VISÃO DE PEDRO DA MONTANHA

Chamado o Vidente

Estão aqui escritos os três Capítulos da Visão de Pedro da Montanha, chamado o Vidente, sobre a rebeldia desobediente e condenável de Pedro do Vale, conhecido por Pierrot das Damas.

Capítulo I

1. Eu encontrava-me no meu prado a ceifar o meu restolho, fazia calor e estava cansado, e havia uma ameixeira com ameixas verdes perto de mim.

2. Edeitando-me debaixo da ameixeira, adormeci.

3. Durante o meu sono, tive uma visão e ouvi uma voz estridente e retumbante como o som de uma corneta de mensageiro.

4. Esta voz era ora fraca, ora forte, ora grossa, ora clara, passando sucessiva e rapidamente dos sons mais graves para os mais agudos, como o miar de um gato numa caleira ou como a arenga do Reverendo Imer, diácono do Vale de Travers.

5. Dirigindo-se a mim, a voz disse: Pedro, o Vidente, escuta as minhas palavras; e mantive-me calado enquanto dormia, e a voz continuou.

6. Escuta a palavra que te dirijo em nome do Espírito e guarda-a no teu coração. Espalha-a por toda a terra e por todo o vale de Travers, a fim de que sirva de edificação a todos os fiéis.

7. E para que, instruídos sobre o castigo do rebelde Pedro do Vale, conhecido por Pierrot das Damas, aprendam a não desprezar as nocturnas inspirações da Voz.

8. Pois eu escolhi-o pela abjecção do seu espírito e pela estupidez do seu coração para ser o meu intérprete.

9. Fiz dele o sucessor honorável da minha serva, a Batizarde, para que, como ela, levasse a toda a Igreja a luz das minhas inspirações.

10. Encarreguei-o, como ela, de ser o órgão da minha palavra, para que a minha glória fosse manifestada e para que vissem que posso, quando me apraz, tirar ouro da lama e pérolas do esterco.

11. Eu disse-lhe: vai falar com o teu irmão errante, Jean-Jacques, que se está a perder, e leva-o de volta ao caminho certo.

12. Porque, no fundo, o teu irmão Jean-Jacques é um homem bom, que não faz mal a ninguém, que teme Deus e ama a verdade.

13. Mas, para o salvar da perdição, este povo também cai nela; e, por querer fazê-lo regressar à Fé, este povo renuncia à Lei.

14. Pois a lei proíbe vingar as ofensas que recebemos, e eles ultrajam incessantemente um homem que não os ofendeu.

15. A lei ordena que se retribua bem pelo mal, e eles retribuem-lhe mal pelo bem.

16. A lei ordena que amemos os que nos odeiam, e eles odeiam aquele que os ama.

17. A lei ordena que se use a misericórdia, e eles nem sequer a justiça usam.

18. A lei proíbe que se minta, e não há mentiras que não inventem contra ele.

19. A lei proíbe a calúnia, e eles estão sempre a difamá-lo.

20. Acusam-no de ter dito que as mulheres não tinham alma, e diz, pelo contrário, que todas as mulheres amáveis têm pelo menos duas.

21. Acusam-no de não acreditar em Deus, e ninguém provou tão fortemente a existência de Deus.

22. Dizem que é o Anticristo, e ninguém honrou Cristo de forma tão digna.

23. Dizem que ele quer perturbar-lhes as consciências, e nunca lhes falou de religião.

24. Se lêem livros escritos em sua defesa noutros países, será culpa dele e terá ele pedido que os lessem? Mas, pelo contrário, é por não os terem lido que acreditam que, nesses livros, há coisas más que não o são; e que não acreditam que as coisas boas que há nesses livros existam de facto nesses livros.

25. Porque os que os leram pensam de maneira completamente diferente sobre eles, e dizem-no quando estão de boa-fé.

26. No entanto, este povo é naturalmente bom, mas é enganado; e não vê que o fazem defender a causa de Deus com as armas do Diabo.

27. Tiremo-los do mau caminho em que os levam, e retiremos este escolho da frente dos seus pés.

Capítulo II

1. Vai então e fala com o teu irmão errante JeanJacques, e dirige-lhe em meu nome estas palavras: assim disse a voz em nome do Espírito.

2. Meu filho, Jean-Jacques, perdes-te nas tuas ideias. Recupera a razão, sê dócil e recebe as minhas palavras de correcção.

3. Acreditas em Deus Todo-poderoso, inteligente, bom, justo e recompensador; e fazes bem.

4. Acreditas em Jesus, seu filho, o seu Cristo, e na sua palavra; e fazes bem.

5. Segues com toda a tua força os preceitos do Santo Evangelho; e fazes bem.

6. Amas os homens como se fossem teus semelhantes e os cristãos como teus irmãos. Fazes o bem quando podes e só fazes mal a alguém se for por tua defesa ou da justiça.

7. Baseado na experiência, esperas pouca equidade por parte dos homens; mas depositas a tua esperança no Além, que te indemnizará das misérias da vida terrena; em tudo isto, fazes bem.

8. Conheço as tuas obras: amo as boas; o teu coração e a minha clemência apagarão as más. Mas há uma coisa que me desagrada em ti.

9. Teimas em rejeitar os milagres; e que te importam os milagres? Porque, além disso, acreditas na Lei sem eles, não falas deles e não escandalizas os mais fracos.

10. E quando tu, Pedro do Vale, conhecido por Pierrot das Damas, tiveres dito estas palavras ao teu irmão errante, Jean-Jacques, ele ficará espantado.

11. E vendo que tu, que és um bruto e um estúpido, lhe falas de forma sensata e honesta, ficará impressionado com esse prodígio e reconhecerá o dedo de Deus.

12. E prosternando-se no chão, dirá: Aqui está o meu irmão, Pierrot das Damas, a pronunciar discursos sensatos e honestos. A minha incredulidade rendese a este sinal evidente. Acredito nos milagres; pois nenhum é maior do que este.

13. E todo o Vale de Travers, testemunha deste duplo prodígio, entoará Cânticos de alegria; e gritar-se-á em toda a parte, nas seis comunidades, que Jean-Jacques crê nos milagres e que discursos sensatos saem da boca de Pierrot das Damas. O Todo-poderoso mostra-se às suas criações; abençoado seja o seu santo nome.

14. Então, confusos por terem insultado um homem pacífico e gentil, apressar-se-ão a fazê-lo esquecer os ultrajes que lhe fizeram e amá-lo-ão como a um semelhante, e ele amá-los-á como seus irmãos.

15. Os clamores sediciosos já não os amotinarão; a hipocrisia exalará o seu fel em vãos murmúrios que já nem as mulheres escutarão.

16. A paz de Cristo reinará entre os Cristãos e o escândalo será retirado do meio deles.

17. Foi assim que falei a Pedro do Vale, conhecido por Pierrot das Damas, quando me dignei escolhê-lo para levar a minha palavra ao seu irmão errante.

18. No entanto, em vez de obedecer à missão que lhe dei e de ir falar com Jean-Jacques como lhe mandei, desconfiou da minha promessa e não acreditou no milagre do qual devia ser o instrumento.

19. Feroz como o asno do deserto e teimoso como a Mula de Edom, não acreditou que fosse possível pôr discursos convincentes na sua boca e teimou na sua rebelião.

20. Por isso, tendo-o rejeitado, ordeno-te a ti, Pedro da Montanha, chamado o Vidente, que escrevas este anátema e que lho comuniques, quer directamente, quer pelo público, para que não diga que o ignora, e que todos aprendam, pela execução do castigo que lhe anuncio, a não desobedecer às santas visões.

Capítulo III

1. Estas são as palavras comunicadas pela voz, debaixo da ameixeira de ameixas verdes, a mim, Pedro da Montanha, chamado o Vidente, para ser a sentença contida nestas e devidamente explicada e pronunciada ao dito Pedro do Vale, conhecido por Pierrot das Damas, para que se prepare para a sua execução e que todo o povo, sendo disto testemunha, se torne sábio por este exemplo e aprenda a não desobedecer às santas visões.

2. Homem de cabeça dura, pensavas que aquele que fez dar por corvos alimento carnal ao Profeta não podia dar por ti o alimento espiritual ao teu irmão? Pensavas que aquele que fez falar uma burra não podia fazer falar um cavalo?

3. Em vez de ires com rectidão e confiança cumprir a missão que te dei, perdeste-te no desregramento do teu mau coração. Com medo de levar o teu irmão à resipiscência, não quiseste levar-lhe a minha palavra. Em vez disso, entregando-te ao espírito de cabala e de mentira, divulgaste a ordem que eu te dera em segredo e, suprimindo maliciosamente o bem que eu te encarregara de dizer, substituíste-o falsamente pelo mal de que não te falara.

4. Foi por isso que pronunciei sobre ti esta sentença irrevogável, da qual nada pode eliminar ou mudar o efeito. Portanto, tu, Pedro do Vale, conhecido por Pierrot das Damas, escuta e treme; porque a tua hora aproxima-se; a sua rapidez reger-se-á pela tua sede.

5. Conheço todas as tuas maquinações secretas; as tuas conspirações foram gizadas bebendo; e é bebendo que serão punidas. Desde a noite memorável da tua visão até ao décimo terceiro dia do mês de Elul, à nona hora, passaram-se cento e dezasseis horas.

6. Para, na minha clemência, te dar tempo para te conheceres e te emendares, permito que bebas ainda cento e quinze copos de vinho puro, ou a mesma quantidade medida na mesma taça em que bebeste o teu último gole, na véspera da tua visão.

7. Mas assim que os teus lábios tiverem tocado no centésimo décimo sexto copo, é a hora de morrer; e antes de o esvaziares, morrerás de repente.

8. E não penses que me enganas bebendo furtivamente ou em copos de diferentes medidas. Porque te sigo por toda a parte com o meu olhar, e a minha medida é tão certa quanto a do pão da tua serva e da balança onde pesas os teus escudos.

9. Seja quando for e onde for, quando beberes o centésimo décimo sexto copo, morrerás de repente.

10. Se o beberes no fundo da tua cave, sozinho entre os teus tonéis de reserva, morrerás de repente.

11. Se o beberes à mesa com a tua família no fim do teu magro jantar, morrerás de repente.

12. Se o beberes em casa de Joseph C*** [Joseph Clerc], procurando com ele no vinho alguma mentira, morrerás de repente.

13. Se o beberes em casa do presidente da Câmara B*** [Henri Baillod], ouvindo um dos seus velhos sermões, adormecerás para sempre, mesmo sem que ele continue a ler.

14. Se o beberes conspirando em segredo em casa do senhor P*** [Pierre Boy], mesmo que inventando alguma nova visão, morrerás de repente.

15. Mortal feliz até ao teu último momento e além, ao expirar, colocarás mais espírito no teu estômago do que aquele que tinhas no cérebro, e a mais pomposa oração fúnebre, em que as tuas visões serão celebradas, dar-te-á mais honra após a tua do que a que tiveste em vida.

16. Bebe, feliz Pedro, bebe, apressa-te a beber. Não te demores a ir colher os louros que te esperam na terra das visões. Morrerás, mas, graças a isso, o teu nome viverá entre os homens. Bebe, Pedro, bebe, alcança rapidamente a imortalidade que te é devida. Assim seja; Ámen, Ámen.

17. E quando ouvi estas palavras, eu, Pedro da Montanha, chamado o Vidente, senti um grande pavor e disse à voz.

18. Deus me livre de anunciar essas coisas sem estar certo delas através de um sinal. Conheço o meu irmão Pierrot das Damas: ele quer ter as suas próprias visões. Não vai acreditar nas minhas, ainda que me chamem o Vidente. Mas, se isto vai acontecer como dizes, dá-me um sinal sob a autoridade do qual eu possa falar.

19. E assim que terminei de dizer estas palavras, fui acordado por uma pancada terrível; levando a mão à cabeça, senti que o meu rosto estava cheio de sangue; sangrava muito do nariz e o sangue cobriame o rosto. No entanto, depois de o ter estancado como podia, levantei-me sem outra ferida; tinha apenas o nariz ferido e muito inchado.

20. Depois, olhando à minha volta, tentando perceber de onde podia ter vindo aquela pancada, vi finalmente que uma ameixa caíra da árvore e que me atingira.

21. Vendo a ameixa perto de mim, agarrei nela; depois de a ter observado com atenção, reconheci que estava muito sã, era grande, muito verde e dura, como testemunhava o estado do meu nariz.

22. Tendo o meu entendimento clareado, vi que a ameixa, naquele estado, não podia ter caído naturalmente sozinha; além disso, a direcção certa em relação à ponta do meu nariz era outra maravilha não menos manifesta, que confirmava a primeira e mostrava claramente a obra do Espírito.

23. Dando graças à voz por um sinal tão evidente, decidi publicar a visão como me fora ordenado e guardar a ameixa como testemunha das minhas palavras, tal como o tenho feito até hoje.