25.
Porém, Maria Dolores Martins viu-se obrigada a concluir que o altaneiro intento de fazer justiça não era fácil, no Portugal de 1987; antes pelo contrário. Nessa vetusta época, a lei destrinçava crianças de adolescentes e não atribuía especial gravidade às relações íntimas entre uma capitosa balzaquiana e um rapaz de catorze anos. Nas cidades, abandonara-se já o ritual paterno de conduzir os filhos homens a um prostíbulo, entre os catorze e os dezasseis anos, para os iniciar nos mistérios e prazeres do sexo. A Revolução de 1974 pusera fim ao modelo burguês alternativo de introdução à educação sexual, que consistia em desflorar jovens empregadas domésticas. Surgiam ainda relatos poéticos, imoderadamente imodestos, dessas iniciações de antanho, em livros de memórias de idosos cândidos, que pretendiam desse modo não somente evocar a virilidade perdida, mas acima de tudo demonstrar que a submissão das servas fora obtida por amor e continuaria a ser por elas recordada com gratidão e delícia. Não se falava de assédio sexual nem pedofilia, e as raríssimas sentenças judiciais por violação erguiam-se como hinos de louvor à bruta masculinidade do homem lusitano. Uma delas, referente ao sequestro, às agressões, a uma tentativa de violação e a uma violação consumada sofridos por duas jovens turistas no remansoso Algarve, levaria quatro juízes do Supremo Tribunal de Justiça, que se recusaram a aumentar a pena de tentativa de violação (dez meses de pena suspensa) e da violação (três anos e quatro meses de prisão) atribuída aos agressores pelo Tribunal de Faro, a sentenciar desta forma: «Se é certo que se trata de dois crimes que não têm qualquer justificação, a verdade é que, no caso concreto, as duas ofendidas muito contribuíram para a sua realização. Na verdade, não podemos esquecer que as duas ofendidas, raparigas novas, mas mulheres feitas, não hesitaram em vir para a estrada pedir boleia a quem passava, em plena coutada do chamado “macho ibérico”. É impossível que não tenham previsto o risco que corriam; pois aqui, tal como no seu país natal, a atracção pelo sexo oposto é um dado indesmentível e, por vezes, não é fácil dominá-la. Ora ao meterem-se as duas num automóvel juntamente com dois rapazes, fizeram-no, a nosso ver, conscientes do perigo que corriam, até mesmo por estarem numa zona de turismo de fama internacional, ondem abundam as turistas estrangeiras habitualmente com comportamento sexual muito mais liberal e descontraído do que a maioria das nativas.» Os juízes consideraram, por conseguinte, que a gravidade do caso se encontrava «algo esbatida». Pode o leitor avaliar o transtorno de engendrar ficções num país em que a realidade atinge a potência deste que a mais alta e douta magistratura definiu como «coutada do macho ibérico».
Uma outra vertente deste mesmo transtorno se apresentou, por conseguinte, à empreendedora Lola, quando correu para a mais próxima esquadra de polícia naquele entranhado e imediato impulso de delação que constitui o aromático barro do carácter português. O agente de turno perguntou-lhe se o jovem e a professora estavam a cometer algum atentado ao pudor na via pública; não podendo, nem com a maior boa vontade, considerar-se como tal o consumo de duas garrafas de refrigerante, ficava o crime sem prova e o agente sem motivo para actuar. Lola desbobinou a história toda, temperando-a com uns sais extra de luxúria – mas, para seu escândalo, o agente limitou-se a sorrir e, encolhendo os ombros, comentou:
– Deixe lá o fedelho divertir-se, senhora, que a mocidade não dura para sempre. Ainda por cima pretinho, não é? Olhe, antes andar com a professora do que na droga ou no gamanço.
A raiva e a frustração agiam como vitaminas sobre os neurónios e o sentido moral de Lola. Decidiu que havia de apanhar a pornográfica professora em flagrante; abichou uma baixa médica através de um médico amante de uma amiga, à qual, com uma cunha de um tio, havia arranjado emprego na Câmara Municipal, e postou-se em frente à casa de Violeta, com uma lancheira cheia e uma geladeira portátil carregada de cervejas geladas, a montar-lhe vigilância. Nos primeiros dias, não conseguiu nada; o rapaz aparecia e sumia-se no interior da casa, mas as persianas corridas não deixavam passar sequer um rasto de luz. Na quarta noite, de Lua cheia e calor intenso, o casal saiu, pelas oito e meia, e meteu-se no pequeno carro de Violeta, dirigindo-se para a Marginal. Maria Dolores ligou a ignição e seguiu-os, discretamente, à distância. Percorreram cerca de trinta quilómetros e estacionaram junto à Praia do Guincho, descendo abraçados pelas dunas. Quando percebeu que o par estendia uma manta no areal e se deitava, começando a desabotoar as roupas, Maria Dolores correu para o seu automóvel e arrancou, parando em frente ao hotel da praia, de onde telefonou para a esquadra. Os polícias chegaram vinte minutos depois, encontrando os amantes nus e abraçados sob o luar leitoso. Ildo protestou que queria ir com Violeta para a prisão, mas os agentes deixaram-no em casa. Violeta, espantosamente tranquila, sorriu-lhe e disse-lhe que não se preocupasse, que tudo iria correr bem. Desta vez, como era um sábado, passou duas noites na prisão. O juiz de instrução ouviu-a ao princípio da tarde de segunda-feira e mandou-a para casa:
– Veja lá se tem juízo, senhora. Já não tem idade para esses arroubos. Pense nos seus filhos.
– Quem foi que me denunciou, senhor juiz? Diga-me só isso, por favor.
– O que é que isso importa? Não sei, nem lhe adianta nada saber. A senhora tem é que pensar na sua vida.
Ana Lúcia esperava-a à saída. Violeta telefonara-lhe da prisão, sem esperança de que ela a atendesse, só porque não tinha mais ninguém a quem recorrer. Mas Ana Lúcia atendera; com um fio de voz sobrenatural, recomendara-lhe calma e contenção. E surgia agora em figura desmantelada, ossos à tona da pele, olhos invadidos pelo lodo, de braços abertos para a receber:
– Saíste-me cá uma tonta!
– Estás tão magra, amiga. Onde andaste?
– Fora do mundo. Como tu, mas às avessas. Pensas que por inchares como um balão vais conseguir voar?
– Este filho traz as minhas asas.
– É do rapaz, não é?
– É nosso. Meu e dele. Não há rapazes nem raparigas, Ana Lúcia; há sintonias.
– Mas a diferença de idade entre vocês é uma loucura. Ele ainda não viveu nada.
– E eu, o que é que eu vivi? O tempo é só a distância que fica entre a vida e a morte.
– Quando tu fores velha ele será novo. Este momento há-de passar.
– Com o Ildo, percebo que os momentos são apenas as notas da música da duração. O amor é uma coisa inteira. Uma coisa impermeável ao tempo. A maioria das pessoas nem chega a saber isso, porque é educada para a escadaria dos momentos, que é a da decepção.
Caminhavam de braço dado e Ana Lúcia sentia que cada passo ritmado pelo passo de Violeta representava um acréscimo de energia. Havia na loucura sentenciosa da amiga alguma coisa de fresco, feliz e contagioso. Quem era ela para dizer o que estava ou não certo? A paixão de Violeta podia não passar de uma ilusão juvenil – mas que importância tinha isso, se essa ilusão iluminava tudo ao seu redor? O tempo parecia finalmente uma matéria plástica, que se podia dobrar, esticar, fragmentar, multiplicar, fintar. A possibilidade de transmitir imagem e som em tempo real entre os continentes estava a ponto de se tornar realidade. A ciência mostrava-se cada vez mais capaz de prolongar indefinidamente não só a vida, como também a juventude. No novo milénio, que se adivinhava já numa das próximas curvas, todos morreríamos jovens e centenários. A Ana Lúcia, a juventude parecia-lhe um período bárbaro de afirmação através da crueldade – mas talvez essa crueldade pudesse atenuar-se, se os compartimentos etários se esfumassem.
– Porque é que desapareceste, diz-me?
– Não consigo dizer-te. Não me culpes, por favor.
– Não, não te culpo. Chega de culpas; não trazem nada de benéfico. Só queria saber quem me perseguiu e chamou a polícia. Não havia ali ninguém. Deve ter sido aquela puta daquela jornalista d’O Insubmisso. São uns vampiros, estes jornalistas: alimentam-se do sangue dos outros.
Porém, as fotografias do par enlaçado e despido no lençol das dunas apareceram na capa de outro jornal, um diário tablóide: PROFESSORA DÁ LIÇÕES DE SEXO AO LUAR. A noite e a má qualidade da imagem protegiam a identidade dos amantes, mas os nomes de ambos estavam escarrapachados na notícia. Dolores enviara para o jornal o envelope com as fotografias e uma carta anónima tipografada, explicando que podiam confirmar com a polícia a veracidade da história; cogitara que, já que a lei era branda com aquela desavergonhada, tinha de fazer alguma coisa para conseguir que a expulsassem da escola. E os seus bons ofícios foram recompensados: Violeta recebeu uma carta de expulsão por «reiterado comportamento impróprio», passível de «afectar gravemente o bom nome da instituição». O advogado explicou-lhe, já sem paciência, que, se não quisesse ser definitivamente expulsa do ensino, teria de deixar de ver Ildo. Ana Lúcia insistia para que fosse visitar os filhos, antes que o marido lhos retirasse para sempre, mas Violeta não sabia como encarar os sogros, depois de aquela fotografia escandalosa ter passado dos quiosques para os ecrãs de televisão. Paulina, por seu turno, foi bater-lhe à porta, suplicando-lhe que largasse o filho.
– Esfolo-me para que o menino tenha uma vida melhor do que a minha, doutora. O que nos está a fazer não é justo.
Violeta perguntou-lhe se Ildo sabia daquela visita e se lhe perguntara o que sentia. Paulina falava do rapaz como de uma criança destituída de arbítrio e Violeta falava dele como de um homem capaz de decidir a sua vida. Ildo, entretanto, recebia a visita da sua colega Sónia, preocupada com as consequências da chocante publicidade ao romance com a professora.
– A sotora obrigou-te?
– Achas que alguém me obriga a alguma coisa? A mim? – A voz, que pretendia poderosa, saía-lhe em falsete. Sempre que se concentrava em falar à homem, a voz escapava-se-lhe, como se as suas cordas vocais albergassem uma rapariga maliciosa, pronta a pregar-lhe rasteiras.
– Gostas dela? Mesmo a sério, para namorada?
– Acho que sim. Nunca tive uma namorada.
– Porque nunca quiseste. – Assim que acabou de pronunciar estas palavras, a garota arrependeu-se e o seu rosto redondo tornou-se uma maçã escarlate.
– Nunca sequer pensei nisso – respondeu Ildo, em voz baixa. – Mas ela está à espera de um bebé. E um bebé precisa de um pai.
– Tu também não tiveste pai. Olha, eu preferia não ter pai.
– Não digas isso.
– Não sei o que te diga.
– Não digas nada.
– Queres jogar Monopólio?
– Eu não tenho Monopólio.
– Então, sei lá. Queres ir ao centro comercial?
– Não, deixa. Não me apetece ir à rua.
A garota ligou a televisão e puseram-se a ver desenhos animados, em silêncio. Circulava entre os dois jovens uma melancolia suave que entrava pelas frestas das muralhas de solidão em que cada um deles se sentia emparedado, apaziguando-os. Sónia tinha vontade de pegar na mão do amado amigo, para a acariciar devagar; travou-a, não tanto o medo da rejeição, a que já estava acostumada, mas a sensação física da indisponibilidade daquele corpo que desesperadamente amava. Ildo queria despir a pele, os nervos e a carne e transformar-se num novelo de penas e asas, pairando sobre o mundo, como um avião sem passageiros nem rota, em roda livre. Já não sabia se o que sentia por Violeta era amor ou outra coisa, de uma matéria mais áspera, como o que sentia pela mãe. Violeta despertava-lhe ainda e sempre o desejo, mas também o desejo se tornava pesado como o ferro de uma âncora. Não conseguia fugir dela e não podia fugir com ela: em toda a parte, seriam um miúdo e uma mulher, uma entidade estranha, impudica e imprevista.
Quando Paulina chegou, encontrou os dois adolescentes sentados no sofá, dormindo. Os caracóis negros de Sónia espalhavam-se sobre o ombro de Ildo, no qual a sua cabeça se abandonara. Duas crianças aguardando serenamente os desafios da vida. Nos últimos tempos, Ildo dormia mal; Paulina ouvia-o às voltas no quarto e na cozinha, abrindo e fechando o frigorífico, rodando sobre si mesmo através da noite. A princípio comovera-a o interesse da professora, e agora penalizava-se por não ter sabido defender o filho do abuso de que fora vítima. A história repetia-se: Nuno abusara da sua ingenuidade, a professora abusava da ingenuidade do seu precioso menino. Os brancos servindo-se dos negros, usando-os a seu bel-prazer, sem considerarem os seus sentimentos, necessidades ou vontades. Sempre tinha sido assim e sempre assim seria. Fizera mal em tentar ocultar do filho o racismo insidioso do mundo dos brancos. Fizera mal em não ter acompanhado a família no seu regresso a Cabo Verde. Inicialmente, pensara que um dia conseguiria montar o seu próprio café, tornar-se uma mulher bem-sucedida e mostrar ao homem que a enganara que, apesar dele, vencera. Tentara estudar à noite, mas desistira – estava demasiado cansada, não tinha ninguém com quem deixar o filho e, de qualquer forma, mesmo que se formasse, ninguém iria contratá-la para um banco ou para uma empresa importante. A cor da pele mantê-la-ia à margem daquela sociedade. Persuadiu-se de que com o filho seria diferente – porque era homem, e porque a discriminação iria sendo podada pela interiorização das leis da modernidade, no Portugal democrático e europeu. Fora parva, estúpida, ingénua, crédula – e terrivelmente desleixada. Uma má mãe. Falhara no seu único projecto de vida: resgatar o filho ao antiquíssimo sofrimento da raça. Não sabia o que fazer. Os jornais não se calavam com a infausta história; faziam parangonas com o abandono a que o valoroso cavaleiro tauromáquico votara o filho – essa era, na verdade, a única parte que lhe agradara; tratava-se de uma pífia vingança mas, ainda assim, uma vingança. Embora não se sentisse confortável com o estatuto de vítima, havia nele qualquer coisa de sagrado, puro e redentor; talvez fosse a sua única hipótese de passar do miserável estatuto de preta pobre ao pedestal de mulher sacrificada.
Desligou a televisão, temendo que a fotografia difusa do corpo do filho estendido sobre a mulher branca surgisse de novo no ecrã. Foi para a cozinha preparar o jantar, deixando os garotos dormindo na sala. Fechou a porta e ligou o rádio: «Vamos agora ouvir Coração Materno, o clássico de Vicente Celestino desconstruído no arrojado Tropicália pela voz de Caetano Veloso.» Paulina sentou-se no banco da cozinha, e as lágrimas escorriam-lhe do rosto para o lava-louça, onde descascava batatas, cortando-as em palitos longos e finos, como Ildo gostava.
Disse um campônio à sua amada:
«Minha idolatrada, diga o que quer
Por ti vou matar, vou roubar
Embora tristezas me causes, mulher
Provar quero eu que te quero
Venero teus olhos, teu porte, teu ser
Mas diga, tua ordem espero
Por ti não importa matar ou morrer»
E ela disse ao campônio, a brincar
«Se é verdade tua louca paixão
Parte já e pra mim vá buscar
De tua mãe, inteiro o coração»
E a correr o campônio partiu
Como um raio na estrada sumiu
E sua amada qual louca ficou
A chorar na estrada tombou
Chega à choupana o campônio
Encontra a mãezinha ajoelhada a rezar
Rasga-lhe o peito o demônio
Tombando a velhinha aos pés do altar
Tira do peito sangrando
Da velha mãezinha o pobre coração
E volta a correr proclamando
«Vitória, vitória, tem minha paixão»
Mas em meio da estrada caiu
E na queda uma perna partiu
E à distância saltou-lhe da mão
Sobre a terra o pobre coração
Nesse instante uma voz ecoou:
«Magoou-se, pobre filho meu?
Vem buscar-me, filho, aqui estou,
Vem buscar-me que ainda sou teu!»