11
Nós pulávamos num rio, de mãos dadas.
A água estava fria.
Eu soltei sua mão.
Abri os olhos.
Aquilo tinha gosto de manhã.
Eu estava deitado ao lado da estrada, sob a chuva, e Paula estava morta.
Eu me sentei, com a cabeça quebrada, o corpo dormente.
Um homem saía de um carro parado um pouco adiante.
Olhei para os campos marrons e vazios e tentei me levantar.
O homem veio correndo na minha direção.
— Eu quase te matei!
— Onde estou?
— O que aconteceu com você?
Uma mulher estava de pé na porta do passageiro, olhando para nós.
— Um acidente. Onde estou?
— Doncaster Road. Você quer que a gente chame uma ambulância ou algo parecido?
— Não.
— A polícia?
— Não.
— Você não parece estar nada bem.
— Pode me dar uma carona?
O homem olhou para a mulher de pé ao lado do carro.
— Para onde?
— Conhece o Redbeck Café, no caminho para Wakefield?
— Sim — ele disse, olhando para mim, depois novamente para o carro. — Tudo bem.
— Obrigado.
E caminhamos lentamente em direção ao carro.
Eu entrei na parte de trás.
A mulher estava sentada na frente, olhando para a frente. Seus cabelos eram loiros, parecidos com os de Paula, porém mais compridos.
— Ele sofreu um acidente. Vamos levá-lo mais à frente — disse o homem à mulher, ligando o carro.
O relógio do carro marcava seis horas.
— Desculpe — eu disse. — Que dia é hoje?
— Segunda-feira — disse a mulher, sem olhar para trás.
Eu olhei para os campos marrons e vazios.
Segunda-feira, 23 de dezembro de 1974.
— Então amanhã é véspera de Natal?
— É — ela respondeu.
O homem me olhava pelo retrovisor.
Eu olhei para os campos marrons e vazios.
— Aqui? — perguntou o homem, parando na frente do Redbeck.
— Sim. Obrigado.
— Tem certeza de que não quer ir a um médico ou algo parecido?
— Sim, tenho certeza. Obrigado — respondi, saindo do carro.
— Adeus, então — disse o homem.
— Adeus, e muito obrigado — eu disse, fechando a porta.
A mulher continuava olhando para a frente enquanto se afastavam.
Atravessei o estacionamento, driblando as poças de lama com água de chuva e óleo, seguindo em direção aos quartos do hotel.
A porta do quarto 27 estava com uma fresta aberta.
Eu fiquei de pé, ouvindo.
Silêncio.
Abri a porta.
O sargento Fraser, de uniforme, dormia em meio a papéis e pastas, fitas e fotografias.
Eu fechei a porta.
Ele abriu os olhos, olhou para cima e se levantou.
— Porra — ele disse, olhando para o relógio.
— Eu sei.
Ele olhou para mim.
— Porra.
— Eu sei.
Ele foi à pia e deixou a água correr.
— É melhor você se sentar — ele disse, afastando-se da pia e chegando à base da cama.
Contornei os papéis e pastas, fotos e mapas, e me sentei na ponta da cama.
— O que você está fazendo aqui?
— Vou ser afastado.
— O que você fez?
— Te conheci.
— E daí?
— E daí que não quero ser afastado.
Eu ouvia a chuva caindo com força lá fora, caminhões dando ré e estacionando, caminhoneiros correndo em busca de cobertura.
— Como veio parar aqui?
— Sou policial.
— Sério? — perguntei, segurando minha cabeça.
— Ah, sério — ele respondeu, tirando o paletó e subindo as mangas da camisa.
— Você já esteve aqui antes?
— Não. Por quê?
— Por nada — respondi.
Fraser molhou na pia a única toalha que havia por ali e atirou-a em cima de mim.
Eu coloquei-a no meu rosto, passei-a pelos meus cabelos.
Ela saiu suja.
— Eu não fiz isso.
— Não perguntei.
Fraser pegou um lençol cinza e começou a rasgar tiras.
— Por que me deixaram ir embora?
— Não sei.
O quarto estava ficando preto, a camisa de Fraser, cinza.
Eu me levantei.
— Senta.
— Foi Foster, não foi?
— Senta.
— Foi Don Foster, eu sei, porra.
— Eddie...
— Eles sabem disso, não?
— Por que Foster?
— Porque ele está ligado a tudo isso.
— Você acha que Foster matou Clare Kemplay?
— Acho.
— Por quê?
— Por que não?
— Merda. E Jeanette Garland e Susan Ridyard?
— Também.
— E Mandy Wymer e Paula Garland?
— Também.
— Então por que pararia? E Sandra Rivett? Talvez não tenha sido Lucan, no final das contas, mas sim Don Foster. E a bomba em Birmingham?
— Vai se foder. Ela está morta. Todos estão mortos.
— Mas por quê? Por que Don Foster? Você não me deu nenhuma razão.
Eu me sentei na cama, com a cabeça entre as mãos, o quarto preto, nada fazia sentido.
Fraser me ofereceu duas tiras de lençol cinza.
Amarrei as tiras na minha mão direita, com força.
— Eles eram amantes.
— E daí?
— Eu preciso vê-lo.
— Você vai acusá-lo?
— Preciso conversar com ele sobre algumas coisas. Coisas que só ele sabe.
Fraser pegou seu paletó.
— Vou te levar.
— Você será afastado.
— Eu já te disse, vou ser afastado de qualquer maneira.
— Me dá as chaves, só isso.
— Por que eu te daria?
— Porque você é tudo o que eu tenho.
— Então você está fodido.
— Sim. Mas deixa eu resolver sozinho.
Ele parecia a ponto de vomitar, mas atirou as chaves para mim.
— Obrigado.
— Não fale nada sobre isso.
Fui até a pia e limpei o sangue do rosto.
— Você viu BJ? — perguntei.
— Não.
— Não foi ao apartamento?
— Fui ao apartamento.
— E?
— Ele foi embora ou sabe Deus o quê.
Ouvi cães latindo e homens gritando.
— Eu deveria ligar para minha mãe.
O sargento Fraser olhou para cima.
— O quê?
Eu estava de pé na porta, com as chaves na mão.
— Que carro é?
— O Maxi amarelo — ele disse.
Eu abri a porta.
— Tchau, então.
— Tchau.
— Obrigado — falei como se nunca mais fosse vê-lo.
Fechei a porta do quarto 27 e segui em direção ao estacionamento, em direção ao Maxi amarelo estacionado entre dois caminhões Findus.
Ao sair do Redbeck Café liguei o rádio. O IRA explodira a Harrods, o senhor Heath não fora atingido por minutos, Aston Martin explodiu, Lucan fora visto na Rodésia, e havia um novo Mastermind.
Eram quase oito, e eu estacionei ao lado dos altos muros da Trinity View.
Saí do carro e caminhei em direção aos portões.
Estavam abertos, as luzes brancas na árvore ainda acesas.
Eu olhei para a entrada.
— Merda — disse em voz alta, correndo em direção à casa.
Logo acima, um Rover atingira a traseira de um Jaguar.
Eu atravessei o gramado, escorregando no orvalho gelado.
A senhora Foster, num casaco de pele, estava curvada sobre algo na porta da frente.
Ela gritava.
Eu a agarrei, passando os braços sobre ela.
Ela gritava em todas as direções, com toda a força que podia. Eu tentava puxá-la. Para dentro de casa, para qualquer lugar.
Quando olhei para ele, olhei bem:
Gordo e branco, amarrado com um cabo preto que corria de seu pescoço e prendia suas mãos às costas, vestindo um macacão branco surrado, com os cabelos raspados, com a nuca vermelha.
— Não, não, não! — gritava a senhora Foster.
Os olhos de seu marido estavam arregalados.
A senhora Foster, com o casaco de pele encharcado pela chuva, correu novamente em direção ao corpo.
Eu a agarrei com força, ainda olhando para Donald Foster, para suas pernas brancas e gordas cheias de lama, para seus joelhos cheios de sangue, para as queimaduras triangulares nas suas costas, para sua cabeça.
— Entre! — eu gritei, agarrando-a com força, puxando-a pela porta da frente.
— Não, cubra-o.
— Senhora Foster, por favor...
— Por favor, cubra-o! — ela gritava, atirando seu casaco.
Estávamos dentro da casa, ao pé da escadaria.
Eu a puxei em direção ao primeiro degrau.
— Espere aqui.
Peguei o casaco de pele e fui para o lado de fora.
Atirei o casaco sobre Donald Foster.
E voltei a entrar.
A senhora Foster continuava no primeiro degrau.
Eu servi duas doses de uísque de um decantador de cristal que havia na sala de estar.
— Onde você estava? — ofereci uma boa dose de uísque para ela.
— Com Johnny.
— Onde está Johnny?
— Não sei.
— Quem fez isso?
Ela ergueu os olhos.
— Não sei.
— Johnny?
— Meu Deus, não!
— Quem, então?
— Eu já disse, não sei.
— Em quem vocês bateram naquela noite na Dewsbury Road?
— Por que quer saber isso?
— Diga!
— Quero que me diga por que isso importa agora.
Caindo, agarrando, prendendo. Como se os mortos estivessem vivos, e os vivos mortos, dizendo:
— Porque eu acho que eles mataram Clare Kemplay, e seja lá quem tenha matado Clare, matou também Susan Ridyard, e seja lá quem tenha sido, matou também Jeanette Garland.
— Jeanette Garland?
— É.
Ela arregalou os olhos de repente, e eu fiquei encarando aqueles olhos de panda, cheios de lágrimas e segredos, segredos que ela não podia conter.
Apontei para o lado de fora.
— Foi ele?
— Não, claro que não.
— Quem foi, então?
— Não sei. — Sua boca e mãos tremiam.
— Sabe, sim.
O copo estava solto em suas mãos, deixando cair uísque no vestido e na escada.
— Não sei.
— Sabe, sim — eu disse, olhando para o corpo de seu marido, que surgia no vão da porta com aquela enorme e maldita árvore de Natal. — Diga!
— Não toque nela, porra!
Johnny Kelly estava de pé no topo da escadaria, coberto de sangue e lama, com um martelo na mão.
Patricia Foster, parecendo distante de tudo aquilo, nem se moveu.
Eu segui para a porta.
— Você o matou?
— Ele matou Paula e Jeanette.
Queria que ele estivesse com a razão, mas sabia que não estava. E disse:
— Não, ele não matou.
— O que você sabe sobre isso? — Kelly descia a escada.
— Você o matou?
Ele continuava descendo, olhando diretamente para mim, com lágrimas nos olhos e bochechas, e um martelo na mão.
Eu dei outro passo para trás, vendo aquelas lágrimas.
— Você sabe que ele não fez isso.
Ele continuou se aproximando, as lágrimas também.
— Johnny, eu sei que você fez coisas ruins, coisas terríveis, mas sei que você não fez isso.
Ele parou no sopé da escadaria, com o martelo a centímetros dos cabelos da senhora Foster.
Eu caminhei em sua direção.
Ele deixou cair o martelo.
Eu me aproximei e peguei o martelo, limpando-o com um lenço cinza e sujo, como faziam os caras de Kojak.
Kelly olhava para ela.
Eu deixei o martelo cair.
Ele acariciou seus cabelos, misturando aquele sangue, que era de outra pessoa, em seus cachos.
Ela não se movia.
Eu me afastei.
Não queria saber de mais nada. Queria comprar drogas, bebida, e sumir dali.
Ele me encarou e disse:
— Melhor você dar o fora daqui.
Mas eu não podia.
— E você também — eu disse.
— Eles vão te matar.
— Johnny — eu disse, agarrando seu ombro. — Em quem vocês bateram na Dewsbury Road?
— Eles vão te matar, você será o próximo.
— Em quem? — perguntei, colocando-o literalmente contra a parede.
Ele não disse nada.
— Você sabe quem fez isso, não sabe? Você sabe quem matou Jeanette e as outras duas.
Ele apontou para fora da casa:
— Ele.
Atingi Kelly com força.
O astro da liga de rúgbi caiu.
— Merda.
— Não. Você estragou tudo.
Eu estava curvado sobre ele, tentando fazer com que revelasse seus malditos segredos.
Ele estava deitado no chão, aos pés dela, olhando para cima, como se tivesse apenas dez anos, e a senhora Foster balançava o corpo para a frente e para trás, como se tudo aquilo estivesse acontecendo na televisão de alguém.
— Diga!
— Foi ele — murmurou Kelly.
— Você é um mentiroso — eu disse, pegando o martelo que estava logo atrás de mim.
Kelly escapou entre minhas pernas, seguindo uma trilha de uísque até a porta de entrada.
— Você gostaria que fosse ele.
— Não.
Agarrei o colarinho dele, movendo seu rosto em direção ao meu.
— Você queria que fosse ele. Queria que fosse fácil.
— Foi ele, foi ele.
— Não foi, você sabe que não foi.
— Não.
— Você quer uma maldita vingança, me diga quem foi, quem fez aquilo naquela maldita noite.
— Não, não, não.
— Você não vai fazer nada quanto a isso. Então me diga, ou eu esmago essa sua cabeça de merda.
Ele afastava minha cabeça com as mãos.
— Está tudo acabado.
— Você queria que fosse ele, para terminar logo com isso. Mas você sabe que não terminou — gritei, atirando o martelo na escadaria.
Ela soluçava.
Ele soluçava.
Eu soluçava.
— Isso não vai terminar até você me contar em quem vocês bateram.
— Não!
— Não terminou.
— Não!
— Não terminou.
— Não!
— Isso não terminou, Johnny.
Ele soluçava, entre lágrimas e ódio.
— Terminou, sim.
— Diga, seu merda.
— Não posso.
Eu vi a lua durante o dia, o sol à noite, eu fodendo com ela, ela fodendo com ele, o rosto de Jeanette em todos os corpos.
Agarrei Kelly pela garganta e cabelos, com o martelo na minha mão enfaixada.
— Você transou com sua irmã.
— Não.
— Você era o maldito pai de Jeanette, certo?
— Não!
— Você era o pai de Jeanette.
Os lábios de Kelly se moviam, saía sangue deles.
Eu me aproximei do seu rosto.
Atrás de mim, ela disse:
— George Marsh.
Eu girei o corpo, agarrando-a e aproximando-a de nós dois.
— Repete.
— George Marsh — ela murmurou.
— O que tem ele?
— Na Dewsbury Road. Era George Marsh.
— George Marsh?
— Um dos capatazes de Donny.
“Debaixo desses lindos novos carpetes. Sobre a grama que cresce entre as rachaduras e pedras.”
— Onde ele está?
— Não sei.
Eu soltei os dois e ergui o corpo. O hall, de repente, parecia muito maior e mais iluminado.
Fechei os olhos.
Ouvi o barulho do martelo caindo no chão, os dentes de Kelly trincando, depois tudo ficou pequeno e escuro mais uma vez.
Fui ao telefone e peguei a lista telefônica. Procurei senhor e senhora Marsh e encontrei G. Marsh. Havia um em Netherton, no número 16 da Maple Well Drive. O telefone era 3657. Fechei a lista.
Peguei uma agenda telefônica e procurei.
George 3657, ali estava, com caneta-tinteiro.
Bingo.
Fechei a agenda.
Johnny Kelly tinha a cabeça entre as mãos.
A senhora Foster olhava para mim.
“Debaixo dessas lindas novas casas. Entre as rachaduras e pedras.”
— Há quanto tempo você sabe?
Aqueles olhos de águia estavam de volta:
— Eu não sabia — ela respondeu.
— Mentirosa.
A senhora Patricia Foster engoliu em seco.
— E quanto a nós?
— O quê?
— O que você vai fazer com a gente?
— Vou rezar para que Deus desculpe a merda que fizeram.
Caminhei em direção à porta de entrada e o corpo de Donald Foster.
— Aonde vai?
— Terminar tudo isso.
Johnny Kelly ergueu os olhos, com impressões digitais sangrentas pelo rosto.
— É tarde demais.
Deixei a porta aberta.
“Debaixo desses lindos novos carpetes, entre as rachaduras e pedras.”
Segui com o Maxi de Fraser de volta a Wakefield, passando por Horbury, e a chuva voltou a cair com força.
Cantei as canções natalinas da Rádio 2, depois mudei para a Rádio 3, para evitar as Notícias das Dez, ouvindo a Inglaterra perder para Ashes na Austrália, repassando minhas próprias notícias das dez: Don Foster está morto.
Dois malditos assassinos, talvez três.
Eu seria o próximo?
Contando os assassinos.
Virando o Maxi em direção a Netherton, e a chuva caindo forte mais uma vez.
Contando os mortos.
Sentindo o gosto de arma na boca, sentindo o cheiro da minha própria merda.
Cães latiam, homens gritavam.
Paula morta.
Coisas que eu deveria fazer, coisas que eu deveria terminar.
“Debaixo desses lindos novos carpetes, entre as rachaduras e pedras.”
Perguntei nos correios de Netherton, e uma senhora, que não trabalhava lá, me disse onde ficava a Maple Well Drive.
O número 16 era uma casa baixa, como todas as outras da rua, muito parecida com a de Enid Sheard e a de Goldthorpe. Um pequeno jardim bem cuidado, com cerca baixa e casa de pássaros.
Fosse lá o que tivesse feito George Marsh, não teria feito ali.
Abri o pequeno portão de metal e subi para o jardim. Podia ver as sombras da televisão.
Bati na porta de vidro, com o ar me ferindo.
Uma mulher gorda, com cabelos grisalhos e permanente, um pano de prato nas mãos, abriu a porta.
— Senhora Marsh?
— Sim.
— Esposa de George Marsh?
— Sim.
Eu abri a porta com força, no rosto dela.
— Que merda é essa? — ela perguntou, caindo de bunda no chão da casa.
Passei entre as botas de plástico e os sapatos de jardinagem.
— Cadê ele?
Ela estava com o pano de prato em cima do rosto.
— Cadê ele?
— Eu não o vi — ela respondeu, tentando se levantar.
Eu bati na cara dela.
Ela voltou a cair no chão.
— Cadê ele?
— Eu não vi.
Aquela puta, dona daquele rosto duro, estava com os olhos arregalados, tentando vencer as lágrimas.
Levantei a mão novamente.
— Cadê?
— O que ele fez? — Havia um talho sobre seus olhos, e o lábio inferior já sangrava.
— Você sabe.
Ela sorriu, um sorriso maldito.
— Diga, onde.
Ela ficou caída entre os sapatos e os guarda-chuvas, olhando para minha cara, com a boca suja aberta num meio sorriso, como se estivéssemos pensando numa transa rápida.
— Onde?
— No galpão.
Eu sabia o que encontraria.
— Onde fica?
Ela continuava a sorrir. Ela sabia o que eu encontraria.
— Onde?
Ela ergueu o pano de prato.
— Não posso...
— Mostre — gritei, agarrando seu braço.
— Não!
Eu a levantei.
— Não!
Segui para a porta de trás.
— Não!
Arrastei-a para o jardim, e sua nuca estava ficando vermelha sob os cabelos grisalhos com permanente.
— Não!
— Para onde? — perguntei, já no portão.
— Não, não, não.
— Para que lado, porra? — perguntei, apertando com mais força.
Ela virou-se, olhando para trás, para trás da casa.
Eu a levei de volta para dentro, e fomos para os fundos da Maple Well Drive.
Havia um campo marrom e vazio atrás das casas, um campo que se erguia logo abaixo do céu branco e sujo. Uma porta e um caminho de trator, onde o campo encontrava o céu. Eu vi vários galpões escuros.
— Não!
Puxei-a contra a parede escura de pedra.
— Não, não, não.
— Cale essa boca maldita, puta. — E tapei sua boca com a mão esquerda, tapando também grande parte de seu rosto.
Ela tremia, mas não chorava.
— Lá em cima?
Ela me encarou, depois fez que sim.
— Caso ele não esteja por lá ou escute a nossa aproximação, vou te matar, entendeu?
Ela me encarava, e mais uma vez fez que sim.
Soltei sua boca, com maquiagem e batom em meus dedos.
Ela ficou parada contra o muro de pedra, não se movia.
Tomei seu braço e a fiz entrar.
Ela olhou para a linha de galpões escuros.
— Anda — eu disse, empurrando suas costas.
Ficamos parados no caminho do trator, com os sulcos deixados por suas rodas tomados de água preta, o ar cheirando a bosta de animais.
Ela fraquejou, caiu e voltou a levantar.
Eu olhei para Netherton, exatamente como Ossett, exatamente como todos os outros lugares.
Vi as casas baixas e as casas geminadas de dois andares, as lojas e as garagens.
Ela fraquejou, caiu e voltou a levantar.
Eu vi tudo aquilo.
Vi uma van branca subindo por ali, agitando sua pequena carga na parte traseira.
Vi uma van branca descendo por ali, com sua pequena carga silenciosa, parada.
Vi a senhora Marsh na pia da cozinha, com aquele maldito pano de prato nas mãos, observando a van chegar e ir embora.
Ela fraquejou, caiu e voltou a levantar.
Estávamos quase no topo da colina, quase chegando nos galpões. Eles pareciam um vilarejo de pedra da Idade Média, construídos com barro.
— Qual?
Ela apontou para o último, para um caminho de sacos de fertilizantes, ferros retorcidos e tijolos de construção.
Eu segui em frente, arrastando-a atrás de mim.
— Esta — murmurei, apontando para a porta de madeira preta com um saco de cimento, fazendo as vezes de janela.
Ela fez que sim.
— Abra.
Ela abriu a porta.
Eu a atirei lá dentro.
Havia uma mesa de trabalho e ferramentas, sacos de fertilizante e cimento, vasos de plantas. Sacos de plástico vazios cobriam o chão.
Cheirava a terra.
— Cadê ele?
A senhora Marsh soltava risadinhas, com o pano de prato sobre o nariz e a boca.
Eu me aproximei e dei um soco em cima do pano.
Ela se curvou e caiu de joelhos.
Eu agarrei seus cabelos grisalhos com permanente e a puxei em direção à mesa, pressionando seu rosto contra a madeira.
— Ha-ha-ha. Ha-ha-ha.
Ela gargalhava e gritava, seu corpo tremia inteiro, com uma das mãos caída sobre os sacos plásticos no chão, a outra levantando a saia até a altura da boceta.
Peguei uma espécie de cinzel, ou cortador de papel de parede.
— Cadê ele?
— Ha-ha-ha. Ha-ha-ha.
Seus gritos eram um zumbido, suas risadas também.
— Cadê ele? — E coloquei o cinzel sobre a sua garganta gorda.
— Ha-ha-ha. Ha-ha-ha.
Ela voltou a empurrar os sacos plásticos com os joelhos e os pés.
Eu dei uma olhada nos sacos e vi um pedaço de corda suja de lama.
Soltei seu rosto e deixei que se afastasse.
Mexi nos sacos e encontrei uma grande tampa de ralo e uma corda preta e suja.
Enrolei a corda entre minhas mãos e puxei a tampa, arrastando-a para o lado.
A senhora Marsh estava sentada no chão, sorrindo sob a mesa, movendo os joelhos histericamente.
Eu olhei pelo buraco, era um estreito buraco de pedra com uma escada de metal que descia por uns quinze metros. Uma descida sombria.
Seria uma espécie de buraco para drenagem ou a ventilação de uma mina.
— Ele está lá embaixo?
Ela batia os pés, cada vez com mais velocidade, com sangue ainda jorrando do nariz, caindo sobre sua boca. De repente, ela esticou as pernas e começou a esfregar o pano de prato na parte superior das coxas e na calcinha vermelha.
Eu a agarrei debaixo da mesa e arrastei-a para fora.
— Ha-ha-ha. Ha-ha-ha.
Peguei um pedaço da corda que havia em cima da mesa. Passei pelo pescoço dela, depois desci em direção aos pulsos, finalmente dando um nó duplo na perna da mesa.
A senhora Marsh fez xixi na calças
Olhei para o buraco, girei o corpo e meti um dos pés na escuridão.
Desci, sentindo a escada, a fria escada de metal, as paredes de tijolos escorregadias.
Desci uns três metros.
Podia ouvir o som de água corrente além dos gritos da senhora Marsh.
Desci, seis metros.
Um círculo de luz cinza e loucura acima de mim.
Desci, dez metros, e as risadas e o pranto se perdiam na distância.
Eu podia sentir água lá embaixo, imaginando minas cheias de água escura e corpos com a boca aberta.
Desci, em direção à luz, sem olhar para cima, com uma única certeza: eu descia.
De repente, uma das paredes laterais do buraco desaparecera, e eu estava lá, sob a luz.
Virei-me, olhando para a boca amarela de uma passagem horizontal que se abria à minha direita.
Segui um pouco mais e depois me virei, colocando meus cotovelos na boca do buraco.
A luz era brilhante, o túnel estreito, em zigue-zague.
Incapaz de me manter de pé, arrastei minha barriga e cotovelos contra os tijolos duros, seguindo em direção à luz.
Eu suava, estava cansado e louco para me levantar.
Segui em frente, perdendo a noção da distância.
De repente, o teto ficou mais alto, e eu consegui ficar de joelhos, pensando em montanhas de lixo sobre minha cabeça, até que meus joelhos e canelas ficaram em carne viva e se rebelaram.
Eu podia ouvir coisas se movendo na luz fraca, ratos, ratazanas, pés de crianças.
Meti a mão num buraco e peguei um sapato: uma sandália infantil.
Deitei sobre os tijolos, sobre toda a poeira e lixo, e lutei contra as lágrimas, agarrado ao calçado, incapaz de jogá-lo fora, incapaz de soltá-lo.
Ergui o corpo de repente e voltei a me mexer, movendo as costas em espasmos, um metro aqui, um pé ali.
Depois o ar se transformou, e o som da água desapareceu. Eu podia sentir o cheiro de morte e ouvir seus gemidos.
O teto ficou mais alto novamente, e havia toras de madeira acima da minha cabeça, depois dobrei numa esquina, e lá estava eu.
De pé na entrada de um grande túnel, sob a luz de dez lâmpadas Davy, ofegante, suando, morto de sede, tentando digerir tudo aquilo.
Era a maldita caverna do Papai Noel.
Deixei o sapato cair no chão, com lágrimas rolando em meu rosto sujo.
O túnel era interrompido por tijolos cinco metros à frente, com os tijolos pintados de azul com nuvens brancas, o chão coberto de tecidos rústicos e penas brancas.
Contra as duas paredes laterais, mais ou menos dez espelhos finos alinhados.
Anjos, estrelas e fadas de árvores de Natal dependurados nas vigas, tudo brilhando sob as luzes.
Havia caixas e bolsas, roupas e ferramentas.
Câmeras e luzes, gravadores e fitas.
E, sob a parede azul no extremo da sala, tapado por um tecido rústico, estava George Marsh.
Numa cama de rosas vermelhas mortas.
Atravessei as penas brancas, seguindo em sua direção.
Ele estava virado para a luz, com os olhos vazados, a boca aberta. Seu rosto era uma máscara de sangue vermelho e preto.
Marsh abriu e fechou a boca, com sangue escapando entre os lábios e o uivo de um cão convalescente surgindo de dentro de sua barriga.
Eu me curvei e olhei pelos buracos onde antes estavam seus olhos, pela boca onde sua língua antes falava.
Ergui o corpo e tirei o tecido rústico de cima dele.
George Marsh estava nu, morrendo.
Seu torso era púrpura, verde e preto, cheirava a cocô, lama, sangue queimado.
Seu pau e saco tinham sido cortados, deixando pele solta e bolsas de sangue.
Ele torcia o corpo e se aproximava de mim, seu dedo mindinho e polegar eram tudo o que restava.
Voltei a cobri-lo.
Ele estava deitado ali, com a cabeça erguida, rezando por um fim. E o murmurar baixo de um homem que pedia pela morte tomava conta da caverna.
Fui às bolsas e caixas, tirando roupas e enfeites cintilantes de dentro delas, bolas de Natal e facas, coroas de papel e alfinetes gigantes, buscando livros, buscando palavras.
Encontrei fotos.
Caixas de fotos.
Fotos de meninas em idade escolar, fotos de seus rostos sorridentes, seus sorrisos brancos e abertos, seus grandes olhos azuis e peles rosadas.
Depois vi tudo novamente.
Fotos em preto e branco de Jeanette e Susan, joelhos sujos, mãos pequenas sobre olhos fechados, grandes flashes tomando conta da sala.
Os sorrisos adultos e os olhos das crianças, joelhos sujos em roupas de anjo, pequenas mãos em buracos sangrentos, gargalhadas brancas tomando conta da sala.
Vi um homem com coroa de papel e nada mais, comendo meninas pequenas naquele subterrâneo.
Vi sua esposa alinhavando roupas de anjo, beijando-as.
Vi um menino polonês deficiente roubando fotos e revelando outras.
Vi homens construindo casas, observando meninas brincando na rua, tirando fotos delas e tomando notas, construindo novas casas ao lado das antigas.
E então olhei para George Marsh mais uma vez, o Gaffer, agonizando em sua cama de rosas vermelhas mortas.
“George Marsh. Um bom homem.”
Mas não era suficiente.
Vi Johnny Kelly, com um martelo nas mãos, um trabalho pela metade.
Mas não era suficiente.
Vi um homem envolto em papéis e plantas arquitetônicas, consumido por visões obscuras de anjos, desenhando casas feitas de cisnes, implorando por silêncio.
Mas não era suficiente.
Vi o mesmo homem ajoelhado, numa esquina escura, gritando: Faça isso por mim, George, pois EU QUERO MAIS E QUERO AGORA.
Vi John Dawson.
E aquilo era muito, muito, aquilo era demais.
Saí correndo da sala, voltando ao túnel, engatinhando, ouvindo mais uma vez o som da água e do poço enquanto seguia em direção ao galpão, com seus gritos tomando conta da escuridão, tomando conta da minha cabeça:
“Tínhamos uma linda vista antes de construírem as novas casas.”
Cheguei à escada e subi, roçando minhas costas em busca da luz.
Eu subi, subi.
Cheguei ao topo, ao galpão.
Ela ainda estava ali, atada à mesa.
Eu me deitei sobre os sacos plásticos, ofegante, suando, morrendo de medo.
Ela sorriu para mim, com sangue no queixo e mijo nas coxas.
Eu peguei uma faca na mesa e cortei as cordas.
Empurrei-a em direção ao buraco e meti sua cabeça lá dentro, com a faca em seu pescoço.
— Você vai descer.
Girei o corpo dela e empurrei suas pernas ao vazio.
— Você pode descer ou cair. Eu não dou a mínima.
Ela colocou um dos pés nos degraus e começou a descer, olhando para mim.
— Até que a morte os separe — eu disse.
Seus olhos brilhavam no escuro, sem piscar.
Virei-me, peguei a corda preta e voltei a colocar a tampa na boca do buraco.
Peguei um saco de cimento e coloquei-o em cima da tampa, depois outro, outro e mais outro.
Depois peguei sacos de fertilizante e coloquei em cima dos sacos de cimento.
Sentei nos sacos e senti minhas pernas e pés congelados.
E me levantei, peguei um cadeado e uma chave na mesa.
Saí do galpão, fechando a porta e trancando-a com a chave.
Corri para fora, atirando a chave na lama.
A porta do número 16 continuava aberta, Crown Court na televisão.
Entrei e caguei.
Desliguei a televisão.
Sentei no sofá e pensei em Paula.
Depois fui ao quarto deles e mexi em todas as gavetas.
Encontrei uma pistola no armário e caixas de balas. Coloquei tudo numa bolsa grande e segui para o carro. Guardei a arma e as balas no porta-malas do Maxi.
Voltei à casa e dei uma última olhada, depois tranquei a porta e desci pelo jardim.
Fiquei parado no muro, olhando para as casas, com a chuva batendo na minha cara, eu coberto de lama.
Entrei no carro e fui embora.
4 LUV.
Tudo por amor.
Shangri-lá, pingos de chuva caindo de suas calhas. Eu, sozinho contra o céu cinzento.
Estacionei em outro ponto sujo de outra estrada deserta e subi mais uma rua triste.
Chovia granizo, e mais uma vez imaginei se para os gigantes peixes amarelos do lago aquilo fazia alguma diferença. Eu sabia que George Marsh sofria e que Don Foster também deve ter sofrido, mas não sabia como aquilo me fazia sentir.
Quis me aproximar e ver aqueles peixes grandes e brilhantes, mas segui em frente.
Não havia carros na entrada da casa, apenas duas garrafas molhadas de leite na porta, numa cesta branca.
Eu me senti mal e com medo.
Olhei para baixo.
Eu tinha uma arma na mão.
Toquei a campainha e ouvi o eco em Shangri-lá, pensando no maldito pau de George Marsh e nos joelhos de Don Foster.
Ninguém atendeu.
Toquei mais uma vez e comecei a bater com o nó dos dedos na porta.
Nada.
Tentei abrir.
Estava aberta.
Entrei.
— Oi?
A casa estava fria e praticamente em silêncio.
Fiquei parado na entrada e disse novamente:
— Oi?
Ouvi um ruído baixinho, seguido de um estalo seco.
Virei para a esquerda na grande sala de estar branca.
Acima de uma lareira que não era usada, uma grande fotografia ampliada de um cisne saindo de um lago.
Ela não estava sozinha:
Em todas as mesas, em todas as prateleiras, em todos os parapeitos de janelas, havia cisnes de madeira, de vidro, cisnes chineses.
Cisnes voando, cisnes dormindo, e dois cisnes gigantes se beijando, com os pescoços e bicos formando um grande coração.
Dois cisnes nadando.
Bingo.
Mesmo na proteção da lareira que não era usada.
Eu fiquei de pé, observando os cisnes, ouvindo o ruído e os cliques.
A sala estava congelada.
Caminhei em direção a uma grande caixa de madeira, deixando as marcas dos meus pés no carpete. Baixei a arma e levantei a tampa da caixa, tirando a agulha do disco. Era Mahler.
Songs for dead children.
Me virei rapidamente, olhando para fora, imaginando ter ouvido um carro se aproximar.
Mas era apenas o vento.
Fui até a janela e fiquei olhando para fora.
Havia algo por lá, algo no jardim.
Por um momento, imaginei ver uma menina cigana de cabelos castanhos sentada, com os pés descalços e galhos entre os cabelos.
Fechei os olhos, depois voltei a abrir, e a menina tinha ido embora.
Ouvi um barulho baixinho.
Voltei a pisar no carpete cor de creme e profundo, chutando um copo que estava no chão. Peguei o copo e coloquei-o num descanso para copos em formato de cisne que havia na mesa de centro, ao lado de um jornal.
Era o jornal do dia, o meu jornal.
Duas linhas de manchete, em letras graúdas, dois dias antes do Natal:
IRMÃ DE ESTRELA DO RÚGBI ASSASSINADA.
CONSELHEIRO PEDE DEMISSÃO.
Dois rostos, dois olhos pretos me encarando.
Duas matérias, do maldito Jack Whitehead e de George Greaves.
Peguei o jornal, sentei no grande sofá cor de creme e li as notícias:
O corpo de Paula Garland foi encontrado pela polícia em sua casa de Castleford, no início da manhã de domingo, após os vizinhos terem alegado ouvir gritos.
A senhora Garland, de 32 anos, era irmã do ex-jogador do Wakefield Trinity, Johnny Kelly. Em 1969, a filha da senhora Garland, Jeanette, de oito anos, desapareceu em seu caminho de volta à casa, vinda do colégio, e mesmo após uma enorme operação policial nunca foi encontrada. Dois anos mais tarde, em 1971, o marido da senhora Garland, Geoff, se suicidou.
Fontes policiais disseram a este repórter que eles estão tratando a morte da senhora Garland como assassinato e que várias pessoas estão ajudando a polícia com seus depoimentos. Uma coletiva de imprensa foi marcada para amanhã de manhã, bem cedo.
Johnny Kelly, de 28 anos, não foi localizado.
Os olhos escuros da imagem impressa, Paula não sorria, parecia já estar morta.
William Shaw, líder do Partido Trabalhista e presidente do novo Conselho Metropolitano Distrital de Wakefield, pediu demissão no domingo, chocando a cidade.
Num comunicado breve, Shaw, de 58 anos, alegou problemas crescentes de saúde como a razão por trás de sua decisão.
William Shaw, irmão mais velho do ministro de Estado do Home Office, Robert Shaw, entrou na política trabalhista após passar pelo Sindicato dos Trabalhadores do Transporte. Chegou a ser gerente regional e representou o sindicato no Comitê Executivo Nacional do Partido Trabalhista.
Ex-vereador e ativo há vários anos na política do West Riding, Shaw era também um líder na defesa das reformas no governo local e foi membro do comitê Redcliff-Maud.
A eleição de Shaw como presidente do primeiro Conselho Metropolitano Distrital de Wakefield foi muito bem recebida, vista como a garantia de uma suave transição durante as mudanças que sofreriam o antigo West Riding.
Ontem à noite, fontes do governo local expressaram consternação diante do momento escolhido pelo senhor Shaw para pedir demissão.
O senhor Shaw também é o ativo presidente da Autoridade policial de West Yorkhsire, e não está claro se continuará sendo.
O ministro de Estado do Home Office, Robert Shaw, não foi encontrado e não opinou sobre o pedido de demissão do irmão. Dizem que o senhor Shaw está com amigos na França.
Dois outros olhos escuros no jornal. Shaw não sorria, parecia já estar morto.
Ah, menino maldito.
“E o grande público britânico teve a verdade que merece.”
E eu tive a minha.
Larguei o jornal e fechei os olhos.
Enxerguei os dois em suas máquinas de escrever, Jack e George, cheirando a uísque, cientes de seus segredos, contando suas mentiras.
Vi Hadden lendo suas mentiras, ciente de seus segredos, servindo uísque para eles.
Eu queria passar uma centena de anos dormindo, acordar quando pessoas como eles tivessem desaparecido, quando eu já não tivesse sua tinta escura e suja nos dedos, em meu sangue.
Mas aquela maldita casa não me deixava, as teclas da máquina de escrever se misturavam a um barulho distante, tomando conta dos meus ouvidos, ensurdecendo meu crânio e ossos.
Eu abri os olhos. No sofá ao meu lado havia grandes rolos de papel, plantas de arquitetos.
Abri uma delas sobre a mesa de centro, em cima das fotos de Paula e Shaw.
Era a planta de um shopping center, The Swan Centre.
A ser construído na saída da M1 para Hunslet e Beeston.
Fechei os olhos novamente, a minha menina cigana estava de pé em seu círculo de fogo.
“Por conta do maldito dinheiro.”
The Swan Centre:
Shaw, Dawson, Foster.
Os Irmãos Box querendo entrar.
Foster fodendo os Irmãos Box.
Shaw e Dawson colocando seus vários prazeres à frente dos negócios.
Foster como diretor do circo, tentando manter o maldito circo em andamento.
Todos fora de sua liga, de sua árvore, ou seja lá do que fosse.
Todos fodidos.
“Por conta do maldito dinheiro.”
Eu me levantei e saí da sala de estar, entrando na cozinha fria e cheia de luz.
Uma torneira ligada numa pia de aço inoxidável vazia. Desliguei.
Ainda podia ouvir o barulho.
Havia uma porta que dava no jardim de trás da casa e outra para a garagem.
O barulho vinha da segunda porta.
Tentei abrir, mas não abria.
Debaixo da porta eu vi quatro magros pingos de água.
Tentei abrir mais uma vez, mas não abria.
Fui à porta dos fundos e corri para a frente da casa.
Não havia janelas na garagem.
Tentei abrir a porta da garagem, mas não abria.
Voltei para dentro da casa pela porta da frente.
Várias chaves dependuradas na fechadura pelo lado de dentro.
Peguei as chaves, voltando à cozinha e ao barulho.
Tentei a maior, a menor, outra.
A fechadura destrancou.
Eu abri uma fresta da porta e inalei fumaça de escapamento.
Merda.
Um Jaguar, com o motor ligado, sozinho na escuridão, no canto mais distante da garagem para dois carros.
Merda.
Peguei uma cadeira da cozinha e forcei a porta, chutando uma pilha de panos de prato úmidos.
Corri pela garagem, com a luz da cozinha iluminando duas pessoas sentadas nos bancos dianteiros e um tubo conectado ao escapamento e metido no vidro traseiro.
O rádio do carro estava ligado bem alto, Elton destilava Goodbye Yellow Brick Road.
Tirei o cano e mais toalhas úmidas do cano do escapamento e tentei abrir a porta do motorista.
Trancada.
Dei a volta e abri a porta do passageiro, recebendo uma grande baforada de monóxido de carbono e o corpo da senhora Marjorie Dawson, que ainda se parecia com minha mãe, com uma maldita bolsa térmica vermelha posta em volta da cabeça ao cair aos meus joelhos.
Tentei colocá-la de pé, curvando meu corpo sobre o dela, para desligar a ignição.
John Dawson estava caído sobre o volante, com outra bolsa térmica na cabeça, e as mãos amarradas à frente do corpo.
“Aí vamos nós outra vez. Conversas perigosas custam vidas.”
Os dois estavam azuis e mortos.
Merda.
Desliguei o motor, e Elton calou a boca, depois me sentei no chão da garagem, trazendo a senhora Dawson comigo, com sua cabeça metida na bolsa térmica sobre o meu colo, nós dois olhando para o marido dela.
O arquiteto.
John Dawson, finalmente, mas tarde demais, com o rosto metido numa bolsa térmica.
O maldito John Dawson, sempre um fantasma, naquele momento literalmente, um fantasma numa bolsa térmica.
O puto John Dawson, apenas com seus trabalhos restantes, iminente e perturbador, deixando-me tão fodido quanto os demais. Sem nenhuma chance de algum dia descobrir e sem a esperanca que isso poderia trazer, sentado a sua frente, com sua mulher em meus braços, desesperado para poder ressuscitar os mortos por um segundo, desesperado para reviver os mortos para apenas uma palavra.
Silêncio.
Ergui o corpo da senhora Dawson como pude, colocando-o no Jaguar, sobre o marido, com suas bolsas térmicas bem juntas, num crescente maldito silêncio.
Merda.
“Conversas perigosas custam vidas.”
Peguei meu lenço cinza e sujo e comecei a me limpar.
Cinco minutos mais tarde, fechei a porta da cozinha e voltei à casa.
E me sentei no sofá, próximo às plantas, os esquemas, os malditos sonhos, e pensei em meu sonho, com uma pistola no colo.
A casa estava em silêncio.
Eu me levantei e saí pela porta da frente de Shangri-lá.
Voltei ao Redbeck, com o rádio desligado, os limpadores de para-brisa movendo-se como ratos na escuridão.
Estacionei numa poça de água e peguei o saco de lixo preto no porta-malas. Segui pelo estacionamento, com as pernas doloridas de minha viagem subterrânea.
Abri a porta e saí da chuva.
O quarto 27 estava frio e vazio, o sargento Fraser fora embora.
Eu me sentei no chão, com as luzes apagadas, ouvindo os caminhões entrando e saindo, pensando em Paula e nas danças com pés descalços ao som do Top of the Pops, alguns dias atrás, como se fosse uma lembrança de outra era.
Pensei em BJ e Jimmy Ashworth, em adolescentes agachados nos armários gigantes e salas úmidas.
Pensei nos Myshkin e nos Marsh, nos Dawson e nos Shaw, nos Foster e nos Box, em suas vidas e crimes.
Depois pensei nos homens no subterrâneo, nas crianças que eles roubaram e nas mães que abandonaram.
E, quando já não podia chorar, pensei em minha própria mãe e me levantei.
As luzes amarelas da recepção estavam mais brilhantes que nunca, o fedor, mais forte.
Peguei o fone, disquei e segurei uma moeda.
— Alô?
Deixei cair a moeda.
— Sou eu.
— O que você quer?
Do outro lado das portas de vidro, a sala de bilhar estava vazia.
— Quero dizer que sinto muito.
— O que eles fizeram com você?
Olhei em volta, olhei para as poltronas marrons da recepção, buscando a velha.
— Nada.
— Um deles me bateu, você sabe.
Eu podia sentir meus olhos queimando.
— Na minha casa, Edward!
— Sinto muito.
Ela chorava. Eu podia ouvir a voz de minha irmã ao fundo. Ela gritava com minha mãe. Li os nomes e promessas, ameaças e números, tudo escrito no telefone.
— Por favor, venha para casa.
— Não posso.
— Edward!
— Sinto muito, mãe. Mesmo.
— Por favor!
— Eu te amo.
E desliguei.
Voltei a pegar o fone, tentei ligar para o número de Kathryn, mas não conseguia me lembrar, desliguei outra vez e corri de volta ao quarto 27.
O céu acima de mim era limpo e azul, sem nenhuma nuvem.
Ela estava do lado de fora, na rua, apertando um cardigã vermelho ao redor do corpo, sorrindo.
Seus cabelos eram loiros e voavam na brisa.
Ela veio na minha direção, passando os braços ao redor do meu pescoço e ombros.
— Não sou um anjo — ela murmurou entre os meus cabelos.
Nos beijamos, com sua língua contra a minha.
Eu acariciei suas costas com minhas mãos, pressionando nossos corpos um contra o outro.
O vento jogava seus cabelos no meu rosto.
Ela se afastou quando eu gozei.
Acordei no chão, com porra na calça.
De cueca na pia do meu quarto no Redbeck, com água morna caindo sobre meu peito e o chão, querendo ir para casa, mas não querendo ser o filho de ninguém, não querendo ver fotos de filhas sorridentes no espelho.
De pernas cruzadas, no chão do meu quarto no Redbeck, desenrolava as ataduras pretas da minha mão, parando junto à carne e às feridas, cortando um tecido com os dentes e enrolando-o na minha mão, com feridas piores arreganhando os dentes na parede logo acima.
De volta às minhas roupas enlameadas, na porta do meu quarto no Redbeck, engolindo pílulas e acendendo cigarros, querendo dormir, mas não querendo sonhar, pensando que aquele seria o dia da minha morte, com fotos de Paula dando adeus.