Capítulo 14
Tecnopolítica e movimentos sociais globais recentes: questões preliminares para um estudo de caso espanhol e português140
Jesús Sabariego
A tecnopolítica irrompe na campanha: Podemos e o assalto ao firmamento institucional
Os resultados eleitorais de 26 de junho de 2016 em Espanha, com a vitória clara do Partido Popular, deram 71 assentos à coligação Unidos Podemos (Podemos, Esquerda Unida, Equo, Més per Balears-Més per les Illes, Batzarre-Assembleia de Esquerdas, Unidade Popular em Comum, Esquerda Asturiana, Construindo a Esquerda-Alternativa Socialista, Segoviemos, Esquerda Castelhana e Democracia Participativa). Embora as expetativas, e as sondagens, anunciassem a vitória do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), este manteve-se como segunda força política, apesar de ter obtido os piores resultados eleitorais desde 1977.
Olhando igualmente para as eleições legislativas de Portugal, realizadas em 4 de outubro, ambas mostram um novo contexto político na história democrática dos dois países, pelo menos na proporcionalidade, na correlação e na representação tradicional das forças eleitas, sem menosprezar as diferenças e a diversidade de matizes que importa interpor entre um e outro, com fatores determinantes como o aparecimento no palco político espanhol de um novo ator, o Podemos, ou a falta de representação institucional do Livre/Tempo de Avançar em Portugal após a consulta eleitoral de outubro.
Não cabe neste texto – que pretende explorar a relação entre as Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), a política, a democracia e os movimentos sociais – o estudo dessas expetativas frustradas, para o qual seria necessário tempo e uma análise profunda. Dedico, sim, estas primeiras linhas a analisar a utilização das TIC por estas novas formações, considerando como hipótese de trabalho que essa utilização provém da sua apropriação por parte dos movimentos sociais surgidos desde 2011 no contexto da crise global, e que pode ser enquadrada numa nova “ecologia de saberes” como parte integrante de uma “epistemologia do Sul”, teorizada por Boaventura de Sousa Santos (2014), contra a sua utilização hegemónica e sublinhando a respetiva importância estratégica, não apenas no que se refere à comunicação mas também aos seus processos de organização enquanto novas formações políticas, às suas tentativas de assalto institucional e, inclusivamente, à sua identidade como tal.
A apropriação política, partilhada, transmediada, comum e democratizadora da tecnologia pelos movimentos sociais globais surgidos em 2011 implica uma redefinição não apenas da tecnologia e das suas possibilidades, mas da própria política perante a conceção abissal hegemónica, que poderia situar-se nas coordenadas daquilo que o pensador português classifica como pensamento pós-abissal (Santos, 2007), como uma prática emancipadora que se estendeu dos movimentos às novas formações políticas e conseguiu levar a sua agenda ao firmamento institucional.
O ano de 2015 foi chamado “o ano da mudança” e para esta mudança apelaram – como leitmotiv do discurso e começando pelo Podemos em Espanha, que obrigou os restantes a fazê-lo (Iglesias, 2014a; Fernández-Albertos, 2015; Sabariego, 2015) – as diversas forças políticas em luta nestes processos eleitorais. Um apelo que se refletiu mais nos argumentos do que nos seus programas (Mateo Regueiro, 2015) e, sobretudo, nas suas estratégias mediáticas (Ardanuy Pizarro e Labuske, 2015), através de uma utilização alargada das TIC como nunca antes se vira nas campanhas eleitorais nestes países. Já Víctor Sampedro defendia, na introdução de um estudo por si coordenado sobre a importância das aplicações tecnopolíticas das TIC nas eleições gerais de Espanha em 2008, que: “as TIC oferecem a possibilidade de alterar as estruturas prévias da competição política, em princípio, democratizando-as: mais recursos cognitivos, mais capacidade de auto-organização e autonomia de grupos sociais até agora marginalizados” (Sampedro, 2011: 12). Não obstante, no epílogo deste trabalho, publicado em 2011 em plena irrupção do Movimento 15 de maio (15M) em Espanha, Sampedro e Sánchez-Duarte afirmam:
Numa democracia representativa, a campanha eleitoral é a antecâmara do voto. O valor do sufrágio depende do debate público precedente. Uma campanha aberta, plural e competitiva garante o voto livre e soberano. Mas, nos comícios de 22 de maio, os atos eleitorais foram trocados pela cidadania que tomou as praças do Estado e muitos países do mundo.
[...]
A lógica da Internet foi para a praça pública; por isso, quem a desconhece não compreende o que está a acontecer. Nós também não, mas constatamos, sim, que as práticas na Rede (autoconvocar-se, deliberar em fóruns, consumir contrainformação, tecer redes afetivas e efetivas, gerar e operar em esferas públicas periféricas e digitais) se tornaram tangíveis. Os traços da comunicação digital – cooperação, instantaneidade, realimentação, horizontalidade, descentralização, flexibilidade, dinamismo ou interconexão – tornaram-se presentes em assembleias e acampamentos. (Sampedro e Sánchez-Duarte, 2011: 237–238)
Os movimentos que neste capítulo se designam por “Movimentos Sociais Globais Recentes” (MSGR), surgidos em Espanha a partir de 2011 no contexto da crise, são o sintoma do esgotamento do sistema político, das instituições da democracia liberal e da cultura da transição espanhola da ditadura para a democracia. Os integrantes destes movimentos, agrupados sob a designação genérica de 15M, abriram o caminho para novos movimentos e organizações políticas que beneficiaram das conquistas dos primeiros. O caso mais significativo é o Podemos, uma organização que construiu parte do seu discurso com elementos simbólicos e narrativos identificados com o 15M, bem como com a utilização das TIC feita a partir da experiência por este acumulada e que conta, entre os seus simpatizantes e membros, com vários ativistas do movimento.
Quanto ao Podemos, ainda não existem muitos textos que aprofundem o fenómeno no âmbito da investigação (Müller, 2014; Fernández-Albertos, 2015). Quase todo o material surgido desde 2014 – é muito interessante observar o eco nos meios digitais internacionais – se situa entre o autorreferencial (Domínguez Rama e Giménez, 2014; Iglesias, 2014b; Rivero, 2015) e a crítica (Tímermans, 2014; Gil, 2015; Martos García, 2015) enquadrada no âmbito da doxa (Eagleton e Bourdieu, 1992). Em alguns dos ensaios publicados recentemente (Mateo Regueiro, 2015), apontam-se hipóteses, além da opinião enviesada, que começam a poder ser verificadas e se mostram interessantes para empreender investigações mais rigorosas num prazo não muito longo, considerando a quantidade de informação que o Podemos está a gerar no rescaldo do último ciclo eleitoral e que confrontou o Estado espanhol – desde 2015 – com um teste de stresse que pôs à prova a capacidade de resistência do sistema político e da cidadania e a opinião pública.
Já quase desde a própria noite eleitoral que havia indícios suficientes para pensar que o Podemos não era um suflê e que o seu sucesso não respondia a circunstâncias aleatórias facilmente “desinsufláveis”, mas, antes, que respondia a fatores estruturais de fundo, o que antecipava uma trajetória mais longa para este novo projeto político. Em primeiro lugar, o Podemos parecia atrair votantes interessados na política, mas muito desiludidos com os partidos tradicionais. Segundo, conseguia representar alguns setores da população (os jovens eram o melhor exemplo disso) que tinham sido castigados pela crise económica, mas cujas preferências não estavam a ser canalizadas pelos mecanismos de representação tradicionais. Por último, o Podemos conseguia apoios surpreendentemente uniformes em todo o país, algo significativo principalmente tendo em conta que se tratava de um partido com uma vida brevíssima e com uma estrutura organizativa muito errática e ausente em boa parte do território. A sua mensagem era ouvida em lugares social, política e economicamente muito diferentes: em Madrid, o Podemos obtinha muito bons resultados no seu “feudo”, onde fora fundado, o bairro multicultural de Lavapiés, no centro, mas também nos bairros tradicionalmente “operários” da periferia, como Vicálvaro ou Vallecas. Conseguia percentagens de apoio dignas de nota em todas as comunidades autónomas, mesmo naquelas com uma corrida eleitoral muito diferente, como a Catalunha ou o País Basco. (Fernández-Albertos, 2015: 11–12)
As coordenadas para realizar uma análise rigorosa sobre o Podemos assentam, no meu entender, em duas dimensões profundamente imbricadas. Por um lado, na perceção que o Podemos suscita na opinião pública e em como esta organização contribui para modificar a opinião pública e vice-versa, criando um discurso próprio ao qual quer a opinião pública, quer os meios de comunicação e outras organizações do “tabuleiro” político institucional em pugna eleitoral com o Podemos se veem obrigados a referir-se para se posicionar em relação à opinião pública e gerar também discursos que gravitem em torno do discurso do Podemos. Por outro lado, o processo constituinte do Podemos enquanto partido político, a sua organização e a fratura entre estas duas dimensões e quem se encontra no meio, os simpatizantes e os círculos. Esta tensão vertical, que no paradigma da teoria da complexidade funciona como uma “diferença-guia” (Sloterdijk, 2012: 28), obriga à tomada de partido, num cenário interno polarizado entre quem ostenta o poder versus os privados de poder. O primeiro polo funcionaria como um “atrator” (Sloterdijk, 2012: 29) que dirige o processo para determinados comportamentos de forma que se mantenha o referido poder sem fissuras; enquanto o polo da alternativa, privado de poder, transitaria da repulsa ou do abandono até à construção de um contrapoder que atraísse o sistema, internamente, para outro funcionamento já proposto (“Abrindo o Podemos”, “Por umas primárias justas no Podemos”, “Andaluzia a partir de baixo”...) como outra diretriz ou outras diretrizes diferenciadas daquela que concentra o poder atualmente.
No que se refere à tecnopolítica, o Podemos, apoiado na utilização estratégica das TIC, conseguiu produzir um discurso com um certo caráter hegemónico. Mas, pelo menos eleitoralmente, o discurso do Podemos inscreve-se no paradigma (Morin, 2004; Kuhn, 2007: 70–87; Santos, 2010: 11–44) esgotado no qual o esgotamento é proposto como revitalizante. Devedor de uma parte do discurso contra-hegemónico do 15M, este, sim, contra a hegemonia do referido sistema, embora o tenha fragmentado, não se trata de nenhuma metanarrativa épica, mas antes de um atalho ao estilo “Guerra dos Tronos” (Iglesias, 2014b), em que o épico funciona como um truque de ilusão – assim foi esgrimido, pelo menos inicialmente, nos meios de comunicação: a “casta”, as “pessoas”, o “medo”, o “bando”; para passar a outros significantes, como o “povo” e a “pátria”, na procura do “centro do tabuleiro”.
Se, como aponta Boaventura de Sousa Santos, a tarefa crítica não pode limitar-se à gestação de alternativas, senão quando requer um “pensamento alternativo de alternativas” (Santos, 2007: 20), a apropriação e a mediação tecnopolítica das TIC, que proporcionou a constelação de movimentos sociais do 15M, pode ser lida – sustentava como hipótese algumas linhas acima – como a emergência de uma nova “ecologia de saberes” (Santos, 2010: 29 ss.) contra-hegemónica, isto é, pós-abissal, perante a linha traçada pelos usos hegemónicos das TIC, naquilo que Stefania Milan classificou como “práticas comunicativas emancipadoras” (Milan, 2012: 2) e da qual o Podemos beneficiou, visto que uma parte importante da “guerra de posições” eleitoral foi combatida nas redes sociais e nos média:
A construção de um estilo de conversa, de debates adequados aos formatos televisivos, de um saber-fazer comunicacional, e a produção de discurso público para o grande público são, todos eles, elementos-chave da estratégia que permitiu acumular capital simbólico em torno do Podemos. (Toret, 2015: 128)
Para Javier Toret, a apropriação tecnopolítica do Podemos é fundamental para compreender o auge da formação mas também dá pistas sobre a posição que foi ocupando, pelo menos durante o seu primeiro ano de vida:
Um elemento essencial, frequentemente invisibilizado, para entender a disseminação do Podemos residiu na experimentação tecnopolítica, a inovação política do uso da tecnologia e das ferramentas para a ação coletiva. Na nossa opinião, o projeto funcionou graças à combinação de novas ferramentas, a uma massa crítica muito alargada com profundo desejo de participar no processo de construção da organização, que se articula a partir de uma comunicação multicamadas e que expressa uma nova subjetividade política que apela à construção do povo como política radical e à centralidade de um poder constituinte. (Toret, 2015: 134)
Simultaneamente, apesar das críticas às votações online, ao uso excessivo das TIC (Loomio, TitanPad, Appgree, Reddit, etc.) – que subtrairiam a deliberação e o debate coletivo prévios e que enfraqueceriam a necessária cultura da procura de consenso, entendido não como fim, mas, numa conceção agonística, como processo, a partir do corpo a corpo nas assembleias, parafraseando Benjamin Barber (1984, 1998) – e considerando o handicap da infoexclusão em contextos rurais e zonas intermédias, entre coletivos e pessoas excluídas e em risco de exclusão, para quem o Podemos se assume como representante apesar do seu eleitorado eminentemente urbano, jovem e de classe média (Fernández-Albertos, 2015), sustento que a utilização hegemónica da tecnopolítica pelo partido relativamente à infoexclusão é um fator determinante, já que impede alguns setores da população de aceder a esta tecnologia e de participar nos processos. A apropriação política emancipadora da tecnologia funciona a partir da inteligência coletiva, da capacidade representada pela experiência nas praças, nas ruas, na autogestão e auto-organização e na prática, habitando o político, construindo a política (Mateo Regueiro, 2015). É esta inteligência coletiva, este senso comum das pessoas, criativo, inovador, instituinte, uma política próxima, de perto, feita pelas pessoas, a partir de baixo, face a uma política distante, hegemónica, em que as pessoas são um argumento – um pretexto – para ganhar as eleições, o fator primordial para explicar a apropriação tecnopolítica mencionada:
As redes sociais e as iniciativas de participação são muito importantes, mas tão-pouco as devemos sobrevalorizar. Estas iniciativas são um reflexo de um modo de fazer política. As redes de participação devem coincidir com algo mais amplo; a sua existência requer um projeto político forte com um discurso elaborado. No caso do Podemos, são a raiz do projeto que prende a árvore ao solo. Grande parte do seu sucesso reside em ter sabido compatibilizar as iniciativas de participação, as redes sociais e a tecnopolítica com a política discursiva e a política organizativa. Isto diferenciou-nos de outros partidos e iniciativas. Por exemplo, o Partido X, que era um dos novos partidos defensores da tecnopolítica, funcionou como um voto de protesto, de inovação, mas não conseguiu articular um projeto que apostasse em acabar com o bipartidismo. No entanto, todo o seu trabalho e ferramentas foram muito úteis para pensar o tipo de participação que queríamos fomentar. Em meu entender, na capacidade para combinar ferramentas com o discurso residiu o nosso sucesso. (Ardanuy Pizarro e Labuske, 2015: 97–98)
Outra questão a ter em conta na esfera institucional na altura de analisar a apropriação e a mediação tecnopolítica das TIC, ligada ao exposto acima, refere-se aos chamados novos municipalismos em Espanha. As eleições municipais espanholas de 24 de maio de 2015 representaram uma mudança radical no contexto atual e no horizonte democrático do país, ao qual a democracia liberal representativa retira importância.
Além dos marcos históricos que representam o sucesso das candidaturas municipais cidadãs em Barcelona ou Madrid, as cidades mais importantes em população e tamanho, em boa parte das cidades espanholas com mais de 50 000 habitantes, a cidadania votou em candidaturas surgidas em poucos meses nas próprias cidades, formadas, em muitos casos, por pessoas sem experiência política nas instituições, mas com anos de luta e experiência nos movimentos sociais.
Pela mão da confluência, organizações políticas e movimentos sociais – como agrupamentos de eleitores ou como partidos instrumentais –, com um apoio maciço da cidadania, sem presença nos meios de comunicação de massa e praticamente sem recursos (recorrendo ao crowdfunding), conseguiram emergir nas instituições, salientando a brecha aberta na hegemonia de governo dos dois partidos maioritários (Partido Popular e Partido Socialista Operário Espanhol), representantes do sistema bipartidário criado pelos pactos e pela cultura da transição da ditadura para a democracia – desde 1978 –, e da evolução, nestes anos da monarquia parlamentar espanhola, para uma espécie de espetáculo mediático de uma representação vazia, com um lastro de corrupção política e económica exacerbada, no quadro da crise económica. Este importante facto histórico mostra claramente que o sistema político atual em Espanha está ferido de morte e que é necessária uma profunda reforma política das instituições.
A maioria dos cidadãos que votou por outra política fê-lo apostando numa política de proximidade, do corpo a corpo, que coloque as pessoas no centro, uma política humana, que cuide, que humanize as instituições e as abra à participação, à deliberação, à tomada de decisões, à capacidade de elaborar propostas de todos e de cada um, de as fiscalizar, acompanhar, auditar. O político, enquanto atividade que nos humaniza e nos dá sentido como seres humanos, substituiu a política, como técnica ou alquimia-património de alguns tecnocratas ou alquimistas, sendo paradoxal que, para entender este processo, a tecnologia – as TIC – e a apropriação desta pela cidadania seja um dos elementos essenciais.
Os especialistas dos gabinetes e salas, que administram a partir de uma cadeira, foram vencidos pela experiência das ruas e das praças, feita no território onde esta vitória para a cidadania devia ter lugar: a cidade – como espaço privilegiado para fazer e habitar a política, para a humanizar, aproximar, e que conecta esta vontade ao ciclo reivindicativo aberto pelos MSGR, movimentos de caráter eminentemente urbano que ligaram as principais praças do mundo, em 2011, através da tecnopolítica.
Tecnopolítica e Movimentos Sociais Globais Recentes
O papel que as TIC desempenham na política contemporânea é imprescindível para a sua análise (Norris, 2000). Termos como ciber, hack e click encontram-se, nos nossos dias, inextricavelmente ligados à ideia de ativismo político (Gurak e Logie, 2003: 25–46; Fernández Prados, 2012; Tascón e Quintana, 2012).
Embora não exista uma teoria unificada ou um texto canónico (Norris, 2000) sobre o impacto das TIC na política, há quem (Strangelove, 2003) tenha identificado pelo menos duas tendências destacáveis na teoria cultural da Internet, que oscilam entre a chamada “normalização” (Barber, 1998; Axford e Huggins, 2000; Barney, 2000; Lévy, 2001), em que o mercado global acabará por operar a partir da rede, e a “utópica” (Grossman, 1995; Kamarck e Nye, 2002; Shirky, 2008; Castells, 2009), que entende a Internet como um catalisador-chave em todos os aspetos da existência, sendo paradigma de um novo “Iluminismo induzido tecnologicamente” (Strangelove, 2003: 200) e na qual se pode ler a atualização da velha metáfora da máquina na Revolução Industrial, substituída pelas TIC como resposta aos problemas da globalização: “À medida que a violência do capitalismo globalizante e a resistência do público aumentam, também uma nova arquitetura do conhecimento se dissemina com a adoção da Internet” (Strangelove, 2003: 210).
Esta retórica do “solucionismo tecnológico” (Morozov, 2015), que transita de um otimismo celebratório para um pessimismo que não contempla alternativa, traduz as próprias lógicas do discurso hegemónico em torno da globalização, incluindo o da teoria crítica nele inscrita, e aceite academicamente – o pensamento de alternativas não alternativo denunciado por Santos a que me referi acima –, reduzindo a complexidade social e política ao funcionamento da Internet, prescindindo do corpo a corpo e do “ruído das assembleias” (Barber, 1984: 311). A crítica de Strangelove (2003) às visões utópicas de Castells ou Lévy (Strangelove, 2003: 200–209), nas quais a velha metáfora da máquina na Revolução Industrial é substituída pelas TIC, pela Internet, pelas redes sociais, pelo arquivo (memória) e pela gestão de dados maciços (big data), mostra como a tecno-retórica está a anular o como – as causalidades e os processos – nas análises, concentrando-se no quê (Anderson, 2008), uma problemática resgatada pelas teorizações mais recentes (Sierra, 2013) sobre a apropriação cidadã das TIC como ferramenta de mudança social.
Segundo Norris (2000), a teoria contemporânea sobre a influência dos média na política surge na década de 1960, nos EUA, ligada à Escola de Chicago (Lang e Lang, 2009) e cresce na década de 1970 com a guerra do Vietname e o Watergate. A ideia generalizada de que os média impõem a agenda aos partidos políticos em função dos seus próprios interesses está associada, nestas décadas, à irrupção de novos movimentos sociais na luta pelo reconhecimento de direitos e pela distribuição dos recursos, pela justiça global e por uma democracia real baseada na participação, que vão conferir novas dimensões à comunicação política (Touraine, 1978; Klandermans e Tarrow, 1988; Diani e McAdam, 2003; Tilly e Wood, 2009) e mostrar como estas lutas sociais são invisibilizadas e demonizadas pelo mainstream.
O modelo dominante tem sido posto em xeque desde a década de 1990 com a emergência de processos participativos em que as TIC foram, paulatinamente, desempenhando um papel estratégico cada vez maior no seu desenvolvimento e extensão.
No âmbito das campanhas eleitorais – a partir da campanha para a eleição do presidente dos EUA, Barack Obama, em 2008, com a chamada Obamachine 2.0 (Carpenter, 2010), as fugas de informação da WikiLeaks (Hindman e Thomas, 2014), ou as do analista Edward Snowden (Di Salvo e Negro, 2015), ou do soldado Bradley Manning (Thorsen et al., 2013), a utilização estratégica das TIC (Candón Mena, 2014) nas chamadas “revoltas de indignação” (Santos, 2015), o movimento Occupy, os distúrbios na Grã-Bretanha e Irlanda (2008) –, o Movimento 12 de março (M12M) em Portugal (2011) mostrou que:
De uma forma geral, existe uma enorme abertura às ideias vindas do exterior entre os ativistas portugueses. As mensagens sobre eventos noutros países são enviadas por mailing lists e Facebook, e são mostrados em público filmes sobre protestos no estrangeiro. As manifestações de 15 de outubro de 2011 e de 12 de maio de 2012 foram organizadas como parte de dias de luta internacional. A Primavera Árabe e a sua reivindicação de democracia tornaram-se uma referência essencial para todas as grandes manifestações em 2011. Não serviram apenas estrategicamente para apelos ao protesto e para manifestos pelos atores dos movimentos sociais. Também foram amplamente usadas por jornalistas e descritas geralmente de uma forma positiva. [...] os acontecimentos e os movimentos internacionais tiveram um forte impacto na política portuguesa. (Baumgarten, 2013: 496)
Se, como bem destacou Santos, não podemos estabelecer uma teoria geral que totalize estas “revoltas de indignação” (2015: 28), existem, apesar das diferenças entre estes movimentos, elementos comuns e correlações diferenciadas relativamente a outros movimentos que nos permitem classificá-los como Movimentos Sociais Globais Recentes (MSGR). Trata-se, em suma, de processos sociais diferenciados e vinculados a redes informais complexas e densas, que promovem a mudança social ou se opõem à corrente dominante – sintomas da violência gerada pelo capitalismo neoliberal, que assinalam a crise global, as lógicas predatórias deste capitalismo e a sua incidência institucional no projeto inconcluso do Estado de bem-estar. Partilham vínculos com outros intervenientes não necessariamente idênticos, mas, sim, compatíveis. É mais apropriado falar de compatibilidade do que de identidade, de uma mobilização coletiva mais ampla, como processo de reconhecimento mútuo na diferença e na heterogeneidade, no intercâmbio e na comunicação – como ação comum – de experiências contra-hegemónicas fortemente enraizadas na utilização estratégica – obviamente também como expressão identitária – das linguagens e das ferramentas oferecidas pelas TIC, sem líderes reconhecíveis, não-apropriáveis, assembleístas e horizontais, sendo muitas das suas estratégias comunicativas de caráter lúdico, carnavalesco e desconstrutor através do humor e da utilização de significantes festivos.
Em Espanha, os antecedentes do 15M (Razquin, 2015) foram o movimento 13M (2004), o movimento “Por una vivienda digna” (2006), o movimento antiglobalização do final da década de 1990, os fóruns sociais do início do século xxi, o movimento Contra a Europa do Capital e da Guerra, o 11M, o “No a la Guerra!”, os movimentos autonomistas e libertários, as redes contra a dívida, o “Okupa”, o “V de Vivienda”, o movimento estudantil contra Bolonha, e, como seus elementos propiciadores, as redes sociais: #Nolesvotes, #sinfuturo, #DRY, Estado de Malestar y Resistencia, entre outras:
No final da década de 1990, estes ativistas começaram a usar a Internet para promover as filiações e organizar eventos contra os excessos do neoliberalismo e do capitalismo empresarial transnacional. Arrancando com a manifestação “Carnaval contra o Capital!”, em 18 de junho de 1999, que organizou secretamente centenas de milhares de manifestantes (incluindo sindicatos, ambientalistas, feministas, anticapitalistas, ativistas pelos direitos dos animais, anarquistas e outros grupos) por todo o mundo para protestarem numa nova solidariedade partilhada, o Carnaval prosseguiu com a famigerada “Batalha por Seattle” contra a cimeira da Organização Mundial do Comércio (OMC), em dezembro de 1999. Portanto, emergiu um movimento de protesto internacional como forma de resistência contra as instituições neoliberais e as suas políticas globalizadoras, defendendo a democracia, a justiça social e um mundo melhor. Desde então, os espetáculos políticos populistas, generalizados, tornaram-se a norma, devido a uma noção emergente de como a Internet pode ser aplicada de uma forma democrática e emancipadora por uma cidadania planetária crescente, que usa estes novos média para se informar, para informar os outros e para construir novas relações políticas e sociais. (Kahn e Kellner, 2004: 87–88)
O “capital” (Bourdieu, 2002), as experiências acumuladas por alguns dos seus ativistas e o intercâmbio entre estas e as pessoas e os recursos criados em campanhas e encontros conseguiram conectar e produzir uma tendência, um habitus (Bourdieu, 1989) apropriável, que foi interiorizado por várias gerações, rotuladas por uma certa sociologia superficial em Espanha como a geração “X”, a “Ni... ni...” – equiparáveis na sua conceção aos millennials da tradição anglo-saxónica –, de entre as quais poderiam contar-se ativistas e simpatizantes forjados nos movimentos e campanhas indicadas acima, e cujos protestos, que não deixam de conter uma resposta à referida caracterização sociológica superficial, mostram até que ponto o paradigma comunicativo dominante está esgotado e como a Internet representaria uma nova esfera pública que possibilitaria uma “expressão não limitada” (Best e Kellner, 1997; Strangelove, 2003; Earl et al., 2010) pelas condicionantes da esfera tradicional e uma necessidade de participação política (Klotz, 2002). Tudo isto com o ceticismo dos críticos (Habermas, 1989; Bauman, 1999, entre outros, e até Fraser, 2007) e talvez também em relação a estas possibilidades, apesar da evidente crise no paradigma comunicativo e informativo dominante e a irrupção das TIC e a sua apropriação e utilização estratégica (Akrivopoulou e Garipidis, 2014) pelos que aqui denomino MSGR.
Estes movimentos produziram uma resposta popular sem precedentes na democracia espanhola (Taibo, 2011) e na portuguesa (Baumgarten, 2013), assim como a repolitização da sociedade ou, para ser mais exato, a politização de uma geração e a repolitização das anteriores que, juntas e intergeracionalmente, estão a implementar uma nova pedagogia democrática, a agenda das lutas sociais anteriores e posteriores, isto é, a agenda e as reivindicações dos movimentos sociais – decrescimento, cuidados, habitação digna, paz e desmilitarização, feminismo, ecologia, educação laica, pública e gratuita de qualidade, cultura, saúde, serviços públicos. Sem esquecer a agenda pelo cumprimento e a efetivação dos direitos humanos que a crise arrancou pela raiz, ou seja, a proposta de uma nova relação entre os intervenientes e os temas e as reivindicações, uma relação transversal e horizontal como recusa do contrato vertical de uma agenda hierarquizada e tematizada em função do interesse de uma das partes, aquela que ostentava o poder.
Os novos movimentos sociais que registámos em relação ao novo campo das políticas antiausteridade em Portugal evidenciam certamente várias características interessantes e singulares: o seu modo de mobilização assenta amplamente nas TIC; o seu discurso faz reivindicações identitárias originais com base em vetores tradicionalmente silenciosos (emprego informal ou precário, a ideia de uma “geração”); e advogam, em vários casos, formas de mobilização e participação não hierárquica. Por outro lado, os nossos dados sugerem que a capacidade destes movimentos para a mobilização alargada tem sido esporádica e descontínua. Em parte, isto pode ser associado à relativa ausência de uma infraestrutura autónoma estabelecida na sociedade civil: os “novos” movimentos sociais portugueses possuem uma rede relativamente escassa de organizações autónomas de justiça social e de movimentos sociais ativistas dos quais se obtenha apoio, competência e membros. Como tal, estes movimentos podem estar menos enraizados naqueles que pretendem representar do que frequentemente se sugere. (Accornero e Pinto, 2015: 508)
Este processo foi realizado desde baixo, de uma forma inovadora e criativa, por ciberativistas cuja aplicação tecnopolítica (Alcazan et al., 2012; Toret, 2013) das TIC revolucionou a comunicação política tradicional, tendo já alastrado do instituinte ao âmbito da política instituída, dos movimentos sociais às forças políticas emergentes no contexto da crise no Sul da Europa, que incluíram os usos das novas tecnologias da informação e da comunicação (Ardanuy Pizarro e Labuske, 2015) como um elemento estratégico:
No caso português, uma característica que se destacou, e que parece ser comum a todo este ciclo de protesto, foi o regresso das questões materiais como elementos centrais da mobilização política e da luta da formação de identidade. As transformações no trabalho, marcadas principalmente pela instalação de um desemprego sem precedentes e por um acelerado processo de precarização das relações laborais, veem-se agora acentuadas pela dinâmica introduzida pelas políticas de austeridade, cujos efeitos são o corte de salários e benefícios sociais, a diminuição das funções sociais do Estado e o agravamento do problema da dívida, em consequência da transformação de uma crise financeira numa crise de dívidas soberanas dos Estados. O dia 12 de março foi a expressão de um descontentamento geral, que enfrentou não apenas o funcionamento da economia mas que também revela uma crise de legitimidade das instituições políticas. De facto, se este ciclo de protesto começa com movimentos pela democracia no mundo árabe, cujos regimes políticos eram claramente autoritários, a sua expressão nos países do sul da Europa, ou a forma como emergiram no outro lado do oceano nos EUA, revela uma desconfiança dos cidadãos em relação às instituições políticas e a reivindicação de uma “democracia real”, para usar a expressão dos Indignados espanhóis. (Estanque et al., 2013: 16–17)
As narrativas com que os MSGR que surgem a partir de 2011 interpretam a crise política e económica na chamada Primavera dos movimentos traduzem, portanto, o desafeto cidadão – canalizando a indignação desse desafeto – e, sobretudo, mostram a profunda crise de legitimidade do sistema.
Considerações finais
Os usos tecnopolíticos das TIC desafiam a ordem comunicativa dominante na perspetiva da apropriação e construção coletivas, questionando as práticas e o pensamento hegemónico, bem como os pilares nos quais assenta a investigação em torno das mesmas. Este facto constatável permite situar estas práticas comunicativas emancipadoras, democratizadoras e coletivas, comuns, como uma epistemologia do Sul no modo como foi descrita por Boaventura de Sousa Santos (2014), implicando um benefício enorme na democratização dos sistemas demoliberais representativos. Falta ainda, não obstante, superar a infoexclusão – também de vincado caráter geracional – de populações e contextos, especialmente no meio rural, tanto de Espanha, como de Portugal.
As “torrentes de luta política” (Tilly e Tarrow, 2007: 211) como novos processos políticos de participação, as novas formas de ação e de organização coletiva e a sua incidência nas instituições, a configuração de uma nova esfera híbrida (Castells, 2012) de participação online, o denominado governo aberto, juntamente com o projeto em curso de um sistema aberto de dados na União Europeia – Open Data Access (ODA) – e a utilização alargada de redes sociais na esfera institucional representam os marcos mais destacáveis deste processo de transição no paradigma comunicativo, que pode ser seguido através da centralidade que as TIC ocuparam nas revoltas de indignação ocorridas desde 2011.
No âmbito da investigação científica, o debate deslocou-se das questões organizativas, identitárias e distributivas para a análise da comunicação como ferramenta estratégica em relação às anteriores (della Porta e Tarrow, 2005; Mendes e Seixas, 2005; della Porta et al., 2009; Mendes e Araújo, 2013; Santos, 2015), rompendo com as análises centradas na mobilização de recursos e oportunidades (della Porta e Diani, 2011; della Porta et al., 2013), para aprofundar a dimensão tecnopolítica (Sampedro, 2011; Gerbaudo, 2012; Milan, 2012; Howard e Hussain, 2013) que amplia a potência e as escalas temporais e espaciais a que se circunscrevem as análises tradicionais que dão conta da mobilização e dos repertórios de ação.
A operação de apropriação e “carnavalização” (Bajtín, 1998) estratégica das TIC para a construção de um discurso contra-hegemónico com uma intencionalidade política e de uma prática comunicativa contra-hegemónica (Milan, 2012) – a cuidada iteração teatralizada, performativa, discursiva e recursiva, o role play, inclusivamente nos seus aspetos paródicos (os temas, a encenação), a dramatização de comportamentos, hábitos e condutas de forma carnavalizada no jogo dos significantes (Austin, 1982) – deve ser interpretada não apenas como uma estética da política, mas, antes, como a utilização política e organizativa da tecnologia – tecnopolítica, isto é, com fins estratégicos – de informação e comunicação por parte dos MSGR; aquela que permite, em grande medida, entender essa dimensão estética e poder defini-la como um elemento diferenciador, um “diferenciante”, que os distingue, nesse âmbito, de outros movimentos sociais e, por isso, também nos seus aspetos expressivos e cognitivos, na sua própria perceção, e na alheia, e que está diretamente relacionada com a sua incidência em projetos que alcançaram as instituições pela mão de ativistas que hoje ocupam posições parlamentares, após a emergência de novas formações políticas:
Em Espanha há vários fatores confluentes. Por um lado, temos a grande disponibilidade tecnológica da sociedade espanhola como condição de possibilidade para que a participação seja maciça. Quisemos seguir o trabalho que tinha sido iniciado nas praças, quando as redes sociais foram utilizadas para fazer política e participar num movimento, com um sucesso notável. Graças ao 15M, as pessoas aprenderam a utilizar as redes sociais de outra forma. Gerou-se um clamor popular que o Podemos aproveitou em lugar de o criar, um espaço forjado durante os últimos anos. (Ardanuy Pizarro e Labuske, 2015: 96)
Através da utilização tecnopolítica das TIC, os MSGR vieram cunhar o regime de significação (Deleuze e Guattari, 2002: 119–120) hegemónico, apropriando-se dos meios e canais tecnológicos de produção de significados para rearticular os “significantes vazios” (Laclau, 1996) que, em maio de 2011, pairavam sobre as narrativas instituídas e hegemónicas em torno da crise, e gerar uma identificação sem precedentes na opinião pública a partir do desenvolvimento de uma inteligência coletiva representada pela experiência nas praças – a autogestão, a auto-organização e a prática –, tornando-a irrepresentável se não fosse na referida coletividade.
Apoiados nas aplicações tecnopolíticas das TIC, os MSGR construíram uma nova “ecologia social da identificação” (Sabariego, 2007), um “marco cognitivo” (Bateson, 1972; Goffman, 1974), “uma ecologia de saberes” (Santos, 2014), designando uma realidade na rua – o colapso da democracia liberal representativa em Espanha associado à corrupção do sistema, à crise económica e de representação e à distância entre as instituições e os cidadãos –, introduzindo-a na corrosão da globalização capitalista neoliberal que a gerou, definindo-a, apropriando-a, portanto (Berger e Luckmann, 1996), construindo sobre ela uma narrativa que não estava escrita – recordemos a negação sistemática da crise económica no governo Zapatero ou os eufemismos iniciais para a referir no governo Rajoy ou diretamente como herança do governo anterior – e enunciando performativamente (Austin, 1982; Searle, 1986, 1997) um significante instituinte contra-hegemónico, negado pelos meios de comunicação de massa, com a criação de meios coletivos de produção de significados através da utilização tecnopolítica das TIC para subverter o signo dominante.
A apropriação tecnopolítica exercida pelos MSGR representa uma questão estratégica, como vimos, que a identifica nesta epistemologia do Sul (Santos, 2014) como geradora de um novo espaço de interação e inter-relação social, definindo até a sua própria identidade diferenciada como movimentos. Embora estas redes transmediáticas, em constante transformação, estejam orientadas para a consecução de determinados fins, se tivesse de as definir a partir de uma conceção sociológica clássica mais instrumental, importaria também destacar que as suas práticas comunicativas emancipadoras (Milan, 2012) implicam um processo de re-historização coletivo, horizontal, caracterizado pela reciprocidade, que implica a visibilização e a reescrita de práticas e contextos que escapam do sentido e das definições hegemónicas. Nesse sentido, o tráfego de dados, as licenças abertas, o hacktivismo funcionam como os elementos de um novo arquivo, uma nova memória (big data), um novo território híbrido, repleto de tensões e lutas de poder que não permitem identificá-lo como uma esfera comunicativa abstrata com o consenso entre iguais como fim, um espaço de expressão sem limitações, como expressa Michael Strangelove (2003), de liberdade, cuja exploração pelos movimentos procura responder ao como mais do que ao quê – como faz a prospeção de dados hegemónica –, fazendo com que os média acompanhem os fins e não o contrário.
A apropriação tecnopolítica realizada pelos MSGR não se esgota na construção de uma narrativa, de uma metanarrativa. A sua exploração, a de uma hipertextualidade contra-hegemónica, como já defini noutro lugar (Sabariego, 2007), questiona as práticas comunicativas dominantes e a sua agenda, contrapondo esse novo espaço de inter-relação na luta não apenas para inscrever na agenda oficial as suas exigências mas também para redefinir a mencionada agenda a todos os níveis, não só os tópicos que a integram e tematizam como também a sua própria configuração, hierarquia e meios que a constituem.
A voz, a ação comum, alcançou múltiplas saídas, parafraseando Hirschman (1977), novas esferas na era digital, centrais para mudar o estado das coisas. Os MSGR pugnam por manter essa voz como uma expressão não reprimida, intersubjetiva, baseada na troca constante de informação, não-apropriável, lutando por um senso comum emancipador que emudeça o poder do senso comum dominante.
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