17.

– Não sei aonde é que o mundo vai parar. Já não há moral. Já viu isto?

Mafalda Joaquina Abranches da Nóbrega Pinto Delgado folheava os jornais ao lado do marido, pachorrentamente, após o brunch que todos os dias partilhavam, cerca do meio-dia, no soalheiro alpendre do casarão da Quinta da Delgada, voltado para os prados e para a piscina. A platinada, tagarela e devotada consorte do cavaleiro tauromáquico, ainda em robe de cetim rosa, empenhava-se em amimar o cônjuge naquele único momento do dia em que se encontravam a sós. Nuno Gonçalo Pinto Delgado, no entanto, preferia manifestamente a leitura silenciosa dos títulos dos jornais e emitia uns «hum, hum» distraídos em resposta aos comentários da legítima.

– Nuno, preste atenção. «Professora presa por relações sexuais com menor cabo-verdiano.» Não acha uma vergonha? Ainda por cima um pretinho, coitado, não deve ter ninguém que tome conta dele. E passa-se isto no século XX, nos arredores de Lisboa. Ildo, chama-se o pobre do miúdo. Nem um nome de jeito lhe souberam pôr, deve andar mesmo ao deus-dará.

O nome do rapaz provocou um sobressalto no conde da Delgada:

– Mostre-me cá isso – retrucou, puxando o tablóide das mãos de Mafalda.

Leu a notícia e ergueu-se de rompante, dizendo à mulher que tinha de ir, que já estava atrasado para o treino.

– Treino? O Joaquim disse-me ontem que vinha cá ter consigo pelo meio-dia e meia para verem a agenda da próxima temporada, ou já se esqueceu? O que é que lhe deu, de repente? Tenha calma, ontem veio tão tarde, não se vai pôr já a cavalgar. Tem de descansar, Nuno, pela sua saúde.

Na véspera, de facto, Nuno Pinto Delgado ateara a noite com um javali bem regado no restaurante-bar Sela Portuguesa, acompanhado pelo seu apoderado, pelo seu grande amigo e rival Francisco Salgueiro e pela rapaziada do grupo de forcados da Delgada. Celebravam a recente e ditosa tournée de Nuno e Francisco nas principais praças mexicanas. O repasto foi pontuado pelos sucessivos brindes de Francisco a Nuno, que considerava seu mestre, mentor e principal responsável por todos os seus êxitos. Dali partiram os dois amigos, abraçados e já muito entornados, com duas aparatosas raparigas e três homens do grupo de forcados, para uma suíte de motel, onde os cinco companheiros de faena cavalgaram as duas moças, alternadamente ou em conjunto. Todos eles cultivavam com denodo as relações íntimas com o maior número possível de mulheres – a que nunca se referiam como mulheres, reservando essa denominação exclusivamente para aquelas com as quais haviam contraído matrimónio, e nas quais praticamente só tocavam, com respeito e devoção, para o ínclito desígnio de aumentar a prole; todos os outros seres do sexo feminino constituíam, na boca destes homens e por atacado, «o belo sexo» ou, tratando-se de nomear itens avulsos, «moça», «garina», «gaja» ou «sela». A degustação partilhada das delícias do corpo feminino alcandorava-os aos píncaros da volúpia; atingiam deste modo um grau de camaradagem física que os tornava uns dos outros, numa cerimónia bailada de extrema comunhão de virilidade. Entrar numa mulher onde um companheiro acabara de se satisfazer representava uma inconfessável fusão com o próprio amigo, do mesmo modo que espetar um par de bandarilhas num touro ou lançar-se-lhe na cara era uma prova de sublime valentia que emblemava a aliança com o sofrimento, a pujança e a mortalidade do touro. Touro, diz esta narradora, metida nos confortáveis curros da distância crítica; porque aqueles homens diziam toiro, «mê toiro», «toiro lindo», saracoteando-se bravamente, a pé ou a cavalo, em jaquetas floridas ou casacas bordadas. Em se tratando da partilha de carne de mulheres, obviamente, apresentavam-se desembaraçados de meias, collants, calções justos, coletes de ramagens e camisas de folhos, enfunados de desembainhada masculinidade, e as interjeições eram outras, reportando-se embora às reses com chamamentos igualmente aguilhoadores, tais como «És mêmo boa, loira»; «Ah, cabrita, que sabes tão bem», ou expressões de um vernáculo mais farpado mas de idêntico teor.

Nuno despertara devagar, na ténue claridade da madrugada, com um viçoso cantar de galo, e acariciou a macia cabeleira que dormia sobre o seu estômago, até se aperceber de que a cerrada floresta daqueles cabelos pertencia a Francisco. Ergueu-se com um salto brusco que acordou a jovem deitada ao seu lado, mas Francisco agarrou-a pela cintura, encostou-lhe a cabeça ao almofadado peito e continuou a dormir serenamente. Nuno acendeu um cigarro, sentou-se no cadeirão coberto de roupas amachucadas, e assim acabou de acordar, contemplando, enternecido, os corpos enroscados no sono, a que os primeiros raios da madrugada davam um brilho de mundo inaugural.

Joaquim Corvacho demorava a chegar para o encontro combinado e, num segundo, Nuno trocou a surpresa e o susto da notícia que acabara de ler pela fogosa memória da noite anterior. Que tinha ele a ver, afinal, com esse garoto que, aos catorze anos, já bandarilhava a professora? Era bem seu filho, isso sim, o malandro do mulatinho; a história do jornal confirmar-lho-ia, se não tivesse estado sempre tão seguro da fidelidade inoxidável de Paulina. Essa quente e jovem Paulina dos seus vinte e cinco anos, que trabalhava numa tasca próxima do Instituto Superior de Agronomia, onde o herdeiro do conde da Delgada andava há sete anos a lazeirar tranquilamente o curso que o pai queria que ele fizesse, poupando-lhe o desastre da guerra no Ultramar. No borrascoso e lento Inverno de 1972, o sorriso branco daquela mulher negra, um sorriso opulento, auto-suficiente, absoluto, arrombara-lhe a alma como uma bebedeira de sol. Ela aproximava-se com a bandeja de cervejas, e as ininterruptas cordas de chuva daquele impiedoso mês de Dezembro transformavam-se em cordas de uma harpa de prata diante da qual o seu corpo dançante refulgia. Passou a frequentar diariamente a tasca, sem aceitar que era o fascínio pela criada negra o que o arrastava e prendia àquele lugar. Até à tarde em que se pegou à pancada com dois colegas que, não contentes com as chalaças insultuosas que, entre gargalhadas, atiravam à rapariga,

– faziam-se umas boas brasas contigo, tiçãozinho

– traz mais uma rodada, pretinha, que com esta sede até a tua catinga bebia

– vê lá não te enganes na conta, chocolate, senão lá terei de te comer

lhe lançaram as mãos ao traseiro, às pernas, às mamas. Tentou enxotá-los, mas insistiam, perante a indiferença do taberneiro – que, de resto, também costumava passar-lhe as mãos pelo corpo, atrás do balcão. Então desferiu um soco no estômago de um deles, desencadeando a reacção do outro – altura em que o taberneiro saiu da sua pasmaceira para vir enxotar os rapazolas. Rebolaram os três, embrulhados em chuva, pelas pedras enlameadas da calçada. Nuno levantou-se, disse:

– Vocês são umas bestas. Desandem, não vos quero ver mais, sacanas.

Os outros afastaram-se, zombando:

– Olha o fidalgo das pretas! O chulo das escarumbas!

Ao voltar a entrar na tasca, Nuno apercebeu-se de que Paulina chorava, de cabeça baixa, diante do patrão, que a despedia.

– Esta menina é maltratada e o senhor, que nem sequer soube defendê-la, ainda pretende despedi-la? Por cima do meu cadáver! Despeça-a, e eu garanto-lhe que lhe armarei um tal boicote que nunca mais servirá uma cerveja nesta espelunca!

O taberneiro mudou rapidamente de conversa e de humor, garantindo ao cliente que tudo não passara de um mal-entendido, e Paulina ergueu para Nuno um olhar de deslumbrado agradecimento que ele nunca mais pôde esquecer. Nos momentos graves da sua vida, acode-lhe aquele dito de herói de capa e espada

– Por cima do meu cadáver

emoldurado no fulgente reconhecimento daquele par de olhos esverdeados que lhe mostravam a luz de um planeta estranho, hipnótico. Convidou Paulina para jantar, levou-a a um restaurante acolhedor, propriedade de um ex-forcado seu amigo, adornado com cabeças de touros, bandarilhas e capotes. Paulina nunca se havia sentado à mesa de um restaurante, ficou aturdida com a quantidade de pratos do menu, limitou-se a balbuciar «como o mesmo» quando Nuno escolheu, para entrada, ovos mexidos com farinheira e, em seguida, miminhos de touro bravo. Escutou, embevecida, as façanhas do já notável cavaleiro tauromáquico e acabou a noite vorazmente beijada contra a vetusta pedra da Torre de Belém. Nuno Delgado não conseguiu descortinar exactamente a morada da rapariga, porque ela pediu que a deixasse no início de uma larga avenida do subúrbio ribeirinho da cidade, a poucos quilómetros de Belém, alegando que não podia arriscar-se a que o pai a visse chegar a casa com um homem, e sumiu-se, com o seu corpo dançante, na cortina de água. Viria mais tarde a perceber que Paulina morava num bairro-de-lata existente atrás dessa pomposa e moderna avenida de Miraflores, numa barraca feita de tábuas de andaimes e placas de zinco, com a família, que viera em 1962 da ilha de Santiago, Cabo Verde, na esperança de escapar à pobreza, porque o pai arranjara contrato para trabalhar nas obras do metropolitano de Lisboa. Agora o pai de Paulina trabalhava como pedreiro nos arranha-céus que cresciam diante das barracas de emigrantes e ciganos como hinos ao progresso. Todos os anos matutava em construir uma casa de tijolo para a família, mas temia que o imparável progresso viesse arrasar a encosta onde se erguia aquele bairro clandestino, e considerava que seria melhor aforrar as magras poupanças para um dia regressar à ilha. Mesmo que conseguisse convencer o mestre-de-obras a fornecer-lhe tijolos e telhas a preço de custo, ainda era dinheiro. A chuva e o frio entravam sem cerimónia pelas fendas da madeira e pelos intervalos da chapa do telhado, mas o velho Sandro Silva concentrava-se no seu mantra: «Tudo passa.» Nessa noite de tempestade em que Nuno deixou Paulina à entrada de Miraflores, a jovem correu, voou, flutuou sobre a rua e depois pela íngreme encosta enlameada, entrou em casa com os pés encharcados, os sapatos pesados de lodo transformados em asas cintilantes, explicou à mãe, ainda acordada, aflita, que fizera horas extra no café porque houvera uma festa, e deitou-se de mansinho ao lado do irmão pequeno, tentando não fazer chiar a velha cama de ferro, escutando o sussurro do rio nos pingos de chuva que caíam no balde de lata colocado como mesa-de-cabeceira, vendo um céu cravejado de estrelas na placa de metal bambo do tecto e adormecendo suavemente com o sorriso imobilizado no olhar de Nuno, repetindo para si mesma:

Hoji n’odja homi di nha vida.

Verdade – mas não exactamente a verdade que a crédula e cândida Paulina nesse tempo idealizava. Nuno Pinto Delgado, por seu turno, teve dificuldade em conciliar o sono após essa inicial noite de amor, nos lençóis de linho entre os quais o aguardava uma amorosa botija de água quente deixada pela criada, no seu acolhedor quarto do último piso de um prédio de apartamentos art-noveau do centro da capital; arquitectava a forma de conciliar os encontros com Paulina e o noivado com Mafalda, meditava no melhor método de prolongar o curso sem enervar o pai, para conseguir adiar o casamento, e sobretudo conjecturava um esquema para levar Paulina à quinta da Delgada, para lhe mostrar os seus cavalos e para se deliciar a adestrá-la nos volteios do prazer. Tinha um par de corridas marcadas no Ribatejo mas, enquanto Paulina continuasse presa ao trabalho na tasca, não havia perigo de que ela decidisse acompanhá-lo.

Viveram quatro meses de completa felicidade, abruptamente encerrada pela acusação de Mafalda

– Enganar-me com uma preta. Você mete-me nojo.

e pela concomitante revelação da gravidez de Paulina:

– Tens a certeza que é meu?

Foram os nervos. Perturbado, Nuno deixou sair a primeira coisa que lhe veio à cabeça, as palavras voaram-lhe pela boca, desatinadas, sem querer. Paulina disparou-lhe uma bofetada que lhe desmantelou o desatino.

– Foi sem querer, coisinha.

– Nunca mais me chames coisinha. Nunca mais, ouviste?

– É com ternura. Sabes que eu gosto muito de ti. Eu não duvido de ti. Mas não estava à espera.

– O que é que pretendes fazer em relação ao nosso filho?

– Fazer?… Eu sou muito novo para ser pai, Paulina.

– Tu não queres mas é ter um filho preto. É isso.

– Não, não. Enfim, não gostava que o meu filho sofresse, entendes… Não estava preparado para isto.

– Para que é que estavas preparado? Para dares mais umas voltas comigo até te cansares, não é?

– Não, não, mas isto é muito precipitado. Não conheces ninguém?

– Não conheço ninguém, para quê?

– Então, para resolver o problema.

– Problema? Tu estás a pretender que eu faça um aborto?

– Eu vou contigo. E pago, claro.

– Claro. E dizes tu que és católico, que acreditas em Deus.

– Acredito. Mas isso não tem nada a ver, Paulina. Isto não pode acontecer, percebes? É que, ainda por cima, estou noivo.

Já não tinha nada a perder; talvez assim Paulina caísse das nuvens e percebesse que não estavam exactamente no Paraíso, mas sim em Portugal. E em 1973. A rapariga aproximou-se até quase colar os seus olhos nos dele e disse-lhe, com a abrupta serenidade do irreparável:

– Tenho dó de ti. Nem é pena, é pior. Pobre desgraçado, vai à tua vidinha de pau-mandado. Eu chamo-te quando for preciso registar o bebé. O meu filho não vai ter ficha de pai incógnito. Nem vai passar fome, percebeste?

– Mas eu não posso fazer isso, o meu pai deserda-me.

– Eu não quero falar com o teu pai, nem com ninguém da tua família. Mas, se me deixares na miséria, falarei com quem for preciso. Até com os jornais.

– Tu não podes fazer isso.

– Eu posso tudo. Sou só uma preta sem eira nem beira. Não tenho nada a perder.

Nuno tentara ainda, com palavras mansas, convencer Paulina a abortar. No pavor do momento, chegara a dizer-lhe que ia largar Mafalda – que, de facto, acabara o namoro com ele na véspera, mas que estava convicto de poder reconquistar – e que era ela o grande amor da sua vida. Nada, porém, demoveu Paulina – e Nuno, atemorizado, acabou a perfilhar esse filho que nunca viu e a pagar uma pequena pensão à rapariga. Alegava que ganhava pouco com o toureio, mentira dia-a-dia maior, e que só teria acesso ao dinheiro da família quando o pai morresse.

– Diga ao Joaquim que vá ter comigo à arena. Vou desemperrar um bocado.

– Você anda muito perro, anda. As suas filhas nem conseguem pôr-lhe a vista em cima, coitadas. Veja se pelo menos hoje vem jantar com as miúdas.

– Logo se vê. Elas têm uma boa mãe, é disso que as cachopas precisam. O trabalho do pai é dar-lhes o sustento, e quanto a isso não pode você dizer que tem razão de queixa. Até logo, amor.

Mafalda pensou que a palavra amor, na boca de Nuno, que aliás a pronunciava cada vez mais com um i final de campesino, «amori», não significava absolutamente nada. Amor, talvez só pelos touros o experimentasse; pelas três filhas, certamente que não. Culpava-a sub-repticiamente por não ter sabido ainda dar-lhe um filho homem, Mafalda bem o sentia. Provavelmente, gastava a testosterona toda com os touros, não lhe sobrava o bastante para fazer um macho, naqueles actos rápidos e cada vez mais espaçados que cumpria com um desinteresse de estafado ritual. Uma vez ainda lhe dissera que, se mostrasse maior empenho, talvez a coisa resultasse, mas o marido recriminara-a imediatamente por essa observação que considerara ofensiva, de mau gosto e capaz de capar um homem.

– Está descontente? Esforce-se mais, que tem menos que fazer do que eu. Não é com as suas lamúrias que me aumentará o entusiasmo, nem isso é conversa digna de uma senhora.

Com as amigas não podia desabafar estes aviltamentos; sabia que se tornaria alvo de troça ou, pior, de compaixão. Já quase só se dava com mulheres de cavaleiros, bandarilheiros ou forcados; as amigas de juventude moravam na cidade, eram professoras ou donas de casa casadas com médicos e advogados, não entendiam o mundo dos touros nem do campo; encontrava-as uma ou duas vezes por ano em festas de antigos alunos ou em cerimónias oficiais, mas já nem fingiam que tinham interesse nela. As mulheres do seu mundo actual só falavam dos feitos dos filhos homens, que começavam a cavalgar antes mesmo de andarem, das glórias tauromáquicas dos maridos, de pontos de malha ou de croché e de organizar galas a favor disto ou daquilo; nunca de si mesmas e dos seus problemas; talvez nem lhes ocorresse que pudessem ter problemas. Ultimamente, Mafalda sonhava com o bandarilheiro do marido, um rapaz de pernas altas e pescoço de cisne, mais novo do que ela, o que fazia com que, ao acordar, se sentisse ainda mais triste, culpada e inútil do que de costume. Acreditara com todas as suas forças no amor, na família e em Deus; na prolongada solidão da planície ribatejana, todas as suas crenças desapareciam. No encanto ruidoso das filhas ressoava apenas a voz das suas ilusões perdidas.

Nuno Pinto Delgado pediu a um dos seus campinos que lhe selasse o seu cavalo favorito mas, em vez de entrar para a arena, decidiu cavalgar pela lezíria perfumada pelo aroma das giestas e alagada de sol. Precisava de se acalmar.