim?

— É.

Gaz respirou fundo e depois raspou o pé num dos degraus.

— Viu o chefe?

— Ainda não passei por lá.

Ele jogou o cigarro fora e olhou para o chão.

— Melhor ir rápido.

— Vou esperar por aqui. Caso precisem de mim, saberão onde estou.

— Certo...

— Ouça — eu disse, chamando-o. — Você sabe alguma coisa sobre Johnny Kelly?

— Porra — disse Gaz. — Um cara no Inns, ontem à noite, disse que Foster cortaria um dobrado por conta dele.

— Foster?

— Don Foster. Presidente do Trinity.

Eu me levantei.

— Don Foster é presidente do Wakefield Trinity?

— Claro. Onde você se meteu?

— Que maldita perda de tempo. — Trinta minutos mais tarde, Gaz do “Esportes” descia a escadaria da prefeitura com Bill Hadden.

— Mas essas coisas não podem ser feitas com pressa, Gareth — dizia Hadden, estranho sem a presença de uma mesa à sua frente.

Eu me levantei do degrau frio e cumprimentei os dois.

— Pelo menos poderão seguir em frente com o funeral.

— Bom dia, Edward — disse Hadden.

— Bom dia. Você tem um minuto?

— A família parece estar levando tudo isso bem melhor do que você imagina — disse Gaz, baixando a voz e olhando para os degraus.

— Foi o que escutei — eu comentei.

— É um pessoal bem durão. Você quer conversar? — perguntou Hadden, pousando uma das mãos em meu ombro.

— Nos vemos mais tarde — disse Gaz do “Esportes”, descendo dois degraus por vez, aproveitando para dançar um pouco.

— E o Cardiff City? — perguntou-lhe Hadden.

— Vamos acabar com eles, chefe — respondeu Gaz.

Hadden sorria.

— Que entusiasmo!

— É verdade — eu disse.

— O que você queria me dizer, então? — perguntou Hadden, abrindo os braços contra o ar frio.

— Pensei em falar com os dois homens que encontraram o corpo, amarrar a versão deles com a história da médium, e um pouco com a história de Devil’s Ditch — respondi, rapidamente, como se não tivesse mais de trinta segundos para pensar em tudo isso.

Hadden começou a mexer na barba, o que sempre significava más notícias.

— Interessante. Muito interessante.

— Você acha?

— Sim, menos o tom, que me preocupa um pouco.

— O tom?

— Sim. Essa médium, essa cartomante, isso tem mais a ver com pano de fundo. Material para suplemento. Mas os homens que encontraram o corpo, eu não sei...

Olhei bem no rosto dele.

— Mas você disse que ela sabe o nome do assassino. Isso não é pano de fundo, não é história para suplemento, isso é manchete de primeira página.

Hadden, sem levantar a voz, perguntou:

— Quer falar com eles hoje?

— Queria ir agora mesmo, já que tenho de ir a Wakefield de qualquer maneira.

— Certo — disse Hadden, seguindo em direção ao seu Rover. — Quero que me traga tudo isso hoje, às cinco, e amanhã discutiremos.

— Certo — eu gritei, olhando para o relógio de meu pai.

Com um Leeds e Bradford de A a Z aberto no colo e minhas anotações no banco do passageiro, dirigia pelas ruas de Morley.

Virei na Victoria Road e desci lentamente, parando bem na interseção da Rooms Lane com a Church Street.

Barry devia estar vindo na outra direção, seguindo para a Wakefield Road ou para a M62. O caminhoneiro devia estar no sinal da Victoria Road, esperando para virar à direita na Rooms Lane.

Dei uma olhada em minhas anotações, rapidamente, e voltei à primeira página.

Bingo.

Liguei o carro, esperando o sinal abrir.

À minha esquerda, do outro lado do cruzamento, uma igreja escura, e ao lado dela a Morley Grange Junior and Infants.

O sinal abriu, eu ainda lia:

“No cruzamento da Rooms Lane com a Victoria Road, Clare disse adeus a seus amigos e foi vista pela última vez caminhando pela Victoria Road em direção a sua casa...”

Clare Kemplay.

Vista pela última vez.

Adeus.

Atravessei o cruzamento, um caminhão do Co-op esperava para virar à direita na Rooms Lane.

Barry Gannon.

Visto pela última vez.

Adeus.

Desci lentamente a Victoria Road, com os carros buzinando atrás de mim. Clare caminhava a meu lado, na calçada, com sua capa de chuva laranja e suas galochas.

“Vista pela última vez caminhando pela Victoria Road em direção a sua casa...”

Sports Ground, Sandmead Close, Winterbourne Avenue.

Clare estava parada na esquina da Winterbourne Avenue, acenando.

Fiz um sinal para a esquerda e entrei na Winterbourne Avenue.

Era uma rua sem saída, com seis casas geminadas antigas, e outras três casas novas, independentes.

Um policial estava de pé sob a chuva, à frente do número 3.

Parei em frente a uma das casas novas e virei o carro para o outro lado.

Olhei para o número 3 da Winterbourne Avenue.

Cortinas fechadas.

O motor do Viva afogou.

Uma cortina se moveu.

A senhora Kemplay, de braços cruzados, apareceu na janela.

O policial olhou para o relógio.

Eu fui embora.

Foster’s Construction.

O canteiro de obras ficava atrás da prisão Wakefield, a alguns metros de Devil’s Ditch.

Era a hora de almoço de uma chuvosa terça-feira de dezembro, e aquele local estava silencioso como uma tumba.

Ouvi uma música baixa no ar úmido, Dreams are Ten a Penny.

Segui meus ouvidos.

— Oi — disse, abrindo a porta de lona encerada de uma casa ainda sem terminar.

Quatro homens comiam sanduíches e tomavam chá em cantis de plástico.

— Posso ajudar? — disse um deles.

— Está perdido? — perguntou outro.

— Na verdade, estou atrás de...

— Nunca ouvi falar nessa gente — disse um deles.

— Você é jornalista? — perguntou outro.

— Pareço?

— Sim — responderam todos.

— Bem... vocês sabem onde eu poderia encontrar Terry Jones e James Ashworth?

Um homem grandalhão vestindo capa de chuva se levantou, engolindo a metade de um pedaço de pão.

— Eu sou Terry Jones.

Estiquei a mão.

— Eddie Dunford, do Yorkshire Post. Podemos trocar uma palavra?

Ele ignorou minha mão estendida.

— Vai me pagar?

Todos riram.

— Podemos conversar sobre isso.

— Pode se mandar caso não esteja disposto — disse Terry Jones, levantando mais risos.

— Estou falando sério.

Terry Jones suspirou e sacudiu a cabeça.

— Ainda tem gente com nervos de aço por aí — disse um dos homens.

— Pelo menos é de um jornal local — disse outro.

— Vamos — disse Terry Jones, antes de abrir a boca para terminar seu chá.

— Garanta que ele vai liberar o dinheiro — gritou um dos homens enquanto seguíamos para o lado de trás.

— Já vieram muitos jornais por aqui? — perguntei, oferecendo um cigarro a Terry Jones.

— Os caras disseram que veio um fotógrafo do Sun, mas nós estávamos lá na delegacia de Wood Street.

Havia uma movimentação no ar, e eu apontei para outra casa ainda em construção. Terry Jones fez que sim e seguiu na frente.

— A polícia demorou muito com você?

— Não, não muito. Mas em coisas assim eles não vão se arriscar, certo?

— E James Ashworth?

Ficamos de pé na porta, pois assim não seríamos alcançados pela chuva.

— O que tem ele?

— Ficaram muito tempo com ele?

— A mesma coisa.

— Ele está por aqui?

— Está doente.

— Sério?

— Tem algo aí.

— Sério?

— Sério. — Terry Jones atirou seu cigarro no chão e amassou-o com a ponta da bota, dizendo: — O mestre está fora desde quinta-feira, Jimmy não veio ontem nem hoje, uns dois caras não vieram na semana passada.

— Quem a encontrou, você ou Jimmy?

— O Jimmy.

— Onde ela estava? — perguntei, olhando para a lama.

Terry Jones cuspiu e disse:

— Vou te mostrar.

Caminhamos em silêncio pelo canteiro de obras, em direção à área de dejetos que seguia rente à estrada Wakefield-Dewsbury. Uma fita azul e branca da polícia cercava a vala. Do outro lado, rente à estrada, dois policiais estavam sentados em uma viatura. Um deles olhou para nós e fez um sinal para Terry Jones.

Ele acenou de volta.

— Há quanto tempo isso está assim?

— Não tenho ideia.

— Havia barracas por toda a área até ontem à noite.

Eu olhava para Devil’s Ditch, para os carrinhos de bebê destruídos e para as bicicletas, os fogões e as geladeiras. Folhas e lixo por toda parte impossibilitavam que se visse o fundo.

— Você viu? — perguntei.

— Vi.

— Merda.

— Ela estava deitada num carrinho de bebê.

— Num carrinho de bebê?

Ele olhava ao longe, bem longe.

— A polícia levou o carrinho. Ela estava... Porra...

— Eu sei — e fechei os olhos.

— A polícia pediu que não contássemos a ninguém.

— Eu sei, eu sei.

— Mas porra... — Ele lutava contra um nó na garganta, seus olhos estavam marejados.

Ofereci outro cigarro.

— Eu sei. Vi as fotos da autópsia.

Ele apontou, com o cigarro ainda apagado, para uma marca no chão.

— Uma das asas estava ali, próxima ao topo.

— Puta que pariu.

— Eu rezaria para não ter visto nada disso.

Olhei para Devil’s Ditch, e as fotos que estavam pregadas na parede do Redbeck Café voltaram à minha mente.

— Se pelo menos fosse outra pessoa — ele murmurou.

— Onde mora Jimmy Ashworth?

Terry Jones olhou para mim.

— Não acho que seria boa ideia.

— Por favor.

— Ele está mal. É apenas um rapaz.

— Poderia ajudá-lo a falar — eu disse, olhando para um carrinho de bebê azul pouco adiante.

— Bobagem — ele disse, fungando.

— Por favor.

— Fitzwilliam — disse Terry Jones, virando-se e se afastando.

Eu me ajoelhei, ficando abaixo da fita policial, inclinando o corpo para dentro de Devil’s Ditch, ao lado da raiz de uma árvore morta, e peguei uma pena branca presa num mato.

Uma hora para matar.

Eu passava de carro pela Queen Elizabeth Grammar School, depois estacionei e voltei caminhando para Wakefield, sob a chuva, aumentando a velocidade do passo ao cruzar a escola.

Cinquenta minutos para matar.

Sendo terça-feira, tive de passar pelo mercado de peças de segunda mão, fumando e ficando ensopado por causa da chuva, olhando para os carrinhos de bebê e para as bicicletas das crianças, e também para tudo o que restara das casas dos mortos.

O Indoor Market fedia a roupas molhadas, e ainda estava ali a banca de livros onde antes ficava a Joe’s Books.

Olhei para o relógio de meu pai, depois para a pilha de velhos quadrinhos de super-heróis.

Quarenta minutos para matar.

Todos os sábados de manhã, durante três anos, eu e meu pai tomávamos o 126 às sete e meia, na rodoviária de Ossett; meu pai lendo o Post, falando sobre futebol e críquete, com as sacolas de compras vazias no colo, enquanto eu sonhava com a pilha de quadrinhos que sempre comprava para ajudar Joe.

Todos os sábados de manhã, até aquele sábado em que o Velho Joe não abriu e eu fiquei lá, de pé, esperando, com meu pai chegando com duas sacolas cheias de compras. Em cima, o queijo embrulhado em papel.

Trinta e cinco minutos para matar.

Na Acrópolis, em Westgate, onde eu antes fantasiava com a garçonete, me forcei a comer um prato de torta Yorkshire e caldo de cebola; logo depois vomitei tudo no banheiro dos fundos — no mesmo banheiro em que eu antes fantasiava finalmente conseguir comer a garçonete chamada Jane.

Vinte e cinco minutos para matar.

Do lado de fora, sob a chuva, segui pela Bullring, passando pelo Strafford Arms, o pub mais duro do norte, depois pelo salão de cabeleireiros onde minha irmã trabalhava meio período e onde conhecera Tony.

Vinte e cinco minutos para matar.

No Silvio’s, o café preferido de minha mãe e local onde eu me encontrava secretamente com Rachel Lyons depois da escola, pedi uma bomba de chocolate.

Peguei meu bloco de anotações molhado e comecei a ler as escassas linhas sobre Mystic Mandy:

O futuro, assim como o passado, está escrito. Não pode ser alterado, mas pode ajudar a curar as feridas do presente.

Eu me sentei na janela e fiquei olhando para Wakefield.

Futuro do passado.

Chovia tão forte que toda a cidade parecia sob a água. Eu até gostaria que fosse verdade, que a água pudesse arrastar as pessoas e lavar aquele lugar.

Eu já matara todo o tempo que tinha.

Tomei uma xícara de chá quente, deixei a bomba por lá e segui para St. Johns, com uma folha de chá presa no lábio e uma pena no bolso.

A Blenheim Road era uma das ruas mais bonitas de Wakefield, com árvores grandes e fortes e casas também robustas com seus pequenos jardins.

O número 28 não era uma exceção; era uma casa antiga que fora subdividida em apartamentos.

Caminhei em direção à casa, evitando as poças de água, e entrei. As janelas do hall e da escada eram de vitrô, e tudo ali cheirava a igrejas velhas no inverno.

O número 5 estava no primeiro andar, à direita.

Dei uma olhada no relógio de meu pai e toquei a campainha, que soou como Tubular Bells, e fiquei pensando em O exorcista quando a porta se abriu.

Uma mulher de meia-idade, vinda das páginas do Yorkshire Life, vestindo blusa e saia campestres, esticou a mão.

— Mandy Wymer — ela disse, e apertamos as mãos brevemente.

— Edward Dunford. Do Yorkshire Post.

— Entre, por favor.

Ela pressionou o corpo contra a parede enquanto eu passava, deixando a porta entreaberta ao me seguir pelo hall de entrada, cheio de quadros escuros, em direção à grande sala na penumbra, pois, embora tivesse janelas grandes, elas estavam bloqueadas pelas frondosas árvores da rua. Havia uma bandeja com comida para animais num canto, e a sala cheirava a isso.

— Sente-se, por favor — ela disse, apontando para o grande sofá num canto da sala, forrado com tecido tie-dye.

A aparência conservadora daquela mulher não combinava com a decoração oriental-hippie nem com sua profissão. E tal pensamento eu não fui capaz de disfarçar.

— Meu ex-marido era turco — ela disse, rapidamente.

— Ex? — perguntei, ligando o gravador em meu bolso.

— Ele voltou para Istambul.

Eu não resisti.

— Você não sentiu que ele faria isso?

— Sou médium, senhor Dunford, não adivinho o futuro.

Eu me sentei numa ponta do sofá, sentindo-me um babaca, incapaz de pensar ou dizer qualquer coisa.

Finalmente, perguntei:

— Não estou dando uma boa impressão, certo?

A senhora Wymer se levantou rapidamente da poltrona:

— Aceita um chá?

— Seria bom, se não for incomodar...

Ela praticamente saiu correndo da sala, parando de repente na porta, como se estivesse a ponto de pisar num chão de vidro.

— Você cheira a lembranças ruins, um cheiro forte — ela disse, em tom calmo, de costas para mim.

— O quê?

— Cheiro de morte — ela disse, parada na porta, tremendo, pálida, com a mão presa no batente da porta.

— Você está bem? — eu perguntei, levantando do sofá.

— Acho que seria melhor se você fosse embora — ela murmurou, caindo.

— Senhorita Wymer...

Corri em sua direção.

— Por favor! Não!

Eu me aproximei, querendo tocá-la.

— Senhorita Wymer...

— Não me toque!

Eu me afastei, ela se encolhia.

— Sinto muito — eu disse.

— É tão forte! — ela gemia, não falava.

— O quê?

— Te envolve por completo.

— O que é? — gritei, com raiva, pensando em BJ e naqueles dias e noites passados em quartos alugados com a mente perturbada. — O que é?

— A morte dela.

De repente o ar ficou pesado e perverso.

— Que merda é essa que você está dizendo? — Eu me aproximava dela, com o sangue esquentando minhas orelhas.

— Não! — ela gritava, arrastando a bunda em direção ao hall, com braços e pernas esticados, a saia subindo. — Deus, não!

— Cala a boca! Cala a boca! — eu gritava, seguindo-a.

Ela se levantou, trêmula, implorando:

— Por favor, por favor, por favor, me deixe em paz!

— Espere!

Ela entrou num quarto e fechou a porta na minha cara, prendendo um dos dedos da minha mão esquerda por um segundo.

— Maldita! — eu gritei, socando e chutando a porta trancada. — Sua puta louca!

E parei, colocando meus dedos latejantes na boca e sugando-os.

O apartamento ficou em silêncio.

Apoiei a cabeça contra a porta e, mais calmo, pedi:

— Por favor, senhorita Wymer...

Mas ouvi soluços assustados do outro lado.

— Por favor, precisamos conversar.

Ouvi o som de móveis sendo arrastados, de uma cômoda e um armário sendo postos atrás da porta.

— Senhorita Wymer?

Uma voz ecoou entre camadas e camadas de madeira e portas, como uma criança que sussurrasse a um amigo embaixo de cobertas:

— Conte a eles sobre os outros...

— O quê?

— Por favor, conte a eles sobre os outros.

Eu me apoiei na porta, com lábios quase encostados à madeira:

— Que outros?

— Os outros.

— Que outros, porra? — gritei, mexendo furioso na maçaneta.

— Todos os outros debaixo desses lindos novos carpetes.

— Cala a boca!

— Sobre a grama que cresce entre as rachaduras e pedras.

— Cala a boca! — Bati com os punhos na madeira, e comecei a sangrar.

— Conte a eles. Por favor, conte a eles onde estão.

— Cala a boca! Cale a boca, porra!

Deixei a cabeça encostada à porta, o barulho desapareceu, o apartamento ficou em silêncio.

— Senhorita Wymer? — murmurei.

Silêncio, silêncio total.

Quando saí do apartamento, chupando o sangue de minhas mãos, vi que a porta se abria lentamente.

— Fique longe disso — gritei, correndo pela escada.

Cento e cinquenta quilômetros por hora, assombrado.

Afundando o pé na M1, exorcizando os fantasmas do passado e do presente em Wakefield.

Pelo espelho retrovisor, um Rover verde seguia na minha cola. Eu, paranoico, pensando que poderia ser um carro de polícia à paisana.

Com os olhos voltados para o céu, dirigindo de maneira insana, dentro da barriga de uma baleia. O céu fazia as vezes de pele cinzenta, as árvores escurecidas fazendo as vezes de costelas, uma prisão úmida.

No espelho retrovisor, o Rover se aproximava.

Peguei a saída para Leeds, bem próxima aos restos do acampamento cigano. As caravanas queimadas formavam uma espécie de círculo pagão para a morte daquele povo.

No espelho retrovisor, o Rover verde seguia para o norte.

Sob os arcos da estação, quando estacionava o Viva, dois corvos pretos comiam algo de um saco plástico preto, arrasando a carne jogada fora, e seus gritos ecoavam no escuro daquela temporada de peste.

Dez minutos mais tarde eu estava em minha mesa.

Disquei o número da Directory Enquiries, depois o de James Ashworth, depois o de BJ.

Ninguém atendeu, todos faziam as compras de Natal.

— Você está com uma aparência terrível — disse Stephanie, cheia de pastas nas mãos, gorda pra caralho.

— Estou bem.

Stephanie ficou de pé ali, na frente de minha mesa, esperando.

Olhei para o único cartão de Natal em minha mesa, tentando evitar as imagens de Jack Whitehead.

— Falei com Kathryn ontem à noite.

— E?

— Você não se importa mesmo? — Ela já estava nervosa.

Então era isso.

— Meus sentimentos não são da sua conta.

Ela não se mexeu, ficou parada ali, movendo o peso de um pé para o outro, com os olhos cheios de lágrimas.

Eu me senti mal e disse:

— Sinto muito, Steph.

— Você é um porco. Um porco nojento.

— Sinto muito. Como ela está?

Ela fazia que não com sua cabeça gorda, movendo seus pensamentos gordos.

— Não é a primeira vez, certo?

— O que Kathryn disse?

— Já aconteceram outras, certo?

Outras, sempre as malditas outras.

— Você sabe, Eddie Dunford — ela continuou falando, inclinando o corpo sobre a mesa, com seus braços que pareciam coxas. — Você sabe.

— Cale a boca — eu disse, em tom baixo.

— Quantas, hein?

— Fique fora disso, sua puta gorda.

Aplausos do outro lado do escritório, punhos batidos contra mesas, pés batendo forte no chão.

Olhei para o cartão de Kathryn.

— Seu porco! — ela xingou.

Ergui os olhos, mas ela já não estava ali, tinha ido embora.

Do outro lado da redação, avistei George Greaves e Gaz erguendo seus cigarros, me saudando, com os dedos para cima.

Eu também ergui o meu, com sangue fresco saindo das juntas.

Cinco em ponto.

— Ainda preciso falar com o outro, com James Ashworth. Foi ele quem encontrou o corpo.

Hadden ergueu os olhos de sua pilha de cartões de Natal. Colocou o maior deles no topo e comentou:

— Isso me parece pouco.

— Ela ficou louca.

— Você conseguiu uma declaração dos policiais?

— Não.

— Talvez seja melhor assim — ele disse, suspirando e voltando a olhar para os cartões.

Eu estava cansado, sem dormir, com fome, sem comida, e aquela sala estava pra lá de quente. Tudo era excessivamente real.

Hadden olhava para mim.

— Algo novo hoje? — perguntei, com a boca repentinamente cheia de água.

— Nada que valha a pena ser impresso. Jack está fora, num dos seus...

Engoli em seco.

— Num dos seus...?

— Ele está escondendo o jogo, vamos dizer assim.

— Tenho certeza de que está fazendo o melhor possível.

Hadden devolveu o rascunho do meu texto.

Abri a pasta que tinha sobre o colo, guardando uma folha e pegando outra.

— E depois tem isto.

Hadden pegou a folha da minha mão e empurrou os óculos para cima no nariz.

Fiquei olhando para fora da janela logo atrás dele, com o reflexo das luzes amareladas do escritório sobre a escura e úmida Leeds.

— Cisnes mutilados, certo?

— Como eu tenho certeza que você já sabe, ocorreram várias mutilações de animais.

Hadden suspirou, suas bochechas ficaram vermelhas.

— Eu não sou estúpido. Jack me mostrou a autópsia.

Eu podia ouvir pessoas rindo em outra parte do edifício.

— Sinto muito — eu disse.

Hadden tirou os óculos e coçou a ponta do nariz.

— Você está se esforçando muito.

— Sinto muito — voltei a dizer.

— Você é como Barry. Ele sempre...

— Eu não ia mencionar a autópsia nem Clare.

Hadden ficou de pé, caminhando pela sala.

— Você não pode simplesmente escrever coisas imaginando tratar-se da maldita verdade.

— Eu nunca faço isso.

— Não sei... — ele dizia, olhando para a noite. — É como se você simplesmente atirasse num arbusto, pois talvez, lá atrás, exista algo interessante a ser eliminado.

— Sinto muito que você pense assim — eu disse.

— Existem várias maneiras de matar um gato, e você sabe.

— Eu sei.

Hadden ficou de costas.

— Arnold Fowler trabalhou vários anos para nós.

— Eu sei.

— Você não vai querer assustar aquele pobre homem com suas histórias de terror.

— Eu nunca faria isso.

Hadden sentou-se e suspirou bem alto.

— Consiga algumas declarações. Dê um tom pessoal e não mencione o maldito caso Clare Kemplay.

Eu me levantei, a sala ficou escura de repente, mas depois a luz voltou a se acender.

— Obrigado.

— Vamos publicar isso na quinta-feira. Violência contra animais.

— Claro. — E abri a porta, em busca de ar, de apoio e de uma saída.

— Como os pobres pôneis.

Corri para o banheiro, com o intestino revirado.

— Alô. Poderia falar com Kathryn, por favor?

— Não.

A redação estava em silêncio, e eu quase terminara o que tinha a fazer.

— Sabe me dizer quando voltará?

— Não.

Eu desenhava asas e rosas em meu mata-borrão. Deixei a caneta sobre a mesa.

— Poderia dizer que Edward ligou?

E desligaram.

Rabisquei “O meio e a mensagem” no topo do artigo com uma esferográfica, depois um ponto de interrogação e acendi um cigarro.

Após algumas tragadas, arranquei uma folha de meu bloco de anotações e fiz duas listas. Na parte mais baixa da folha, escrevi Dawson e sublinhei.

Eu me sentia cansado, com fome e completamente perdido.

Fechei os olhos contra a luz dura da redação e o ruído que tomava conta de meus pensamentos.

Precisei de alguns instantes para notar que o telefone tocava.

— Alô, aqui fala Edward Dunford.

— Eu sou Paula Garland.

Endireitei o corpo na cadeira, coloquei os cotovelos sobre a mesa, para sustentar o peso do telefone e de minha cabeça.

— Sim?

— Ouvi dizer que esteve com Mandy Wymer hoje.

— Sim, mais ou menos. Como você ficou sabendo?

— Paul.

— Certo. — Eu não sabia o que dizer.

Seguiu-se uma longa pausa, depois ela disse:

— Preciso saber o que ela lhe disse.

Eu estava ereto na cadeira, trocando o fone de mão e limpando o suor em minha calça.

— Senhor Dunford?

— Na verdade, ela não disse muita coisa.

— Por favor, senhor Dunford. Ela não disse nada?

Eu tinha o fone preso entre o ouvido e o queixo, olhava para o relógio de meu pai e metia “O meio e a mensagem” num envelope.

E disse:

— Vamos nos encontrar no Swan. Dentro de uma hora?

— Obrigada.

Desci o corredor, em direção aos arquivos.

Passeei entre as pastas, cruzei indicadores, decifrei tudo.

Olhei para o relógio de meu pai: oito e cinco da noite.

Voltei no tempo:

Julho de 1969, aterrisagem na Lua, pequenos passos, grandes saltos.

12 de julho de 1969, Jeanette Garland, 8, desaparecida.

13 de julho, “Pedido emocionado de uma mãe”.

14 de julho, recurso do detetive superintendente Oldman.

15 de julho, polícia repassa os últimos pequenos passos de Jeanette.

16 de julho, polícia reforça buscas.

17 de julho, polícia se desconcerta.

18 de julho, polícia desmobiliza busca.

19 de julho, “Médium entra em contato com a polícia”.

Pequenos passos, grandes saltos.

17 de dezembro de 1974, um caderno cheio de citações rabiscadas.

Olhei para o relógio de meu pai: oito e meia.

Estava sem tempo.

The Swan, Castleford.

Eu estava no bar, pedindo uma cerveja e um uísque.

O local estava movimentado por conta do Natal, cheio de trabalhadores, todos cantando junto ao juke-box.

Senti um toque em meu cotovelo.

— Um desses é para mim?

— Qual você prefere?

A senhora Paula Garland pegou o uísque e abriu caminho entre a multidão, seguindo em direção à máquina de vender cigarros. Colocou a bolsa e o copo em cima da máquina.

— Você vem sempre aqui, senhor Dunford? — ela perguntou, sorrindo.

— Edward, por favor. — E coloquei meu copo sobre a máquina. — Não, não muito.

Ela sorriu e me ofereceu um cigarro.

— É a primeira vez?

— Segunda — respondi, pensando na última vez.

Ela acendeu meu cigarro.

— Nem sempre está assim tão cheio.

— Você vem sempre aqui?

— Está tentando me seduzir, senhor Dunford? — Ela sorria.

Soprei a fumaça logo acima do rosto dela e sorri.

— Eu costumava vir muito aqui — ela disse, mas o sorriso desaparecera de repente.

Eu não sabia o que dizer e acabei comentando:

— Parece um lugar legal.

— E é mesmo. — Ela pegou o drinque.

Tentei não olhar, mas sua pele era muito pálida contra o suéter vermelho, e a gola alta fazia sua cabeça parecer muito pequena e frágil.

E, ao tomar o uísque, pontos vermelhos surgiram em suas bochechas, deixando-a com a aparência de quem fora golpeada.

Paula Garland tomou mais um bom gole, esvaziando o copo.

— Sobre domingo. Eu...

— Esqueça. Foi um erro. Mais um? — perguntei, tudo muito rápido.

— Agora não.

— É só pedir.

Elton John tomou o lugar de Gilbert O’Sullivan.

Nós dois demos uma olhada no pub, sorrindo ao ver os chapéus de festa e os arranjos de Natal.

Paula disse:

— Você esteve com Mandy Wymer, certo?

Acendi mais um cigarro, meu estômago revirava.

— Sim.

— Por quê?

— Ela disse ter avisado à polícia onde poderiam encontrar o corpo de Clare Kemplay.

— E você não acreditou nela?

— Dois operários encontraram o corpo.

— O que ela disse?

— Eu não tive tempo de perguntar.

Paula Garland deu uma boa tragada no cigarro, depois perguntou:

— Ela sabe quem foi?

— Ela disse saber.

— Mas não disse nomes?

— Não.

Ela brincava com seu copo vazio, girando-o em cima da máquina.

— Mencionou Jeanette?

— Não sei.

— Você não sabe? — Seus olhos estavam cheios de lágrimas.

— Disse algo sobre “os outros”, nada mais.

— O quê? O que foi que ela disse?

Dei uma olhada em volta. Estávamos praticamente murmurando, mas eu não conseguia ouvir mais nada, como se o resto do mundo tivesse sido desligado.

— Ela disse que eu deveria “contar a eles sobre os outros”, depois falou sobre carpetes e grama entre as pedras.

Paula Garland ficou de costas para mim, com os ombros trêmulos.

Coloquei a mão em seu ombro.

— Sinto muito.

— Não, você não sente muito, senhor Dunford — ela disse, olhando para o papel de parede vermelho. — Você foi muito gentil em vir até aqui, mas eu preciso ficar sozinha agora.

Paula Garland pegou a bolsa e os cigarros. Quando virou o rosto, havia linhas negras dos olhos até a boca.

Estiquei o braço, bloqueando sua passagem.

— Não acho que seja boa ideia.

— Por favor — ela insistiu.

— Pelo menos deixe que eu a leve para casa.

— Não, obrigada.

Ela passou rente ao meu lado, vencendo a multidão e chegando à porta.

Terminei a cerveja e peguei meus cigarros.

Brunt Street, a escura linha de casas geminadas diante das novas casas do lado oposto, mais claras. Poucas luzes dos dois lados da rua.

Estacionei do lado mais novo, em frente ao número 11, e fiquei contando as árvores de Natal enquanto esperava.

Havia uma árvore, mas sem luzes, no número 11.

Nove árvores e cinco minutos mais tarde, ouvi suas altas botas marrons. Observei, do meu assento no carro, Paula Garland abrir a porta vermelha e entrar.

Nenhuma luz foi acesa no número 11.

Eu me sentei no Viva, observando e imaginando o que dizer caso ousasse bater na porta vermelha.

Dez minutos mais tarde, um homem com boné e segurando um cachorro saiu de uma das casas novas e atravessou a rua. Ele girou o corpo e olhou para meu carro, ao mesmo tempo que o cachorro fazia cocô em frente às casas mais antigas.

As luzes do número 11 continuavam apagadas.

Liguei o carro.

Com a boca cheia de óleo por conta de um prato de batatas fritas que comera no Redbeck, coloquei um punhado de moedas em cima do telefone público e disquei.

— Diz.

— Você avisou BJ que liguei?

Via os mesmos jovens brincando na sala de bilhar.

— Ele deixou uma mensagem. Vai te ligar de volta à meia-noite.

Desliguei.

Chequei a hora no relógio de meu pai: onze e trinta e cinco.

Peguei o fone e disquei novamente.

No terceiro toque, desliguei.

Foda-se.

Fiquei sentado numa das poltronas marrons da recepção, esperando. Era a mesma cadeira onde a velha peidara naquela manhã. As batidas dos tacos de sinuca e os gritos dos jovens me mantinham acordado.

À meia-noite em ponto eu estava de pé, ao lado do telefone, antes que um daqueles meninos resolvesse ligar.

— Alô?

— Ronald Gannon? — perguntou BJ.

— Sou eu, Eddie. Recebeu minha mensagem?

— Recebi.

— Preciso da sua ajuda e quero ajudá-lo.

— Você não parecia tão decidido naquela noite.

— Sinto muito.

— Deveria mesmo... Tem uma caneta?

— Tenho — respondi, buscando nos bolsos.

— Talvez queira conversar com Marjorie Dawson. Ela está na Casa de Repouso Hartley, em Hemsworth, desde domingo, desde o momento em que se encontrou com Barry.

— Como você descobriu isso?

— Eu conheço muita gente.

— Quero saber quem lhe contou.

— Assim não vai conseguir...

— Porra, BJ. Eu preciso saber.

— Não posso dizer.

— Porra.

— Mas posso lhe dizer uma coisa: vi Jack Whitehead saindo do Gaiety, ele parecia nervoso. Você deveria tomar cuidado, querido.

— Você conhece Jack?

— A gente se esbarra por aí.

— Obrigado.

— Pode mencionar isso — ele disse, rindo, e desligou.

Acordei três vezes por culpa do mesmo sonho, estava no chão do quarto 27.

Todas as vezes eu pensava: estou seguro agora, estou seguro agora, volte a dormir.

Todas as vezes o mesmo sonho: Paula Garland em Brunt Street, apertando um cardigã vermelho ao redor do corpo, jogando seus dez anos de sofrimento na minha cara, chorando.

Todas as vezes um grande corpo preto surgia do céu cinzento e atacava seus sujos cabelos loiros.

Todas as vezes eu corria atrás dela na rua, atrás dos seus olhos.

Todas as vezes eu ficava paralisado, acordando no chão, congelado.

Todas as vezes a luz da Lua entrava no quarto, com as sombras fazendo as fotos presas à parede recobrar a vida.

Da última vez, escorria sangue nas janelas.