Capítulo 5

Por uma política do amor revolucionário41

Houria Bouteldja

O projeto Alice desafia-nos a interrogarmo-nos sobre o que as epistemologias do Sul podem trazer ao Norte. Gostaria de começar por dizer que, no que me diz respeito, faço parte simultaneamente tanto do Sul como do Norte. Sou uma indígena da República Francesa, sou um sujeito colonial. Por outras palavras, faço parte do Sul no interior do Norte. O que faz de mim uma branca na minha relação com o Sul, uma vez que beneficio direta ou indiretamente da exploração do Sul pelo Norte. Beneficio das vantagens das democracias liberais em termos de direitos sociais, políticos e simbólicos. O que compromete a minha consciência e a minha responsabilidade. Mas sou igualmente uma não-branca, na minha relação com o corpo legítimo da nação francesa, ou seja, os brancos, europeus e cristãos. O que faz de mim uma branca é viver num país imperialista; o que faz de mim uma não-branca é viver num país estruturalmente racista. Os meus pais vêm da Argélia, viveram o período colonial e a guerra de libertação. Porém, depois da independência, na realidade, a Argélia era um país destruído pelo colonialismo. Como explicaram Fanon (1961) ou Bourdieu (1958), as estruturas sociais, económicas e políticas tradicionais foram destruídas. É por essa razão que os meus pais emigraram para a antiga potência colonial, para fazer de mim um sujeito pós-colonial em França, uma vez que a República Francesa, quando teve de renunciar à Argélia como colónia, não renunciou, apesar de tudo, ao seu império. A França criou imediatamente as estruturas do neocolonialismo a que eu prefiro chamar contrarrevolução colonial. Este processo teve como consequência a manutenção do domínio económico e político sobre África e, ao mesmo tempo, o prolongamento da política racista no interior das fronteiras francesas.

Enquanto sujeito colonial, sou vítima deste racismo estrutural que afeta os descendentes dos colonizados: os magrebinos, os africanos, os antilhanos e os muçulmanos. Vivemos atualmente em França uma situação paradoxal inquietante. Por um lado, observamos um crescimento do fascismo na Europa e da extrema-direita em França e, por outro lado, uma regressão incrível da esquerda. Mas pior que isso: observamos um ódio crescente contra a esquerda da parte dos descendentes de imigrantes. Devo afirmar aqui que esta rejeição é justificada. A esquerda francesa é terrivelmente eurocêntrica e islamofóbica. Falo aqui da esquerda da esquerda, não falo do Partido Socialista no poder. É verdade que uma parte desta esquerda esteve sempre do lado dos imigrantes contra a violência policial e contra as discriminações, mas a lógica que dominou a política concreta das grandes organizações de esquerda desenrolou-se em torno dos interesses da classe operária branca. O racismo estrutural do Estado francês que atravessa as organizações de esquerda foi ignorado durante 30 ou 40 anos. Hoje, estamos a pagar essa fatura. Permitam-me que vos diga, por exemplo, que em certas cidades dos subúrbios, a amargura é de tal forma profunda e o divórcio foi de tal forma consumado que numerosos descendentes de imigrantes fizeram campanha pela direita e participaram, por vezes, na vitória desta, durante as eleições municipais de março de 2014. Não se trata de um voto de adesão à direita, mas antes de uma vontade de sancionar a esquerda e, nomeadamente, o partido comunista.

Enquanto membro, em França, de um partido descolonial, o Partido dos Indígenas da República (PIR), devo esclarecer primeiro que a nossa organização é produto do abandono da esquerda. Esta esquerda que contribuiu largamente, por exemplo, para que fosse votada a lei islamofóbica de 2004 que excluiu as meninas muçulmanas da escola porque usavam véu. A nossa convicção é de que é urgente proceder à recomposição do campo político numa base descolonial, ou seja, que permita aos descendentes de imigrantes pós-coloniais investir no campo político de maneira autónoma e liberta do paternalismo de esquerda, com a nossa própria agenda e as nossas prioridades. A nossa prioridade é a luta contra o racismo e o imperialismo. Deste ponto de vista, estamos em conflito com a esquerda que tenta explicar-nos que a prioridade é a luta de classes. Conhecemos evidentemente a pertinência e a importância da luta de classes, mas respondemos à esquerda, dizendo que existem conflitos de interesses dentro das próprias classes populares e que este conflito se desenrola na clivagem de raça. Não existe uma classe operária ideal preocupada com os interesses dos operários imigrantes. Quase sempre, estes são considerados como ilegítimos e em concorrência com os operários brancos no mercado de trabalho. Os seus filhos e netos também. Por isso, dizemos à esquerda que, para obter a nossa solidariedade, é preciso que ela integre a clivagem racial e que leve a cabo um combate descolonial no interior da própria esquerda.

As organizações que se assemelham ao Podemos em França censuram-nos por não nos solidarizarmos com as suas lutas. Nós respondemos-lhes o seguinte: a Europa está a viver uma grave crise económica. Esta crise faz descer socialmente e retroceder as classes médias brancas e proletariza-as. Porém, esta situação nova para as classes médias é a situação normal dos descendentes de colonizados há 30 anos. Onde é que vocês estiveram durante 30 anos? Onde é que estavam quando a taxa de desemprego atingiu os 30% nos bairros populares e era de 10% no resto do país? Onde é que vocês estavam quando pedimos o vosso apoio contra os crimes policiais, contra o horror do sistema prisional, contra as discriminações, contra a ofensiva ideológica islamofóbica que se seguiu ao 11 de Setembro? Por que é que nos deparámos com a vossa cegueira e a vossa surdez, apesar de travarmos há 30 anos lutas pela emancipação humana e em nome dos valores universais que vocês pretendem defender?

Gostaria de prosseguir com uma citação de C. L. R. James (intelectual e militante das Antilhas britânicas), que, evocando o seu património político e, em particular, dos militantes negros que encarnaram para ele o combate contra a escravatura e o racismo, afirmou: “São os meus antepassados, podem tornar-se vossos antepassados também, se o desejardes” (James apud Richards, 1995: 325).

Proponho-vos aqui uma reflexão sobre a estética revolucionária desta citação. C. L. R. James propõe aos europeus que considerem a possibilidade de uma filiação política e filosófica entre os antepassados negros de C. L. R. James e os descendentes de colonos brancos. É um ato de amor, porque abre a possibilidade de escapar à fatalidade estrutural da raça. Esta proposta põe em causa o Estado-nação imperialista. Contrapõe-se à definição racial e genética da pertença nacional. Por exemplo, em França, os franceses legítimos são aqueles que têm Clóvis, o primeiro rei de França, como antepassado. É uma construção histórica que serve de base ao mito nacional. Este mito assenta na ideia de um povo unido pelo sangue e, por extensão, pelo sangue europeu, à medida que o bloco ocidental se foi consolidando, o que exclui da cidadania plena e completa os descendentes de imigrantes oriundos das colónias francesas de África, do Magreb e dos franceses de segunda categoria, como os habitantes dos Departamentos Ultramarinos ou ainda os roma.

Assim, a partir desta conceção estreita da nação, não nos restam senão duas escolhas possíveis: a integração na narrativa nacional e no Estado-nação capitalista, colonial e imperialista, tentando apropriar-nos de Clóvis, algo que nos é recusado pelo racismo francês. É aquilo a que chamamos o apelo paradoxal à integração: pedem-nos que nos integremos e, ao mesmo tempo, dizem-nos: “Vocês nunca serão brancos, nunca serão filhos de Clóvis”. A segunda escolha: a libertação, isto é, o questionamento do discurso nacional/republicano/imperialista. Esta começa por propor ao povo francês não uma filiação de sangue com os seus antepassados, mas uma filiação política com aquelas e aqueles que combateram o colonialismo francês, que combateram o crime europeu. Isto constitui simultaneamente a libertação do indígena mas também a libertação do branco.

Adotar a narrativa dos condenados da terra é um ato de amor, porque pressupõe que aquele que beneficia objetivamente com o colonialismo e o racismo, o branco, é livre. Este amor, ou seja, o reconhecimento de que a branquitude é uma construção histórica, postula a liberdade dos povos do Norte. Postula que a branquitude é, ao mesmo tempo, uma herança histórica nascida da dominação do Ocidente, mas é também uma escolha política. Por outras palavras, os brancos podem escolher renunciar à sua branquitude apoiando sem condições as lutas dos povos do Sul contra o imperialismo e as lutas dos sujeitos coloniais contra o racismo. Este ato de amor é um ato revolucionário que propõe uma alternativa radical à guerra civil, à violência no momento em que o fascismo na Europa toma uma amplitude inquietante. É por isso, de um ponto de vista descolonial, que estamos felizes com o progresso de movimentos como o Podemos em Espanha e o Syriza na Grécia. Porém, lamento dizer que, se a existência deles é necessária, ela não é suficiente. Com efeito, as direitas e as extremas-direitas não são as únicas a acreditar no mito nacional. Em França, uma grande parte da esquerda, incluindo o partido comunista, e uma parte da extrema-esquerda cedem, de uma forma ou de outra, ao mito nacional, bem como a todo o sistema de valores da civilização ocidental que eu prefiro denominar modernidade ocidental. Estes valores são os direitos humanos, o universalismo abstrato, o antirracismo moral, a democracia liberal, o Iluminismo... Estes valores são eurocêntricos e devem ser combatidos.

O que fazer a partir da questão colocada por Boaventura de Sousa Santos? Que forma de diálogo podemos levar a cabo? Como é que o Norte pode aprender com o Sul?

A primeira coisa a fazer é identificar claramente os setores da vida política com os quais não podemos dialogar. Enquanto movimento descolonial, sabemos com quem jamais dialogaremos: a social-democracia representada em França pelo PS e a direita republicana e a extrema-direita, porque são os principais artesãos da nossa opressão e os promotores ativos do neoliberalismo colonial.

A segunda coisa a sublinhar é que é falso afirmar que o diálogo epistemológico é unilateral. Na realidade, o Norte aprendeu sempre com o Sul sob a forma da pilhagem. Os conhecimentos e os saberes do Sul foram sempre estudados no Norte para serem, seguidamente, absorvidos e reapropriados pelo mesmo Norte. Acrescento ainda que, de cada vez que o Sul conquistou vitórias, estas foram sempre estudadas pelo Norte para preparar a contrarrevolução colonial. Gostaria de recordar que a estratégia de luta da batalha de Argel que teve lugar na década de 1960 foi estudada pelo exército americano por altura da guerra contra o Iraque em 2003. As nossas resistências, que, como disse Fanon, constroem as nossas novas epistemologias, são estudadas e dissecadas. Sei bem e compreendo que a questão de Boaventura de Sousa Santos se dirige para uma perspetiva descolonial e que ele se interessa pelo modo como as epistemologias do Sul podem transformar as forças ditas do progresso social.

Efetivamente, a partir do momento em que identificámos aqueles com os quais não podemos dialogar, restam aqueles com quem podemos dialogar: a esquerda da esquerda, mesmo sabendo que ela é eurocêntrica. Mas este diálogo pressupõe a construção prévia da nossa própria força política. Pressupõe também que esta esquerda compreenda que nós já não somos crianças e que podemos tomar nas mãos o nosso próprio destino, o que significa um reconhecimento recíproco das nossas existências políticas, ou aquilo que, no PIR, nós chamamos de internacionalismo doméstico.

Porém, gostaria de aprofundar ainda mais os detalhes das nossas alianças possíveis, identificando os interesses de uns e de outros.

Penso que é preciso desconfiar da solidariedade do Norte para com o Sul, porque ela é frequentemente o cavalo de Troia do Ocidente. Porém, apesar de tudo, não penso que seja necessário recusar a solidariedade. Pelo contrário, temos de desenvolvê-la. Gostaria, contudo, de acrescentar uma nuance. Há um Norte de cor e há um Norte branco anti-imperialista. E cada um destes grupos tem a sua própria missão. Se eu tivesse de resumir a situação, preconizaria três estratégias complementares e convergentes: os povos do Sul sob dominação imperialista devem estabelecer a sua própria agenda, deixar de olhar para o Norte e privilegiar as alianças Sul-Sul. É urgente recriar uma fraternidade dos condenados da terra e reinserir as lutas na história anticolonial e anti-imperialista, reconciliar-se com o espírito da Tricontinental, o espírito de Bandung.

Os não-brancos do Norte devem aliar-se prioritariamente com os não-brancos do Sul. É urgente acelerar o desenvolvimento das forças de resistência descoloniais no Norte. Estas devem ter dois objetivos: lutar contra o racismo estrutural das sociedades ocidentais e combater o imperialismo dos seus respetivos Estados, criando sinergias em toda a Europa, a Austrália e os Estados Unidos.

Por fim, os brancos antirracistas e anti-imperialistas devem, como os não-brancos, combater as políticas imperialistas e neoliberais dos seus países, ajudar a descolonizar as suas organizações e renunciar a ditar qual a melhor forma de lutar. Melhor do que isso, devem desnacionalizar, desracializar a sua história. Adotar as vitórias terceiro-mundistas como Dien Bien Phu ou a independência argelina como a sua própria vitória. Considerar Amílcar Cabral, Lumumba, Césaire, Fanon, Malcolm X como antepassados seus.

O conjunto destas estratégias poderia assemelhar-se àquilo a que chamo uma “divisão internacional do trabalho militante” para, simultaneamente, conter os efeitos devastadores da crise do capitalismo, que é também uma crise de civilização, e participar na transição para um modelo mais humano. Neste esquema, cada um luta pelos seus próprios interesses. O Sul contra o neocolonialismo, os pós-colonizados contra o racismo e o imperialismo, e os progressistas contra o imperialismo dos seus Estados e o eurocentrismo das suas organizações. Mas também pelo interesse daquele que está abaixo dele na hierarquia de privilégios. Acrescento que, neste esquema, não há lugar para o paternalismo e para o humanismo abstrato, porque, ao mesmo tempo, aqueles que estão em baixo lutam objetivamente contra a barbárie capitalista que acabará por atingir os povos ocidentais. Vemo-lo na Grécia e em Espanha. As lutas do Sul, a partir desta perspetiva, estão ao serviço dos povos do Norte. Noutros termos, as lutas do Sul libertam os povos do Ocidente. É aquilo a que chamo uma política do amor revolucionário.

Referências bibliográficas

Bourdieu, Pierre (1958), Sociologie de l’Algérie. Paris: PUF.

Fanon, Frantz (1961), Les damnés de la terre. Paris: Éditions Maspero.

Richards, Glen (1995), “C.L.R. James on Black Self-Determination in The United States and the Caribbean”, in Selwyn Reginald Cudjoe e William E. Cain (orgs.), C.L.R. James: His intellectual legacies. Amherst, MA: The University of Massachusetts Press, 317–327.