Capítulo 2
Deveria a Europa aprender com o secularismo indiano?31
Rajeev Bhargava
Ao longo das últimas três décadas, os Estados seculares encontram-se sob grande pressão, praticamente em todo o lado. Não é portanto surpreendente que o secularismo político, a doutrina que os defende, tenha sido igualmente sujeito a críticas severas. Alguns académicos concluíram que este criticismo é ética e moralmente tão profundo e justificado que está na altura de abandonar o secularismo político. Rejeito esta conclusão e argumento que esta avaliação do secularismo parece indefensável unicamente porque os críticos se focaram em conceções dominantes desenvolvidas em sociedades em grande parte homogéneas em termos religiosos.
Chegou a altura de se desviar a atenção das doutrinas subjacentes a alguns Estados seculares ocidentais e ir ao encontro de práticas normativas de uma grande variedade de Estados, incluindo as melhores práticas de Estados não-ocidentais como a Índia. Logo que assim se fizer, começará a encarar-se o secularismo de forma diferente, numa perspetiva crítica, ética e moral que não está contra a religião, mas contra a homogeneização religiosa e o predomínio (inter e intrarreligioso) institucionalizado. De entre todas as alternativas disponíveis, o secularismo continua a ser a melhor aposta para nos ajudar a lidar com o aprofundamento cada vez maior da diversidade religiosa e com os problemas endémicos que implica.
Os Estados seculares e a sua ideologia subjacente, o secularismo político, estão a ser alvo de ataque praticamente em todo o lado. O secularismo foi severamente abalado com o estabelecimento da primeira teocracia moderna em 1979, no Irão. No final da década de 1980, surgiram movimentos políticos islâmicos no Egito, Sudão, Argélia, Tunísia, Etiópia, Nigéria, Chade, Senegal, Turquia, Afeganistão, Paquistão e até no Bangladesh.32
Os movimentos que contestavam os Estados seculares não estavam apenas restritos às sociedades muçulmanas. Movimentos protestantes que desacreditavam o secularismo emergiram no Quénia, Guatemala e Filipinas; o fundamentalismo protestante tornou-se numa força na política dos Estados Unidos da América (EUA); os nacionalistas budistas cingaleses no Sri Lanka, os nacionalistas hindus na Índia, a ultraortodoxia religiosa em Israel e os nacionalistas sikhs no Estado do Punjabi, na Índia, assim como nas comunidades da diáspora no Canadá e na Grã-Bretanha, começaram a questionar a separação entre Estado e religião (Juergensmeyer, 1994).
É evidente que o secularismo tem uma existência instável em sociedades não-ocidentais. O que é menos entendido é que o conjunto de conceções a que se chama secularismo, e que não foi bem transposto para outras sociedades, foi desenvolvido no Ocidente. Ainda menos reconhecido é o facto de que tais conceções e os Estados seculares que alicerçam estão a ser alvo de tensões até na Europa, onde há relativamente pouco tempo eram tidos como solidamente enraizados e seguros.
Por quê? É verdade que a ampla secularização das sociedades europeias também implicou a extensa secularização dos Estados europeus. Independentemente da filiação religiosa, os cidadãos têm um vasto leque de direitos civis e políticos inauditos nos Estados centrados na religião, passados ou presentes. No entanto, dois problemas subsistem.
Primeiro, a migração de antigas colónias e a crescente globalização juntaram nos espaços públicos ocidentais fés pré-cristãs, Cristianismo e Islão (Turner, 2001). O resultado cumulativo é uma diversidade religiosa sem precedentes, o enfraquecimento do monopólio público das religiões únicas e a criação de suspeita, desconfiança, hostilidade e conflito mútuos. Embora dramaticamente marcada pela questão do uso do véu em França e pelo homicídio do realizador Theo van Gogh nos Países Baixos, pouco depois da estreia do seu filme controverso sobre a cultura islâmica, a tensão é igualmente manifesta na Alemanha e na Grã-Bretanha.33
Segundo, apesar da ampla secularização, o estabelecimento formal da religião dominante não contribuiu para melhores relações intercomunitárias nem reduziu a discriminação religiosa em vários Estados europeus. O que se conclui, afinal, é que a crença generalizada numa esfera pública europeia secular é um mito. Os preconceitos religiosos dos Estados europeus tornaram-se cada vez mais visíveis com o aprofundamento da diversidade religiosa. Os Estados europeus têm continuado a privilegiar o Cristianismo de uma forma ou de outra; têm financiado publicamente escolas religiosas, sustentado propriedades das igrejas e salários clericais, facilitado o controlo dos cemitérios pelas igrejas e formado o clero. Resumindo, não tem havido qualquer imparcialidade na esfera da religião e, apesar da igualdade formal, esta realidade continua a ter um impacto profundo na restante sociedade (Klausen, 2005).
Repetindo o que já referi, a crise dos Estados seculares na Europa deve-se em parte ao facto de o etos humanista secular validado por muitos cidadãos não ser completamente partilhado, sobretudo por aqueles cuja cidadania foi recentemente obtida. Qualquer outra secularização de acordo com as linhas humanistas não vai certamente resolver a crise dos Estados seculares europeus. Além disso, muitos destes Estados têm uma religião formal ou informalmente instituída, e o estabelecimento de uma religião única, mesmo que de uma variante mais fraca, faz parte do problema e não da solução. Perpetua o predomínio religioso e baseado na religião.
O que vão os Estados europeus fazer perante este imbróglio? Aqueles que refletem sobre esta crise têm pelo menos quatro conceções de secularismo a olhá-los fixamente. As quatro conceções fluem entre as diferentes maneiras pelas quais a metáfora da separação é entendida, os níveis em que a separação é pretendida e a forma como os fins são concebidos. A primeira destas conceções é completamente amoral e antiética, porque separa a religião do Estado precisamente devido às restrições éticas ou morais que as religiões colocam nos seus propósitos (riqueza, poder). Esses Estados seculares amorais são inconsistentes com a auto-organização e a autocompreensão da maioria dos Estados europeus, uma vez que parecem ter abandonado as suas pretensões imperiais.
A autocompreensão dominante do secularismo ocidental assenta numa doutrina “universal” e requer a separação estrita (exclusão) da igreja/religião e do Estado para salvaguardar os valores morais e éticos concebidos de forma individual. Esta autocompreensão dominante assume duas formas: uma inspirada numa versão idealizada do modelo de separação dos EUA e outra igualmente idealizada do modelo francês. Podem os Estados europeus ser revigorados por estas duas formas de secularismo ocidental? Podem eles lidar melhor com a nova realidade da presença vibrante de várias religiões na vida pública e nas tensões sociais subjacentes? Seguidamente, defendo que as “conceções ” tradicionais de secularismo ocidental disponíveis muito certamente não estão à altura do desafio que representa a presença pública vibrante da religião e a crescente diversidade religiosa.
Irei começar pela conceção idealizada dos franceses. Segundo esta conceção, o Estado deve estar separado da religião, mas mantém o poder de interferir na religião. Porém, a religião é desprovida de qualquer poder de intervenção em matérias de Estado. Resumindo, a separação significa “exclusão só de uma parte”. O Estado pode interferir na religião para a limitar ou suprimir, ou até para a ajudar, mas, em todos os casos, unicamente para garantir o controlo sobre a religião. A religião torna-se um objeto da lei e das políticas públicas, mas só em termos do Estado. Esta conceção, que surgiu como resposta ao predomínio excessivo da Igreja Católica, encoraja a um desrespeito ativo pela religião e só se preocupa em impedir que a ordem religiosa domine o secular. Pretende lidar com o predomínio religioso institucionalizado domando e marginalizando completamente a religião.
Isto pode ajudar os Estados a lidar com aspetos de predomínio intrarreligioso – algo que se verifica quando alguns membros de uma comunidade religiosa dominam membros da própria religião (por exemplo, o anticlericalismo em França). Porém, tem poucos recursos para abordar devidamente o predomínio inter-religioso, ou seja, quando membros de uma comunidade religiosa discriminam, marginalizam ou até oprimem membros de outra comunidade religiosa.
Será por isso que as questões da liberdade individual radical e da igualdade de cidadania surgiram nas sociedades europeias “depois” da homogeneização religiosa? O surgimento de Estados confessionais foi acompanhado de uma expulsão maciça de determinadas comunidades cuja fé divergia da religião do governante. Esses Estados encontraram algum espaço para a tolerância no seu âmbito moral, mas, como é bem sabido, uma tolerância consistente com profundas desigualdades e com uma existência humilhante, marginalizada e quase invisível. É verdade que a democratização liberal, e a consequente secularização de muitos Estados europeus, ajudou cidadãos de fés não cristãs a adquirir a maioria dos direitos formais. Mas tal esquema de direitos não incorpora um regime de igualdade inter-religiosa nem impede efetivamente uma discriminação e exclusão baseada na religião. De facto, mascara os preconceitos maioritariamente etnorreligiosos.
Estes preconceitos são evidentes em diferentes tipos de dificuldades enfrentadas pelos muçulmanos. Por exemplo, na Grã-Bretanha, um terço das crianças da escola primária é educado por comunidades religiosas, porém, os pedidos de financiamento estatal feitos por muçulmanos são frequentemente recusados. A dada altura, havia apenas duas escolas muçulmanas comparadas com as 2000 geridas pela Igreja Católica e 4700 pela Igreja Anglicana. Problemas similares persistem também noutros países europeus (Bader, 2007): tanto em França como na Alemanha, não há uma única escola gerida por muçulmanos que seja subsidiada pelo Estado.
A situação manifesta-se também na incapacidade de muitos Estados europeus ocidentais lidarem com a questão dos véus (França), as exigências por parte dos muçulmanos de construir mesquitas para poderem praticar devidamente a sua fé (Alemanha, Itália), a discriminação no abate ritual de animais (Alemanha), ou de terem locais próprios para os seus enterros (Dinamarca). Ultimamente, à medida que a islamofobia prende a imaginação de várias sociedades ocidentais (exemplificado pela controvérsia da BD na Dinamarca), é muito provável que os cidadãos muçulmanos continuem a enfrentar desvantagens apenas por fazerem parte da sua comunidade religiosa.
Algumas franjas das sociedades europeias, tanto à direita como à esquerda, são tentadas a seguir o modelo francês, sobretudo porque acreditam na ideia de que “O Islão é um problema” e de que a única maneira de “endireitar o mal” é através da aplicação do poder coercivo do Estado. Mas isso seria suicida, pois não iria tocar nas instituições formais e informais do Cristianismo nestas sociedades. Além disso, qualquer tentativa de intervir ainda mais nas religiões deverá certamente deparar-se com resistência não só dos muçulmanos mas também dos não-muçulmanos. Qualquer aceitação deste modelo vai provavelmente exacerbar os problemas.
Podem estes Estados europeus recorrer ao modelo dos EUA? A autocompreensão idealizada pelos norte-americanos interpreta a separação como uma forma de “exclusão mútua” – nem o Estado nem a religião devem interferir na esfera do outro. Esta exclusão mútua é tida como necessária para resolver conflitos entre diferentes denominações cristãs, para garantir alguma igualdade entre elas, mas acima de tudo para facultar ao indivíduo a liberdade de criar e manter as suas associações religiosas. A exclusão mútua é tida como necessária à liberdade religiosa e às liberdades mais gerais do indivíduo.
Esta “separação perfeita” ou rígida, como James Madison lhe chamou, deve ter lugar em cada um dos três níveis distintos de (a) fins, (b) instituições e pessoal, e (c) lei e políticas públicas. Os níveis (a) e (b) tornam o Estado não-teocrático e retiram estatuto oficial à religião. O nível (c) garante que o Estado não tem nem uma relação positiva com a religião – por exemplo, não deveria haver qualquer atribuição de ajudas, mesmo não preferencialmente, a instituições religiosas – nem uma relação negativa com ela; não faz parte das tarefas do Estado interferir em questões religiosas, mesmo quando alguns dos valores (como a igualdade) professados pelo Estado são violados no seio da esfera religiosa. O Congresso não tem simplesmente poder para legislar sobre qualquer assunto relacionado com a religião (Levy, 1994: 7; Hamburger, 2002).
Esta não-interferência é justificada com o argumento de que a religião é uma questão privilegiada, privada (não-estatal), e se algo estiver errado no âmbito da esfera privada, só pode ser resolvido pelos que estão incumbidos por direito de o fazer nesse âmbito. Isto é o que liberdade religiosa significa de acordo com os defensores desta visão. Portanto, a liberdade que justifica a exclusão mútua é uma liberdade negativa e está profundamente imbuída na privatização da religião.
Na minha perspetiva, este modelo de secularismo encoraja o Estado a considerar a religião de forma passiva. O secularismo idealizado pelos norte-americanos tem alguns recursos para combater o predomínio inter-religioso (por exemplo, requer a retirada de estatuto oficial à religião dominante), mas não trava uma luta com outros aspetos desse mesmo predomínio ou contra o domínio ao nível intrarreligioso. Uma vez que o Estado é incapaz de facilitar liberdades ou igualdade dentro das religiões, obriga as pessoas a abandonar a sua religião em vez de exigir a igualdade intrarreligiosa.
Ambas as formas de secularismo ocidental têm dificuldades persistentes em lidar com religiões orientadas para a comunidade, como o Catolicismo Romano, o Islamismo, e algumas formas de Hinduísmo e Sikhismo que exigem uma maior presença pública e até um reconhecimento oficial de si mesmas – sobretudo quando começam a coabitar na mesma sociedade. Além disso, não foram concebidas para sociedades com profunda diversidade religiosa.
Ambas as versões se desenvolveram no contexto social de uma única religião e para resolver os problemas de uma religião, nomeadamente do Cristianismo. Ambas entendem a separação como exclusão e fazem dos valores idealizados de forma individual – liberdade individual ou igualdade entre indivíduos ou ambos – o motivo para a separação. Devido à sua resistência à diversidade e ao seu caráter individualista, estas duas formas de secularismo ocidental tornaram-se parte do problema.
Estaremos então presos entre ideologias que legitimam o domínio religioso sobre o secular e formas de secularismo que são incapazes de prevenir formas de domínio intrarreligioso ou inter-religioso? Acredito que é possível sair deste impasse porque existe outro modelo de secularismo, embora teoricamente menos desenvolvido; um que não foi gerado exclusivamente no Ocidente, que vai ao encontro das necessidades das sociedades com profunda diversidade religiosa e que também está de acordo com o princípio da liberdade e da igualdade: o modelo do subcontinente ou modelo indiano, que se encontra nos melhores momentos de prática intercomunal na Índia e também na sua Constituição, quando esta é interpretada de forma apropriada. Na Índia, a existência de uma profunda diversidade religiosa garantiu uma resposta conceptual não só para os problemas internos das religiões mas também entre religiões. Sem a considerar um modelo, o Ocidente tem de examinar a conceção indiana e talvez aprender com ela.34
Várias características do modelo indiano são essenciais e relevantes para uma discussão mais abrangente. Em primeiro lugar, múltiplas religiões não são extras, ou acrescentadas como um pensamento a posteriori, mas, sim, presentes desde o ponto de partida como parte integrante da sua fundação. O secularismo indiano está intrinsecamente ligado à profunda diversidade religiosa. Em segundo lugar, tem um compromisso com múltiplos valores – liberdade e igualdade –, não sendo concebido como estritamente pertencente a indivíduos, mas largamente interpretado para assegurar a autonomia relativa das comunidades religiosas e a igualdade de estatuto na sociedade, assim como outros valores básicos como a paz e a tolerância entre as comunidades. Tem um lugar não só para o direito de os indivíduos professarem as suas crenças religiosas mas também para o direito de as comunidades religiosas estabelecerem e manterem instituições educativas, cruciais para a sobrevivência e subsistência das suas tradições religiosas distintas.
A aceitação de direitos específicos da comunidade leva à terceira característica do secularismo indiano. Como nasceu numa sociedade profundamente multirreligiosa, preocupa-se tanto com o predomínio inter-religioso como com o intrarreligioso. Ao contrário das duas conceções ocidentais, que facultavam benefícios a minorias apenas acidentalmente (os judeus beneficiaram nalguns países europeus, como a França, não porque as suas necessidades especiais e exigências foram resolvidas, mas porque se deu uma mudança no contexto geral da sociedade), na Índia estiveram quase a ser concedidos direitos políticos a comunidades específicas (quotas políticas para minorias religiosas), tendo acabado por não acontecer apenas devido a motivos contextuais. Na verdade, pode dizer-se que há um espaço conceptual ainda disponível para elas no âmbito da Constituição indiana.
Em quarto lugar, não ergue um muro de separação entre o Estado e a religião. Há limites, evidentemente, mas são permeáveis. Isto permite ao Estado intervir nas religiões, ajudá-las ou limitá-las, sem o impulso de as controlar ou destruir. Isto implica vários papéis: facultar apoio às instituições educativas das comunidades religiosas, de forma não preferencial; ou interferir em instituições sociorreligiosas que neguem igual dignidade e estatuto aos membros da própria religião ou de outras (por exemplo, a interdição da ‘intocabilidade’ e a obrigação de permitir a todos, independentemente da casta, a entrada em templos hindus, e também a possibilidade de corrigir desigualdades de género), fundamentado numa compreensão mais sensível do cuidado e respeito igual para todos os indivíduos e grupos. Resumindo, interpreta a separação de uma forma que não significa exclusão estrita ou neutralidade estrita, mas, sim, aquilo a que chamo “distanciamento ético”, no outro extremo da exclusão unilateral, da exclusão mútua e da estrita neutralidade ou equidistância.
Em quinto lugar, o Estado não é inteiramente adverso ao caráter público das religiões. Embora não se identifique com uma religião em particular ou com a religião em termos mais gerais (não há uma religião instituída), existe um reconhecimento oficial e, portanto, público concedido às comunidades religiosas.
Em sexto lugar, este modelo mostra que não é preciso escolher entre hostilidade ativa e indiferença passiva nem entre hostilidade desrespeitadora e indiferença respeitosa em relação à religião. Podem conjugar-se as duas: ter a hostilidade necessária, desde que também haja respeito ativo, isto é, o Estado pode intervir para proibir algumas práticas, desde que mostre respeito por outras práticas da comunidade religiosa e o faça apoiando-as publicamente.
Em sétimo lugar, ao não fixar à partida o seu empenho nos valores exclusivamente individuais ou comunitários nem traçando limites rígidos entre o público e o privado, o secularismo constitucional indiano permite que as decisões sobre estes assuntos sejam tomadas ou no âmbito da dinâmica aberta das políticas democráticas ou por meio de entendimento contextual nos tribunais.
Finalmente, este compromisso com valores múltiplos e com o distanciamento ético significa que o Estado tenta equilibrar valores diferentes e ambíguos, mas igualmente importantes. Isto torna o seu ideal secular num acordo mais contextual, eticamente sensível e politicamente negociado (que de facto é), em vez de uma doutrina científica criada por ideólogos e meramente implementada por intervenientes políticos.
Uma articulação um tanto forçada e estereotipada do secularismo indiano é algo deste género. O Estado tem de manter um distanciamento ético de todas as instituições religiosas, públicas ou privadas, orientadas para o indivíduo ou para a comunidade, de maneira que sejam salvaguardados valores igualmente significativos (e por vezes conflituosos) de paz, bens materiais, dignidade, liberdade e igualdade (em todas as suas versões complicadas, individualistas ou não-individualistas). Por conseguinte, o secularismo indiano é um acordo eticamente sensível, negociado com diversos grupos e valores divergentes. Permitam-me que desenvolva a noção de distanciamento ético.
Que é exatamente distanciamento ético? A política de distanciamento ético implica uma abordagem flexível da questão da inclusão/exclusão da religião e do envolvimento/anulação do Estado, que, no que diz respeito à legislação e às políticas, depende do contexto, natureza, ou situação atual das religiões relevantes. Este envolvimento deve ser regido por princípios subjacentes a um Estado secular, ou seja, princípios que provêm de um compromisso com os valores mencionados anteriormente. Isto significa que a religião pode intervir nos assuntos do Estado se essa intervenção promover liberdade, igualdade, ou qualquer outro valor essencial ao secularismo.
Por exemplo, os cidadãos podem apoiar uma lei coerciva do Estado baseada unicamente numa fundamentação religiosa, se essa lei for compatível com a liberdade e a igualdade. Da mesma maneira, o Estado pode envolver-se com a religião ou afastar-se dela, envolver-se positiva ou negativamente, mas dependendo inteiramente do facto de esses valores serem ou não promovidos ou postos em causa. Um Estado que intervém ou se coíbe de intervir neste fundamento mantém um distanciamento ético de todas as religiões. Esta é uma ideia constitutiva do distanciamento ético.
Esta ideia é diferente da neutralidade estrita, ou seja, da ideia de que o Estado pode ajudar ou prejudicar todas as religiões num grau equivalente e da mesma forma, isto é, se intervier numa religião, terá de fazê-lo em todas as outras. Pelo contrário, assenta numa distinção, explicitamente criada pelo filósofo norte-americano Ronald Dworkin (1978), entre tratamento igual e tratar todos como iguais.
O princípio do tratamento igual, no sentido politicamente relevante, exige que o Estado trate todos os seus cidadãos da mesma maneira nos aspetos relevantes, por exemplo, na distribuição de um recurso ou oportunidade. Por outro lado, o princípio de tratar as pessoas como iguais implica que todas as pessoas ou grupos sejam tratados com igual preocupação e respeito. Este segundo princípio pode, por vezes, exigir um tratamento igual, ou seja, uma igual distribuição de recursos, mas pode também ocasionalmente ditar um tratamento desigual. Tratar pessoas ou grupos como iguais é completamente consistente com tratamento diferenciado. Esta ideia é o segundo ingrediente do que chamei distanciamento ético.
Afirmei que o distanciamento ético permite tratamento diferenciado. Em que tipo de tratamento estou a pensar? Primeiro, os grupos religiosos têm procurado ser dispensados de práticas em que o Estado intervém com a promulgação de uma lei a ser aplicada de forma neutra à restante sociedade. Esta exigência de não interferência é feita com base na ideia de que a lei lhes exige que façam coisas que a sua religião não lhes permite ou que os impede de agir de acordo com o que a religião estabelece.
Por exemplo, os sikhs exigem ser dispensados da lei do uso obrigatório de capacete, bem como de algumas peças do uniforme da polícia, devido aos turbantes exigidos pela sua religião. Noutros locais, os judeus pretendem dispensa das regulamentações da força aérea para poderem usar os seus yarmulkes. As mulheres e raparigas muçulmanas exigem que o Estado não interfira no uso do chador exigido pela sua religião. Os judeus e os muçulmanos pretendem ficar dispensados do cumprimento das leis de encerramento aos domingos, porque isso não lhes é exigido pela sua religião. O distanciamento ético permite que uma prática que seja banida ou regulamentada numa cultura possa ser permitida numa cultura minoritária devido ao estatuto distintivo e ao significado que tem para os seus membros.
Segundo muitas teorias republicanas ou liberais, isto representa um problema devido ao facto de a sua moralidade simples, de alguma forma absolutista, conferir uma importância avassaladora a um valor, particularmente ao igual tratamento ou à igual liberdade. Os grupos religiosos podem exigir que o Estado se coíba de interferir nas suas práticas, mas podem igualmente exigir que o Estado interfira de maneira a dar-lhes apoio especial, permitindo-lhes acesso àquilo a que outros grupos têm rotineiramente direito em virtude do seu domínio social na comunidade política. Pode conferir autoridade a oficiais religiosos para levarem a cabo casamentos juridicamente vinculativos, para terem as suas próprias regras ou métodos de obter um divórcio, as suas regras sobre relações entre ex-maridos e ex-mulheres, as suas maneiras de definir um testamento, ou as suas leis sobre a distribuição póstuma de bens, mediação de disputas civis e até os seus métodos de estabelecer direitos de propriedade. O distanciamento ético permite a possibilidade de tais políticas com base na ideia de que pode ser injusto responsabilizar pessoas perante uma lei injusta.
Contudo, o distanciamento ético não é só uma receita para tratamento diferenciado na forma de exceções pontuais. Pode até exigir intervenção estatal em algumas religiões mais do que noutras, considerando as condições históricas e sociais de todas as religiões relevantes. Para a promoção de um valor particular constituinte do secularismo, uma religião, em relação a outras religiões, pode exigir maior intervenção do Estado. Por exemplo, se o valor que se pretende é a igualdade social, isso exige, em parte, a neutralização das hierarquias de castas. Se esse é o objetivo do Estado, então pode ser-lhe exigido que interfira no Hinduísmo livre de castas muito mais do que no Islão ou no Cristianismo.
Porém, se o valor que o Estado pretende implementar é uma liberdade religiosa impulsionada pela diversidade, então terá de intervir no Cristianismo e no Islão mais do que no Hinduísmo. Se é assim, o Estado não pode excluir rigidamente as considerações provenientes da religião nem manter uma neutralidade estrita no âmbito da religião. Não pode antecipadamente decidir que irá sempre abster-se de interferir nas religiões nem que vai intervir de igual forma em todas. De facto, pode não se identificar exatamente da mesma maneira com todas as religiões existentes na sociedade ou intervir em cada religião num grau equivalente ou da mesma forma.
Querer proceder dessa maneira seria simplesmente absurdo. Tudo o que tem de garantir é que a relação entre o Estado e as religiões seja guiada por princípios não sectários consistentes com alguns valores e princípios. O facto de um Estado interferir mais numa religião do que noutras não o distancia automaticamente do secularismo. O secularismo indiano rejeita o pressuposto de que “o mesmo tamanho serve para todos”.35
Podem surgir duas objeções a esta leitura. Na primeira, pode dizer-se: “Vejam o estado do subcontinente. Olhem para a Índia. Como continua profundamente dividida. Então e a violência contra os muçulmanos em Gujarate e contra os cristãos em Orissa? Como é possível reclamar sucesso para a versão indiana de secularismo?” Não pretendo subestimar a força desta objeção. O ideal secular na Índia encontra-se numa crise periódica e é profundamente contestado. Além disso, mesmo na melhor das alturas, gera tantos problemas como os que resolve.
Mas não se deve esquecer que um Estado secular foi estabelecido na Índia “apesar” do massacre e deslocação de milhões de pessoas, por motivos etno-religiosos, e sobreviveu num contexto de continuidade em que o nacionalismo étnico continua dominante em todo o mundo. Além disso, foi estabelecido para resolver as tensões geradas continuamente pela profunda diversidade religiosa e não para oferecer “uma solução final” através da expulsão ou liquidação de todos, menos dos grupos religiosos dominantes. Independentemente do que fizeram no passado, não é justo esperar que os Estados europeus ou norte-americanos não permitam nos dias de hoje qualquer tentativa de “limpeza étnica” nos seus territórios?
Os praticantes do secularismo indiano podem aprender com os mecanismos institucionais criados pelos Estados europeus para evitar violência intergrupal: algumas facetas da base institucional do secularismo indiano podem ser fortalecidas seguindo exemplos dos Estados ocidentais. Para consolidar o seu caráter minimamente decente, a Índia ainda pode aprender com o Ocidente contemporâneo. Porém, à medida que diferentes culturas religiosas reclamam o seu lugar nas sociedades do mundo inteiro, o desenvolvimento do secularismo da Índia pode ser o que oferece a forma mais pacífica, sensível à liberdade e democrática de seguir em frente.
Seja como for, este relato não deve ser lido como uma apologia do Estado indiano, mas como uma articulação razoável e solidária de uma conceção de que o Estado indiano frequentemente não se consegue aperceber. A minha argumentação pretende focar-se no valor comparativo desta conceção e no seu potencial futuro e não em como tem resultado na realidade da Índia. O destino de conceções ideais com potencial transcultural não deve ser decidido unicamente baseado naquilo que lhe acontece no seu local de origem.
Em segundo lugar, pode objetar-se que não me concentro nas melhores práticas dos Estados ocidentais e saliento as articulações mais prementes das conceções seculares ocidentais. Mas é esse precisamente o meu objetivo. A conceção dominante do secularismo ocidental deriva de uma autocompreensão idealizada de duas das suas versões e não das melhores práticas dos Estados ocidentais, incluindo as práticas dos EUA e da França. Defendo que esta conceção doutrinal (a) impede uma compreensão de conceções alternativas trabalhadas no terreno por intervenientes políticos moralmente sensíveis; e, (b) ao influenciar tanto políticos como cidadãos, frequentemente distorce a prática de muitos Estados ocidentais e não-ocidentais. Além disso, (c) esconde as muitas formas em que o predomínio inter ou intrarreligioso persiste em muitas sociedades ocidentais. Mais, foi esta conceção que viajou para o mundo inteiro e que é uma fonte contínua de mal-entendidos em relação ao valor dos Estados seculares. O meu objetivo é afastar estas conceções ou pelo menos colocá-las no seu lugar.
Espero ter demonstrado que existem pelo menos duas conceções abrangentes de secularismo: uma do ocidente dominante (a norte-americana e a francesa) e a outra que oferece uma alternativa e está incorporada no modelo indiano. Destas, a conceção indiana tem um melhor potencial ético e moral para lidar com a profunda diversidade religiosa. Não pretendo sugerir que este modelo alternativo só se encontra na Índia. O caso indiano pretende mostrar que tal alternativa existe, não pretende ressuscitar uma dicotomia entre Ocidente e Oriente. Como já referi, estou certo de que esta versão alternativa faz parte das melhores práticas de muitos Estados, incluindo os Estados europeus que estão profundamente apaixonados pelas conceções dominantes de secularismo político.
O meu objetivo neste artigo é chamar a atenção para a frequente incapacidade dos teóricos éticos e políticos de verem o potencial normativo nas práticas seculares destes diferentes Estados porque estão obcecados com o valor normativo das conceções dominantes. Os Estados europeus têm de melhorar a compreensão das suas próprias práticas seculares, assim como o secularismo ocidental precisa de uma melhor autocompreensão teórica. Em vez de ficarem presos a modelos desenvolvidos num determinado momento da sua história, fariam bem em examinar cuidadosamente o potencial normativo nas suas práticas políticas ou aprender com a variante original indiana, que respeita todas as religiões, mas que reconhece a necessidade, pelo menos às vezes, da intervenção do Estado democrático em práticas religiosas moralmente dúbias.
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