5.
Vinte e poucos anos mais tarde, Clarisse Garcia passará por um tortuoso processo legal que a levará às portas da pobreza e ao desencanto em relação ao jornalismo. Mas no momento em que desponta nesta história Clarisse é uma jornalista de vinte e quatro anos que acabou de saber que está grávida e, para abafar a vontade de chorar, ri sozinha, com um copo de chá na mão, enquanto rabisca frases numa agenda filofax, na descabelada sala de reuniões d’O Insubmisso, numa tarde de Abril de 1987. Aguarda a chegada da directora e dos restantes convocados para a histriónica reunião semanal de títulos d’O Insubmisso, um semanário recém-nascido que pretende tornar o jornalismo escrito «uma rajada de inteligência, humor, originalidade e independência». Não necessariamente por esta ordem, e não é por acaso que o excelentíssimo leitor regista, neste bélico enunciado de princípios, a ausência da palavra rigor.
– Rigor é para os mortos,
dizia o director-adjunto.
Clarisse, tal como eu a imagino, não levava à letra esta provocação; começara a trabalhar aos dezanove anos num jornal diário, onde nunca havia tempo, espaço, nem autorização para fugir ao espartilho de seis varas «O quê/quem/onde/como/quando/porquê», e raramente, aliás, se atingia o foco radioso do porquê. N’O Insubmisso essa interrogação última transformava-se na razão de ser de reportagens e entrevistas, a sinceridade do olhar subjectivo era acicatada, a agenda descolava-se dos desfiles do poder
– Não quero fotografias de Portugal sentado,
reiterava o director de arte,
– Volto a avisar, matula: se me trouxerem uma colecção de Alípios Abranhos esbarrondados no Parlamento, vai tudo para o lixo e chapo fotogramas do Manoel de Oliveira em todas as páginas.
– Quem é esse Oliveira? – perguntava, genuinamente curioso, o empertigadamente engravatado editor da secção de Economia.
– Um gajo que há-de continuar a deslumbrar gerações futuras quando os vossos pudins da política estiverem todos mortos.
– Tu não podes fazer isso, Daniel. Um jornal não é uma obra de arte, é informação – repisava pacientemente a directora.
Daniel Gama lançava então uma diatribe devastadora contra a chamada «informação». Um dia, a directora arrastou-o para um cocktail de lançamento de um livro de mexericos políticos, para o apresentar aos barões da imprensa. Não correu muito bem. Saiu-lhe ao caminho um homem vivaz, de barba afiada, clamando:
– Daniel Gama! Que excelente trabalho tem feito n’O Insubmisso! O design do jornal é de uma modernidade espantosa!
– Com quem tenho o prazer de estar a interagir? – indagou, pomposamente, o jovem criador da imagem d’O Insubmisso.
– Chamo-me Marcelo e percebo alguma coisa de jornais.
Era este Marcelo o histórico fundador, ainda no tempo da ditadura, do grande concorrente d’O Insubmisso, e então director de um outro semanário. Mas Daniel Gama tinha mais que fazer do que anotar as figuras da imprensa ou da política, que desprezava sem intensidade ou alarde. Viria a emigrar para Inglaterra poucos anos depois, rejeitando a imprensa para se consagrar à pintura e estabelecendo-se como o celebrado sucessor de David Hockney. Isto não nos diz nada sobre Clarisse Garcia, que será uma figura central neste romance, mas diz-nos alguma coisa sobre a época e o espírito em que esta personagem se inseria. Clarisse conhecera o talentoso Gama quando ele aparecia nas redacções dos jornais a vender desenhos
– A ilustração dá ao leitor espaço para respirar. É o futuro
e ficava fascinada com a habilidade do artista para seduzir editores de Cultura, furtando-se às encomendas específicas e impingindo-lhes os trabalhos que já trazia prontos:
– Este desenho de um quarto com roupa espalhada pelo chão é muito bonito, mas não tem nada a ver com o Congresso dos Escritores.
– Pense bem, mestre: o que é a literatura senão um quarto em permanente desalinho, uma cama eternamente desfeita, um sonho que entra pelo dia e vai navegando, como o navio que se vê desta janela?
O jornalista a quem Daniel chamava mestre sorria, sabendo-se levado e feliz por se deixar ir naquela deriva, com o navio melancólico que se avistava do quarto vazio do desenho. E comprava.
Clarisse ficou imediatamente encantada com a inexaurível capacidade de argumentação de Daniel e com a novidade autêntica do seu olhar sobre o que quer que fosse. Tornaram-se amigos e, n’O Insubmisso, parceiros entusiastas em contínuo fluxo de inspiração mútua. Clarisse ancorava quase sempre no estirador de Daniel; enquanto ele paginava, ela bosquejava os próximos textos nos caderninhos de capa preta que ele lhe oferecia. Ambos partilhavam o prazer infantil do desenho manual de palavras e traços que se transformariam depois em matéria impressa, sólida, democrática e irrelevante. O jornal era para eles uma brincadeira, uma actividade experimental a que se dedicavam com convicção e riso. Imunes ao cepticismo irónico que então entrava em moda, preferiam-se ingénuos e obcecados como adolescentes. Aliás, o cheiro a adolescência era talvez a principal razão do êxito d’O Insubmisso; a média etária da redacção era de vinte e cinco anos. O jornal construía-se turbulentamente entre directas sucessivas, numa nuvem de fumo denso que resistia a quezílias, paixões, ciúmes, guerras de facções, cansaços e deslumbramentos. Desde a sua inauguração ainda não se chegara a apagar a luz daquela redacção ampla, desarrumada e despojada: havia sempre alguém a trabalhar pela noite dentro. Alguns dormiam ou comiam sobre as mesas de trabalho, a atmosfera rescendia a cachorros quentes, fumo de cigarros ou flores.
– Que marca de tabaco é que vocês fumam, que cheira a flores? – perguntava a directora, de botas da tropa e cachimbo na boca, entrando na zona do caderno de Cultura, habitada por uma tribo de jovens pós-modernos de cabeleiras esculpidas e roupagens de morcego.
Um biombo de plástico transparente separava a zona dos boémios da zona yuppie do jornal, habitada por rapazes de gravata e raparigas de saia-e-casaco e colar de pérolas, jornalistas de Política e Economia que se mantinham às três da manhã agarrados ao telefone como se laborassem na Bolsa de Nova Iorque. Décadas depois, erguer-se-ia a lenda, exagerada, como todas as lendas, de que aquele jornal carburara a comprimidos, drogas e álcool. O combustível d’O Insubmisso era um composto de juventude, vontade de vencer e diversidade – palavra que viria a entrar na moda com o terceiro milénio, mas que ali ganhou corpo, sem que ninguém a pronunciasse.
Nessa tarde de Abril do ano de 1987, Clarisse viu num diário de escândalos um título que lhe prendeu a atenção:
Professora acusada de relações sexuais com aluno de 14 anos
A história brotara numa escola suburbana que a jornalista tinha frequentado durante o último ano do liceu, o que lhe aguçou o interesse. Pensou que ali estaria decerto uma reportagem original. Daniel disse que os rótulos etários provavam que o fascismo nunca se extinguiria: sempre haveria um polícia atrás de qualquer pessoa que ousasse desafiar a ordem superiormente estabelecida.
– A idade tornou-se um gueto. E de guetos percebo eu.
O avô materno de Daniel morrera em Auschwitz; a avó conseguira fugir com as filhas do gueto de Varsóvia e chegar a Lisboa.
Clarisse decidiu procurar a professora.