Existe uma Crise da Democracia no Brasil?28
Os debates sobre a “crise da democracia” brasileira não são recentes. Eles se inciaram logo após à implantação da República, com as decepções e os desgostos alimentados pelo novo regime. Em nossos dias, porém, eles se alargaram de uma forma surpreendente, atingindo proporções que atestam os perigos que ameaçam o destino das chamadas “instituições democráticas”. Um clima generalizado de desconfianças confunde partidos e governantes, lançando-se uns contra os outros as suspeitas mais variadas e as intenções menos dignas. O que se afirma abertamente, nos jornais, nas declarações públicas ou nos recintos dos partidos, nos discursos políticos ou nas conversas: 1º) é que o oportunismo impera em toda a parte, ocultando sob as aparências de legalidade pública ou de lealdade política ações e interesses que solapam a ordem legal, a existência livre dos partidos e a influência ativa dos princípios democráticos; 2º) é que a atividade política e mesmo a administrativa escondem uma espécie de exploração comercial do Estado, em escala variável, por indivíduos e por grupos direta ou indiretamente associados ao Governo; 3º) é que a demagogia ou a incompreensão do presente são os dois polos que extremam a ação dos partidos e dos líderes políticos, distanciando-os da solução dos problemas reais, seja pela irresponsabilidade – que conduz ao seu agravamento direto, pela ausência de propósitos corretos – seja pela cegueira – que conduz ao seu agravamento indireto, pela falta de intervenção eficaz.
O diagnóstico propiciado por essas afirmações é invariavelmente o mesmo. Ele consiste na inferência de que “a democracia está em crise” no país. O que varia é a fundamentação do diagnóstico. Uns acham que a “crise” resulta da “crise de crescimento” por que passa o Brasil. Outros, que ela é simples expressão de uma “crise moral” que abala os alicerces da vida social da nação. Há também os que a atribuem à incompetência das elites, despreparadas para o exercício das tarefas que lhes cabem ou incapazes de se elevarem acima de seus interesses mais estreitos. E, ainda, há os que descarregam a responsabilidade nos ombros do “povo”, cuja ignorância e desorientação somente serviriam aos demagogos. Em um plano mais elevado, surgem as análises históricas, que projetam a “crise” na inconsistência dos partidos, sem capacidade de organização e de arregimentação em bases nacionais.
Tanto as afirmações quanto os diagnósticos mereciam ser tomados como objeto de análise sociológica. Ambos traduzem algo que os etnólogos e os sociólogos costumam caracterizar como sintomas de falta de integração nos sistemas socioculturais, quando não são índices de uma situação patológica. No presente trabalho, contudo, limitar-nos-emos a constatá-los, tomando-os como ponto de partida de uma análise que tem por fim situar os mesmos argumentos em outro plano.
1 – A formação política do regime democrático no Brasil
Há dois caminhos para se verificar a consistência das noções vulgares sobre a “crise da democracia” no Brasil. Um consiste em estabelecer um confronto entre os critérios formais de reconhecimento da democracia e a realidade política vigente. Esse caminho foi seguido por Alberto Torres, Oliveira Viana, Azevedo Amaral e outros autores recentes. Ele levou, como não podia deixar de acontecer, à conclusão de que as condições reais da vida política brasileira são incompatíveis com o modelo europeu ou norte-americano de organização democrática da ordem legal. Oliveira Viana, em particular, insistiu num elemento essencial na evidência dos caracteres democráticos de um tipo qualquer de organização da ordem legal: as dificuldades de formação e de manifestação da opinião pública no Brasil. De fato, como escreve Kelsen, “uma democracia sem opinião pública é uma contradição em termos” (cf. General theory of law and state, p. 288). Outro caminho é o que se oferece pela análise dos processos subjacentes às alterações da ordem legal na vida política brasileira. Ele tem sido trilhado de várias maneiras por autores como Nestor Duarte, Nunes Leal, Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque de Holanda. As contribuições desses autores lançam luz sobre muitos processos até pouco tempo ignorados ou mal conhecidos. Assim, graças a eles sabemos que as tensões entre a ordem legal criada pela constituição e a ordem legal criada pelos costumes restringem a plena vigência dos princípios democráticos, colorindo de modo especial toda a estrutura e o funcionamento das instituições políticas em nosso meio, apesar das aparências, que poderiam sugerir o contrário. Este caminho nos parece mais frutífero, tendo em vista os fins da interpretação que pretendemos desenvolver.
A evolução política do Brasil apresenta certas constantes dinâmicas, todas elas dotadas da mesma significação. Uma delas, talvez a mais característica, se mostra na tendência a assimilar modelos de organização da ordem legal elaborados nos “países politicamente mais adiantados”. Essa tendência constitui uma herança necessária das condições coloniais de formação do povo brasileiro. Inevitável durante todo o período colonial e na curta fase de equiparação a Portugal, impôs-se por outras razões, que não podemos examinar aqui, no decorrer do Império e da República. As técnicas sociais de organização do poder político são realmente muito complexas e não é de estranhar que se formem, nos países insuficientemente desenvolvidos, movimentos sociais que têm por objetivo a transplantação de instituições nascidas nos países através dos quais se processou a expansão do mundo ocidental. Com o correr do tempo, essas instituições acabam sendo reinterpretadas, para ajustarem-se ao novo sistema cultural e para poderem preencher funções bem diversas daquelas para as quais foram inventadas. Outra constante dinâmica é a que se oferece na ligação das diversas etapas de organização da ordem legal com propósitos definidos, embora sempre variáveis, de promover e intensificar os laços de integração nacional. Obviamente, cada forma de organização da ordem legal brasileira enfrentou problemas práticos próprios. Mas elas traduzem, em conjunto, da Colônia à III República, uma evolução ascendente na compreensão da necessidade de criar liames morais mais intensos entre os habitantes do país, independentemente e acima das diferenças geográficas, étnicas ou sociais. Por fim, uma terceira característica dinâmica surge na esfera da organização da ordem legal propriamente dita. A importância de elementos autocráticos tende a diminuir gradativamente na constituição do Estado brasileiro, ainda que os regimes de vida política autônoma, experimentados até o presente no Brasil, tenham favorecido a persistência deles em grau elevado.
Essas constantes dinâmicas são índices ou sintomas da operação contínua de processos sociais que tendem para o mesmo fim: a constituição de uma ordem legal democrática, coerente com as condições de existência social do povo brasileiro. Elas sugerem duas coisas. Primeiro, que a instauração da democracia no Brasil não pode ser encarada, literalmente, como um processo de todo incipiente, já que ele se exprime mediante tendências definidas de desenvolvimento histórico-social. Segundo, que se trata de um processo em pleno devir, cujo sentido se torna inteligível somente através da análise de tendências evolutivas. Com isso, acreditamos poder esboçar uma caracterização, que contraria o que se defende, comumente, como verossímil. A ordem legal tende, na sociedade brasileira, para um padrão organizatório democrático.
Seria possível apoiar essa caracterização na moderna tipologia jurídica, para a qual a definição de “democracia” e de “autocracia” se funda na forma de combinação dos componentes democráticos e autocráticos do Estado, abandonando-se a antiga presunção de que tais componentes deveriam ser considerados exclusivos e absolutos. Todavia, isso nos parece desnecessário e mesmo fora de propósito. O que levou alguns autores, como Alberto Torres (cf. esp. O problema nacional brasileiro, passim) e Sérgio Buarque de Holanda (cf. Raízes do Brasil, cap. VIII), a oporem reparos mais ou menos severos à caracterização da ordem legal brasileira como uma ordem democrática, nada tem que ver com a natureza do processo apontado. É que se firmou entre nós uma orientação interpretativa que expôs o Estado brasileiro à análise histórica mas como uma realidade estática. Em consequência, o que nós preferiríamos encarar como efeitos transitórios do funcionamento da ordem legal em determinado período histórico-social tem sido descrito, com maior ou menor penetração, como evidências do termo final da evolução do Estado brasileiro. É claro que, para o investigador, que considera o Estado brasileiro em um momento dado, isso parece verdadeiro. Ele tem diante de si todo um conjunto de normas, integradas dentro de um sistema, e pode muito bem afirmar, com objetividade, que os ajustamentos políticos que elas legitimam correspondem ao grau de controle político alcançado no sistema. Todavia, quando se procede interpretativamente dessa maneira, perde-se de vista que a ordem legal não pode apresentar maior estabilidade que o sistema social global em que ela se insere. Onde o meio social está em formação, é mais prudente não conceber o Estado como uma organização em equilíbrio estável, senão para fins de análise jurídica (quando se tem em mira descrever a constituição da ordem legal mediante a legislação vigente).
A descrição segundo a qual o Estado brasileiro tende para um padrão organizatório democrático não pressupõe, por sua vez, nenhuma implicação que transcenda aos limites das constantes dinâmicas assinaladas, nem mesmo quanto aos efeitos presumíveis da alteração isolada ou concomitante dos processos sociais que as produzem. Assim, o viciamento das eleições pela influência dos “coronéis” ou por fraudes inspiradas no Governo, a incapacidade aglutinadora dos partidos, a inconsistência da opinião pública, a invasão das esferas do Legislativo pelo Executivo ou vice-versa etc. não aparecem, primariamente, como índices da ausência de padrões democráticos de comportamento político. Mas, sim, como ajustamentos possíveis e previsíveis, nos diversos graus em que se podem realizar na prática, tendo-se em vista as condições mesmas do controle legal ou espontâneo das ações e relações políticas em uma democracia ainda na fase de elaboração socio-cultural. Doutro lado, tal descrição não é nem “otimista” nem “pessimista”, em face da vida política brasileira e das suas perspectivas de desenvolvimento. Constitui, antes, uma formulação de caráter especificamente interpretativo, baseada em dados de fato e na presunção de que certas alterações da vida política brasileira possuem alguma regularidade.
Isso permite estabelecer uma equação objetiva do problema que nos preocupa. O diagnóstico proporcionado pelas noções correntes sobre a “crise” da democracia no Brasil carece de precisão e de sentido. Na verdade, não se pode aceitar nem os fundamentos nem as implicações desse diagnóstico no plano da caracterização empírica. Uma “crise” de crescimento ou de desenvolvimento só é admissível, digamos por facilidade de expressão, quando se trata de organismos completamente constituídos. Ora, o que acontece com a democracia no Brasil é que ela está em elaboração socio-cultural; ou seja, em outra terminologia, sua formação histórica não alcançou, ainda, uma etapa adiantada de estruturação e de maturação políticas. Isso se reflete até em certas peculiaridades de desenvolvimento, que fazem com que mesmo determinadas inovações, de caráter aparentemente crítico, exerçam atividade construtiva. Nada mais contrário ao progresso da democracia que uma ditadura. Entretanto, Jacques Lambert, em estudo recente, mostra como o Estado Novo exerceu uma influência ativamente desagregadora no seio da antiga ordem política herdada pela República do regime escravocrata e senhorial, contribuindo, sob este aspecto, para alargar as bases de desenvolvimento da democracia no Brasil (cf. Le Brésil. Structure social et institutions politiques, cap. V). Doutro lado, passando-se para os plano valorativo, não é verdadeiro que a presente situação brasileira, no que concerne ao funcionamento das instituições políticas, seja positivamente “patológica”. É patológico o que se desvia de uma norma de integração estrutural e funcional. Parece que os processos que se manifestam na vida política brasileira concorrem, ao inverso, para a formação de padrões mais complexos de integração da ordem legal e de controle dos comportamentos políticos. Além disso, o que estamos presenciando, seja ou não confortável aos valores éticos e às convicções políticas que perfilhamos, corresponde, em linhas gerais, ao processo de desenvolvimento da democracia nos países economicamente subdesenvolvidos.
Isso não impede, naturalmente, que se apontem os fatores e as condições que tendem a opor uma resistência assinalável ao progresso da democracia no país. Os nossos principais ensaístas políticos têm demonstrado, fartamente, que os grandes movimentos da vida política nacional se fizeram sem apoio na opinião pública e sem inspirações populares profundas ou duráveis. A explicação desse fenômeno é bem conhecida de todos, mas teremos que recapitulá-la aqui, ainda que sumariamente, pois ela envolve os principais elementos que podem ser apontados, sociologicamente, como obstáculos socioculturais à expansão do regime democrático na sociedade brasileira. E situa uma segunda questão, da maior importância para o nosso debate. Porque os círculos sociais, que se mostram tão preocupados com a “crise da democracia no Brasil”, não procuram exercer uma influência socialmente construtiva, cooperando na remoção dos obstáculos que se opõem à expansão do regime democrático todo o peso de seu poder e prestígio?
Muitos são os pontos que mereceriam ser postos em evidência, ao se cuidar das condições de formação da democracia na sociedade brasileira. Restringindo-nos ao essencial, poderíamos dizer que o Brasil se constituiu em nação, econômica, cultural e socialmente, em condições altamente desfavoráveis à difusão de ideais democráticos de vida política. A organização da sociedade colonial e imperial pressupunha uma complicada engrenagem, na qual a posição social de um indivíduo e as suas probabilidades de atuação social dependiam do concurso de vários modos de participar, regularmente, dos direitos e deveres reconhecidos socialmente. A integração a uma parentela, o sexo e a idade eram critérios importantes na atribuição de status e de papéis sociais, regulando-se suas determinações por normas estabelecidas pela tradição. Mas eles operavam através de distinções suplementares mais gerais, como as que nasciam da situação econômica e da localização em uma ordem estamental, dotada de certa fluidez, e em um sistema de castas, muito mais rígido. Em consequência, uma sociedade que não descansava numa base demográfica muito ampla e que não podia expor seus membros a uma rede muito complexa de relações sociais, possuía uma estrutura interna marcadamente diferenciada. Tais condições de convivência humana se refletiam, naturalmente, nas formas de solidariedade social e nas probabilidades de exercício do poder. Os laços de solidariedade eram muito intensos no seio das parentelas e, através destas, nas camadas sociais constituídas por pessoas da mesma “raça” e socialmente classificadas dentro da ordem estamental. Fora daí, as manifestações de solidariedade assumiam um caráter pessoal, mesmo quando reguladas pela tradição (como, por exemplo, nas relações do senhor rural com seus agregados ou dependentes); ou não chegavam a cristalizar-se, formando um sistema de direitos e obrigações sociais (como, por exemplo, com relação aos escravos, que se viram reduzidos a um estado de anomia social; mas também, sob certos aspectos, na vida social dos homens livres, independentemente da tonalidade da pele, que não se classificavam na ordem estamental). Assim, a dominação patriarcal se inseriu em uma sociedade em que o direito de mandar e o dever de obedecer se achavam rigidamente confinados, concentrando o poder na mão de um número restrito de cabeças de parentelas.
Graças a essa composição estrutural, a maior parte da população brasileira adulta não tinha participação direta na vida política, ou nela tinha acesso para exercer atividades subordinadas aos interesses das camadas dominantes. Formaram-se, em consequência, duas orientações de comportamento, que eram sancionadas pela tradição e reforçadas por uma longa prática. De um lado, nas camadas populares, a de alheamento e de desinteresse pela vida política. De outro, nas camadas dominantes, a de que o exercício do poder político fazia parte dos privilégios inalienáveis dos setores “esclarecidos” ou “responsáveis” da nação. Uns não identificavam em nenhum ponto os seus interesses sociais com os destinos do Estado; outros identificavam-nos demais... Essa foi a herança recebida pela República. O que foi feito dela? O que não poderia deixar de ser feito. O Estado assumiu de vez o belo aspecto das coisas dúplices: “Por fora, bela viola; por dentro, pão bolorento”. Ele possuía uma organização, do ponto de vista jurídico; outra, que era a sua antípoda, do ponto de vista prático. O antigo regime, durante o Império, pudera se manter com respeitabilidade e relativa eficiência nas condições de estabilidade social, que a ordem social escravocrata e senhorial lhe assegurava. Abalada e derrubada que fora esta, começaram a aluir os próprios alicerces que poderiam suster com alguma imponência todo o edifício do Estado, que era a imagem de uma sociedade estamental e de castas no plano político e administrativo.
Então, tem início o interregno mais obscuro da histórica política do Brasil. Preservaram-se intactas, do antigo regime, a hierarquia social e a mentalidade política. Dois ingredientes tóxicos, que logo mostrariam sua capacidade corrosiva e perturbadora. Em condições de acentuada instabilidade social, tornava-se quase fatal a progressiva perda do poder político pelos chefes locais ou regionais. O recurso a técnicas diretas de manipulação do eleitor e do voto se impôs, naturalmente, como condição para assegurar a hegemonia política desses chefes. Firmaram-se duas convicções novas mas gerais: 1ª) os que não tiravam proveito pessoal nas eleições tanto quanto os que tiravam, e estes com maior razão, passaram a ver no voto um instrumento para alcançar e para manter o poder; 2ª) a liberdade de escolha era imputada aos chefes locais ou regionais, ou por estes defendida coactivamente, o que restringia, na prática, o princípio democrático de que todos os indivíduos possuem igual valor político. O combate a essas anomalias convulsionou a vida política brasileira nos últimos trinta anos, chegando a produzir anomalias ainda maiores...
Esse sumaríssimo e imperfeito esboço permite, não obstante, que se situem algumas afirmações de caráter geral. Primeiro, a implantação do regime republicano se prende aos efeitos iniciais de um processo de revolução social que continua em pleno desenvolvimento na sociedade brasileira. Segundo, o que parece a muitos uma “crise” da democracia no Brasil é, antes, efeito da lentidão com que se vem operando a substituição dos antigos hábitos e práticas (além do mais, deformados) de vida política, por outros novos, ajustados à ordem legal democrática em elaboração. Terceiro, os obstáculos mais sérios à integração da nova ordem legal não são, porém, esses hábitos e práticas arcaicos, mas as situações econômicas e sociais que favorecem a sua perpetuação. A transformação lenta e desigual da sociedade brasileira tem reduzido a formação de atitudes e concepções políticas novas, vinculadas à compreensão racional de interesses sociais e à polarização de obrigações morais criadas pelos padrões de solidariedade social em emergência. Por fim, em quarto lugar, parece evidente que os móveis egoístas das elites dirigentes prevaleceram, ao longo da moderna evolução política do país, sobre necessidades muito mais urgentes e graves. Em particular, mesmo os seus representantes mais esclarecidos se descuidaram das questões vitais para a nova comunidade política, como a de preparar a nação para o regime democrático e a de organizar o Estado de acordo com esse regime. É claro que essa incapacidade política não deve ser atribuída a móveis deliberados e conscientes, pois se associa, como tentamos sugerir, à herança da antiga mentalidade política e à sua deformação inevitável nas condições criadas pela formação das classes sociais, sob o regime de trabalho livre. Mas isso pouco importa: os efeitos são os mesmos.
2 – O papel do Estado e dos partidos na organização da vida política brasileira
Uma das hipóteses mais penetrantes da moderna interpretação sociológica é a da demora cultural. Ela consiste na presunção de que, quando não é homogêneo o ritmo de mudança das diversas esferas culturais e institucionais de uma sociedade dada, umas esferas podem se transformar com maior rapidez do que outras, introduzindo-se um desequilíbrio variável na integração delas entre si. Quando isso ocorre, é óbvio que no período de transição se produzem atritos e tensões resultantes das próprias condições de mudança social. As expectativas de comportamento antigas e as recém-formadas coexistem, inevitavelmente, durante algum tempo, criando fricções nos ajustamentos dos indivíduos às situações sociais que são por elas reguladas socialmente. Um exemplo claro desse processo pode ser tomado de nossa história. O sistema econômico das fazendas paulistas se transformou, nos fins do século passado, com maior rapidez do que as atitudes dos fazendeiros em face dos agentes do trabalho agrícola. Assim, o trabalhador livre substituía o trabalhador escravo, mas os fazendeiros tendiam a dispensar àquele o tratamento anteriormente reservado aos escravos. Vários depoimentos, inclusive o de Davatz, indicam quão graves foram os conflitos daí resultantes.
Fenômeno semelhante ocorreu na esfera da vida política. A substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre acarretou uma transformação radical da ordem social: não só as castas foram suprimidas, como também a ordenação estamental, que lhes era paralela, passou a decompor-se rapidamente. As gradações de prestígio social sustentadas pela tradição e garantidas pela lei, sobre diferenças nem sempre muito relevantes de situação econômica, perderam seu ponto de apoio estrutural e sua significação social. Em outras palavras, a Abolição não beneficiou, socialmente, apenas os ex-escravos; ela elevou a dignidade social de extensa porção da população brasileira, relegada à improdutividade econômica e à mais completa heteronomia social na ordem escravocrata e senhorial. A implantação quase simultânea da República consagrou, juridicamente, essas transformações, concedendo igualdade política aos cidadãos brasileiros, sem levar em conta as distinções sociais que reproduziram o passado no presente. Essa consagração formal das transformações foi aceita pelos membros das camadas dominantes, mas não as suas consequências práticas. Pouco se dispuseram a admitir que a opinião de seus colonos e camaradas ou de seus empregados e subordinados tivessem o mesmo valor ou exercessem a mesma influência nos destinos da nação. A própria incapacidade política de vários setores do eleitorado servia para justificar, pelo menos aparentemente, essas atitudes. A composição social das elites dirigentes também sofreu os impactos da alteração da ordem social escravocrata e senhorial, renovando-se, lentamente, em quase todas as regiões do país. Todavia, como essas atitudes nada mais eram do que racionalizações para justificar a apropriação do poder, operou-se uma acomodação de interesses no seio das camadas dominantes. Aquelas atitudes, em vez de serem substituídas por outras, mais coerentes com os princípios democráticos, se mantiveram através da disputa do controle efetivo do eleitorado, por qualquer meio.
Daí resultou a inércia cultural que se revelou prematuramente tanto na direção dos partidos quanto na ação dos governos. As medidas que foram tomadas, mesmo nos períodos de maior ebulição política e administrativa, que se sucederam à Revolução de 1930, não eram de molde a promover as inovações que se faziam socialmente necessárias. O Estado ficou divorciado da nação, se não em bloco, o que seria impossível, pelo menos em diversos setores, de importância vital para a existência e a sobrevivência do Brasil como uma comunidade política. Os progressos alcançados pela chamada legislação trabalhista ou pelas tendências a fomentar certos desenvolvimentos econômicos, no plano da produção industrial e agrícola ou no da assistência a zonas de pauperismo, mal atingiram os efeitos desejados e, até, algumas vezes chegaram a agravar os problemas. Por isso, pouco significam diante das enormes responsabilidades que pesam, no Brasil, sobre os partidos e sobre o Governo.
Infelizmente, não podemos debater a fundo esses problemas. Mas gostaríamos de debater os dois caminhos que se abrem à iniciativa dos homens públicos. Um, que vem sendo seguido e pressupõe uma filosofia política baseada na crença no futuro e nos efeitos dos processos espontâneos da evolução da sociedade brasileira. Outro, que implica a escolha de uma ética de responsabilidade e a decisão de ampliar, onde for possível a previsão e a intervenção racional, as articulações orgânicas que devem existir entre o Estado e a nação na sociedade brasileira.
Os que defendem a primeira posição possuem a seu favor argumentos teóricos ponderáveis, fornecidos pelo liberalismo e pelas experiências bem-sucedidas de países europeus e dos Estados Unidos. Não pretendemos examinar tais argumentos, porém, apenas, lembrar que, nesses países e nos Estados Unidos, semelhantes atitudes, no momento em que foram tomadas, tiveram uma função dinamizadora e construtiva. Em nosso meio social e nas condições presentes, defendê-las corresponde a uma insenção cruel em face dos problemas mais graves do país. A sociologia e a história mostram, de fato, que esses países puderam chegar a ser o que são sem que se impusesse o recurso a técnicas racionais de intervenção social. Mas elas também demonstram que esses países não passaram pelas peripécias que cercam toda a evolução econômica e política do Brasil e que neles existe maior harmonia entre a organização política e as condições nacionais de existência social. Sem dúvida, o Estado exprime, em qualquer parte, mais os interesses econômicos e os ideais políticos das classes dominantes que os do povo como um todo. Contudo, os interesses essenciais da coletividade, de que dependem a sua existência e sobrevivência como comunidade política, alcançam expressão muito maior na organização do Estado nesses países. Se isso ocorresse também no Brasil, a maioria da população não se manteria afastada do exercício contínuo, exigente e motivado dos próprios direitos cívicos. Em síntese, os partidos e os governos precisam optar entre um Estado que é demasiadamente caro e ineficiente, e um Estado que possa se tornar fonte de garantias sociais para todos os cidadãos e fator de prosperidade da nação.
A educação para a democracia começa nas práticas políticas – não termina nelas. Daí as obrigações e as funções especiais que alargam, na sociedade brasileira, a esfera de influência social e de atividade construtiva dos partidos e dos governos. A observância das normas gerais do jogo democrático é suficiente nos países que se encontram em uma etapa de maior maturação política. Para corresponder a essas obrigações e funções especiais no Brasil, os partidos e os governos precisam estender seus âmbitos de ação e multiplicar os meios de que dispõem para atingi-las. Os partidos, principalmente, se defrontam com a necessidade de atrair e de educar massas populares indiferentes à política, em geral, e aos princípios democráticos, em particular. Em outras sociedades, a família, a escola e outras instituições sociais se encarregaram, em grau menor ou maior, de inculcar nos jovens certas noções sobre a vida política, convicções democráticas mais ou menos profundas e um mínimo de atitudes cívicas. Nelas, a afiliação partidária se apresenta, via de regra, como efeito de um processo educativo prévio. Com isso não acontece entre nós, incumbe aos partidos organizarem-se de modo a poderem preencher essas tarefas. Eles precisam atrair e depois educar politicamente os cidadãos de direito, que não passam, ainda hoje, de eleitores de fato. Os governos, por sua vez, se defrontam com problemas que, em outros países, foram resolvidos espontaneamente pela iniciativa isolada mas convergente de indivíduos, grupos e instituições sociais. Entre eles, sobrelevam os que dizem respeito à criação de condições de segurança social e de prosperidade econômica que, na época da formação e de expansão da concepção liberal do mundo, deu origem à democracia nos países ocidentais.
É claro que, ao falarmos nesses termos, estamos emitindo opiniões estritamente pessoais. O sociólogo tem o direito de possuí-las; e, conforme as circunstâncias, de expô-las, publicamente, com a maior franqueza. Não pretendemos, porém, falar em nome da Sociologia, nem na qualidade de sociólogo, propriamente dita. Isso nos obrigaria a não lançar mão de juízos de valor, pois mesmo no exame de problemas que caem na esfera da ação, os sociólogos procuram manter-se tão isentos quanto possível. Ora, a nossa exposição incide, deliberadamente, em raciocínios que envolvem, a um tempo, certa mistura de constatações positivas com juízos de valor. Escolhida essa orientação expositiva, não nos resta outra alternativa senão a de levá-la às últimas consequências, abordando as duas questões mais delicadas e perigosas, para quem quer que seja, de nossa vida política. Referimo-nos à competição dos partidos e à sua representação nos governos.
Quanto à primeira questão, parece-nos claro que a competição entre os partidos deve ser livre e irrestrita. Toda vez que se forme um movimento político que possua suficiente consistência para transformar-se em organização partidária, essa organização deve ser aceita, reconhecida e protegida – não só pela lei, como pelas atividades dos demais partidos. A existência e a sobrevivência de um partido contém, em última instância, a existência e a sobrevivência dos demais partidos, quando não exprime o próprio destino do regime democrático. Assim sendo, são deploráveis, do ponto de vista prático, tanto a deturpação do trabalhismo e do socialismo, empreendida em nosso meio pelas classes conservadoras e por líderes políticos oportunistas, quanto o combate sem quartel ao comunismo. Ambos conduzem ao mesmo efeito: a eliminação do principal fermento de politização das massas populares brasileiras. Quando Otávio Mangabeira iniciou sua atividade doutrinária em São Paulo, logo após a queda do Estado Novo, defendeu uma ideia que nos parece altamente fecunda: a inclinação para a esquerda representa, independentemente do conteúdo ou do alcance das soluções defendidas, uma contingência na constituição dos partidos no Brasil. Esse sagaz político conservador estava com a razão. Os partidos nunca conseguirão tornar-se grupos de pressão, capazes de orientar politicamente a opinião pública ou de ativar e dirigir, através dela, as atividades dos governos, enquanto não puderem galvanizar as massas populares e dirigir para fins políticos os seus anseios de reforma social. Doutro lado, os partidos populares, inclusive e principalmente o Partido Comunista, revelaram maior capacidade de organização que os partidos conservadores, apesar da supremacia eleitoral destes. Eliminá-los da arena política, ou deturpá-los, de nada adianta. É fato comprovado que nas sociedades modernas a ação política é tão influente na legalidade quanto na ilegalidade. Muito mais construtivo para o desenvolvimento da democracia brasileira e também muito mais educativo para os partidos conservadores teria sido a união dos partidos na defesa de um deles. Em vez de consentir no sacrifício de um princípio democrático, seria preferível a renovação interna de todos eles, que os aparelhasse para a doutrinação efetiva dos eleitores populares.
Quanto à segunda questão, parece-nos que as próprias condições de vida econômica e política aconselham a participação mais ampla e direta dos partidos nas ações dos governos. Ao dizermos isso, não pensamos no que se vem chamando, modernamente, de “apaziguamento dos partidos”, mas nas diversas modalidades de cooperação e de influência construtivas, que os partidos podem exercer na vida política brasileira. Enquanto não existirem canais próprios de formação e manifestação de correntes vigorosas de opinião, será difícil impulsionar ou controlar, efetivamente, as ações do Governo fora ou acima das atividades dos partidos. As três condições que se impõem são, como não poderia deixar de ser: 1ª) que os partidos se modifiquem em sua estrutura e funcionamento, de modo a adquirirem unidade, disciplina e uma plataforma política definida; 2ª) que os interesses econômicos e os ideais políticos de todas as camadas sociais da sociedade brasileira possam encontrar expressão regular e autônoma nos partidos constituídos; 3ª) e que, finalmente, os partidos populares tenham meios de exercer uma influência comparável à dos partidos conservadores. Isso, poderão dizer, é uma utopia. Se pudéssemos atingir esses fins, então poderíamos resolver com facilidade os problemas políticos brasileiros, sem tantas preocupações com a situação dos partidos. Também admitimos isso. Mas pensamos que, no período de transição por que atravessamos, seria conveniente adotar uma estratégia que permitisse, nos quadros sociais existentes na sociedade brasileira, intensificar as pressões e os controles sociais sobre as atividades do Governo. Se isso não for conseguido, subsistirá o divórcio entre o Estado e a nação, com todos os perigos que lhe são inerentes.
Por fim, cumpre-nos acentuar que qualquer tentativa deliberada de aceleração do desenvolvimento da ordem legal democrática no Brasil tem que partir e se apoiar, necessariamente, na manipulação dos problemas que afetam a organização e o funcionamento dos partidos. Poder-se-ia dizer que a integração sociocultural dos partidos à sociedade brasileira é apenas parcial, o que prejudica, de forma irremediável, o rendimento que eles deveriam dar na consecução de suas funções específicas. A questão tem sido apreciada, especialmente por Oliveira Viana, como um capítulo de patologia social. Acreditamos, no entanto, que se trata antes de problemas práticos do tipo dos que caem na esfera da sociologia aplicada. Os partidos não foram desviados de seus fins, depois de ter alcançado um padrão organizatório estável. Simplesmente, não encontraram todas as condições indispensáveis para que se tornassem instituições sociais de um tipo particular: isto é, plenamente integradas estrutural e funcionalmente. Isso é verdadeiro tanto com relação à sua organização interna quanto com referência à capacidade que ela alcançou de atender a determinados fins sociais na arena política. Em suma, os partidos não conseguem, ainda hoje, canalizar e orientar os processos que operam no seio da sociedade brasileira, tumultuando-a em certos setores e ampliando a esfera dos controles sociais em outros, que possuam uma natureza política. É frequente a intervenção de “instituições fortes” no Congresso ou no Governo, visando seja impedir ou acelerar a adoção de determinadas medidas, seja preservar a ordem legal existente. Também se vê com frequência como os vereadores, os deputados, os senadores, os ministros de Estado sucumbem às influências de pessoas e instituições poderosas, de interesses partidários ou de exigências locais e regionais. Isso ocorre em grau alarmante porque faltam aos partidos os meios que deveriam possuir para disciplinar a vida política brasileira e regular os problemas cuja solução precisa ser procurada na esfera da arena política.
Do ponto de vista prático, portanto, a questão se apresenta em termos de possibilidades de provocar certas alterações, capazes de intensificar a evolução dos partidos como instituições sociais aptas para uma existência autônoma suficientemente durável e para preencher continuamente determinadas funções políticas. Esses problemas não preocupam os líderes políticos do passado porque os partidos eram, encarados socialmente, um ponto de confluência de acomodações que se processavam em diversos grupos e instituições sociais, da Família à Igreja, e representavam ideologicamente um ponto de interseção entre ideais de dominação patrimonialista e tendências quase sempre heterogêneas de concepções políticas. Em condições de instabilidade social, porém, essa situação não pode ser mantida e os partidos não têm outra alternativa senão a de adotarem técnicas racionais de arregimentação regular de afiliados, de organização e de controle dos seus quadros, de formação de uma ideologia definida e, principalmente, de realização dos fins inscritos em uma plataforma de ação política. É dos resultados dessa evolução dos partidos, que está em processo incipiente, que depende grandemente o futuro da democracia no Brasil, e, em particular, a estabilidade do poder Legislativo. A proteção que este pode receber de outras instituições é fictícia, incerta e comprometedora. Sua autonomia e autoridade não contarão com base firme e com fundamentos sólidos enquanto os partidos não puderem projetá-lo, através das atividades político-partidárias, nas correntes de opinião e nos interesses vitais da nação. Sob este aspecto, merecem ser ponderadas as considerações que fizemos acima, sobre a importância da competição do partido e a provável influência construtiva que os partidos populares poderão exercer na vida política brasileira.
3 – A educação como fator de integração política
Atualmente, quem lê, sem ser especialista, obras de psicologia, economia e sociologia, vai em busca de ideias sobre técnicas de manipulação do comportamento humano ou de intervenção racional em situações sociais de vida. De fato, deixamos de lado essa questão, que para ser tratada a fundo, tendo em vista o objeto de nossa discussão, exige a competência que só possuem ou os especialistas em ciência política ou os especialistas em administração. Não obstante, pretendemos abordar um dos ângulos do problema: o que diz respeito à intervenção do Estado no sistema brasileiro de educação, com objetivos propriamente políticos. É um ângulo legítimo e que tem a vantagem de situar o debate em terreno em que o Estado brasileiro está aparelhado e dispõe de recursos financeiros ou humanos para agir.
Um pequeno retrospecto histórico nos seria de utilidade. A República inaugura-se com ensaios de reforma do ensino, alguns de inspiração nitidamente progressista e antitradicionalista. Todavia, faltou aos mentores da Proclamação da República e da instauração dos primeiros governos republicanos convicções revolucionárias suficientemente profundas para submeter essas reformas a uma ideologia política compatível com a natureza da Constituição que subscreveram. Não é nossa intenção dar um balanço na realização dos governos republicanos na esfera da educação. Seja-nos permitido transcrever as conclusões de Fernando de Azevedo: “Do ponto de vista cultural e pedagógico, a República foi uma revolução que abortou e que, contentando-se com a mudança do regime, não teve o pensamento ou a decisão de realizar uma transformação radical no sistema de ensino, para provocar uma renovação intelectual das elites culturais e políticas, necessárias às novas instituições democráticas” (Cultura brasileira, p. 370).
Em poucas palavras, sob a pressão de condições desfavoráveis mas também por falta de coerência ideológica e de inspirações revolucionárias definidas politicamente, criou-se uma antinomia, que logo se iria revelar um dos focos mais ativos da instabilidade do regime republicano. De um lado, impunha-se naturalmente a necessidade de educar as massas populares, egressas da antiga ordem escravocrata e senhorial sem nenhum preparo para que pudessem participar de uma ordem social legalmente igualitária. De outro, fez-se sentir a incapacidade dos governos em atender efetivamente a essa necessidade. Os efeitos dessa antinomia se exprimem vigorosamente em sucessos recentes, da implantação do Estado Novo às inseguranças do atual regime, na inconsistência dos partidos e das instituições políticas, na anarquia que entorpece a vida política nacional e abre um campo sem fronteiras para o êxito do oportunismo político, fenômenos para os quais muito contribuiu a falta de um elevado padrão de educação popular no Brasil. Os educadores clamaram contra essa situação, procurando pôr em evidência os perigos que ela acarretava. Mas, provavelmente, as condições para superar tal antinomia ainda não existiam. Faltava, especialmente, uma consciência nítida do fenômeno, a qual os educadores ajudaram a formar, mas que acabou sendo configurada pelos fatos irremediáveis.
Essa consciência da realidade, que surge com tanto atraso, é ainda incompleta e inconsistente, como o atentam as influências que as classes conservadoras pretendem exercer no sistema nacional de educação. A bandeira pedagógica que se ergue é a da formação de elites. Ora, do ponto de vista da elaboração da democracia no Brasil, o problema crucial não é esse. A formação de elites apresenta um interesse técnico-administrativo e profissional. Corresponde a necessidades inegáveis de ordem econômica e prática, mas só indiretamente poderá possuir alguma significação para os problemas que se colocam na esfera de integração do país como uma comunidade política. Além disso, as elites não podem ser criadas como flores de estufa. Elas nascem de um processo lento de competição entre os mais capazes e só atingem níveis intelectuais satisfatórios quando a seleção se opera entre muitos (ou entre todos) – não entre alguns. Portanto, enquanto não se ampliar, até os limites possíveis, a extensão das oportunidades educacionais, na base das aptidões, não se estará formando mas simplesmente improvisando elites. Nesta esfera, como um outras, os móveis egoístas de alguns setores da população (as classes conservadoras e uma parcela das classes médias) tendem a prevalecer sobre as necessidades essenciais da sociedade brasileira como um todo.
Segundo pensamos, o sistema educacional brasileiro poderá produzir efeitos suficientes para alterar, em um sentido positivo, a articulação do Estado às condições reais da nação. Aqui nos defrontamos, de novo, com questões complicadas, que não podem ser discutidas a fundo, relativas à intervenção deliberada no funcionamento de grupos sociais visando certos fins. No caso, basta-nos lembrar que o único nível do ensino que tem atingido parcelas variáveis mas extensas das camadas populares é o do ensino primário. Contudo, os especialistas que se dedicaram à investigação da escola primária brasileira concluem que ela não produz os efeitos educativos que seriam desejáveis. Ela opera como agência de evasão, nas zonas rurais; porém, nas zonas urbanas, não oferece preparação bastante sólida para a vida ulterior dos educandos. De modo geral, ela não contribui para criar convicções definidas, concernentes à consciência de afiliação nacional e dos direitos cívicos, que poderiam servir de lastro emocional e de inspiração racional de futuros ajustamentos na vida política.
Assim sendo, a crítica que se limitasse ao rendimento efetivo da escola primária não passaria de consequências restritas e de pequena significação. O ponto de vista sociológico permite encarar a questão em termos muito mais amplos. A função educativa da escola, no meio social brasileiro – e em particular a escola primária – não se restringe à instrução propriamente dita. Ela é muito mais ampla. Pois, por causa de condições e de fatores especiais, quando a escola não consegue transmitir certos conhecimentos, que em outras sociedades se propagam no seio da família ou de outros grupos sociais, esses conhecimentos ou não são difundidos ou precisam ser adquiridos através de penosos esforços individuais, nem sempre bem orientados. Entre os conhecimentos que estão nessa categoria, colocam-se os que dizem respeito à preparação dos imaturos para se ajustarem a papéis políticos específicos em nossa sociedade. Nenhum grupo se incumbe desse tipo de adestramento, tão essencial para a constituição e o funcionamento de uma ordem social democrática. Nas famílias, em geral, as intervenções dos adultos levam antes a deseducar do que a educar politicamente os jovens. São os comentários maldosos ou as reflexões maliciosas, que descrevem a vida política brasileira com vivacidade, mas sem espírito construtivo. Ou então são as referências apaixonadas ou exclusivistas, que cegam esses jovens quando eles ainda não podem ver e decidir. Poucos são os que aproveitam os pequenos mas expressivos incidentes da convivência cotidiana para esclarecer os filhos, para ampará-los indiretamente, insinuando em suas personalidades em formação sentimentos e ideias que os auxiliarão, mais tardem, a compreender a vida política brasileira e a participar dela como cidadãos ativos, com capacidade para dirigi-la, e transformá-la. Quanto aos outros grupos, inclusive os partidários, pouco se faz pela educação política no sentido formador. Quase como norma: inexiste a preocupação de esclarecer os jovens com referência às obrigações e aos direitos dos cidadãos em uma democracia. Embora se exerçam com frequência, pressões mais ou menos fortes para que certas atitudes, de natureza política, sejam tomadas ou preferidas emocionalmente e também se procure inculcar nos afiliados valores de significação ideológica. Isso faz com que a ação educativa espontânea, na preparação dos jovens para vida política, se torne inócua ou tendenciosa. Por isso, a escola precisa ser ajustada para intervir nesse setor e nele desenvolver os adestramentos necessários. De um lado, para ministrar de forma homogênea e universal, no seio da sociedade brasileira, um conjunto de conhecimentos indispensáveis à socialização dos imaturos, considerados como membros individuais de uma comunidade política nacional. De outro, para corrigir os efeitos das pressões ideológicas, exercidas inevitavelmente pelos adultos sobre os jovens, em circunstâncias diversas, por causa de suas convicções ou dos seus interesses.
Os educadores têm defendido algumas implicações desse ponto de vista. Não são poucos os que já afirmaram, de várias maneiras, que a educação deve preparar para a vida e que a escola brasileira deve desenvolver atitudes coerentes com os ideais democráticos de personalidade e de existência social. Contudo, são pregações que não assumem um sentido prático específico no setor que ora discutimos. Nem se elevaram ao nível de uma filosofia de educação, capaz de inspirar de cima para baixo e de impor, pela coerção moral, as soluções para os problemas educacionais já formulados. Nem conseguiram traduzir tais ideais em experiências pedagógicas que demonstrassem o acerto de suas convicções e estimulassem o desejo de imitá-las em outros educadores. Em consequência, as inovações que puderam introduzir aqui e ali, apoiadas em governos esclarecidos ou em necessidades prementes, não se puderam manter e quando se mantiveram não se seguiram de outras inovações imperiosas.
Essa lição, que resulta das tentativas de homens que se incluem entre as figuras mais ilustres de nossa época, aconselha-nos a tomar um caminho diverso. É certo que as reformas educacionais não podem aguardar a sistematização de filosofias da educação aplicáveis à realidade brasileira nem as evidências demonstrativas de experimentos pedagógicos fecundos, praticados no seio das nossas escolas. Contudo, seria o caso de perguntar se uma orientação diferente, no planejamento das reformas, não seria viável e, talvez, mais produtiva, nas condições educacionais do Brasil. Os esforços de reforma têm se concentrado, de preferência, em determinados níveis do ensino ou se restringem a tentativas de objeto inovador restrito. Em um sistema educacional cujo equilíbrio é mantido precariamente por tensões que nascem do conflito das tendências de conservantismo cultural com as tendências inovadoras, isso significa dar àquelas a vantagem da fácil recomposição do sistema em termos das condições preexistentes. Em outras palavras, conduz à limitação dos efeitos inovadores e facilita a paralisação ou mesmo a remoção das alterações introduzidas, independentemente do êxito delas na prática. A relação existente entre as reformas educacionais realizada nos últimos 35 anos e a eclosão, com sucesso, de tendências educacionais conservantistas, ilustra muito bem essa interpretação. Ora, para impedir que isso continue a acontecer, pois é vital ajustar o nosso sistema educacional às comunidades brasileiras e aos fins socializadores da educação dentro delas, seria preciso pensar em soluções que só permitissem o restabelecimento do equilíbrio por meio da libertação das tendências de transformação do sistema educacional brasileiro. Tal objetivo poderia ser alcançado através de reformas que tomassem os diversos níveis do ensino como unidades de um sistema e procurassem atuar sobre todas elas em conjunto.
O ajustamento do ensino brasileiro aos fins pressupostos por uma educação orientada segundo as inspirações definidas acima exige uma estratégia dessa espécie. As inovações terão que se ligar a certos princípios gerais, inerente à intenção de preparar personalidades democráticas para uma ordem social democrática, e que atender certos fins práticos, com o desenvolvimento da consciência de afiliação nacional e dos direitos e dos deveres do cidadão, de uma ética de responsabilidade, da capacidade de julgamento autônomo de pessoas, valores e movimentos sociais etc. Portanto, exige reforma não em setores isolados, mas no sistema educacional como um todo, em sua estrutura, em seu funcionamento e na mentalidade pedagógica que alimenta, predominantemente, as expectativas dos círculos conservadores, dentro ou fora do ensino.
De qualquer forma, a intervenção do Estado, com propósitos definidos de ajustar o sistema educacional brasileiro às necessidades mais urgentes da vida política nacional, poderia alcançar dois efeitos presumíveis. Primeiro, criar condições dinâmicas essencialmente favoráveis à transição de uma ordem democrática incipiente para uma ordem democrática plenamente constituída. Falamos em “condições dinâmicas”, porque se trata de inovações cujo objeto são as atitudes, as expectativas e os padrões de comportamento, os valores sociais e a personalidade humana, bem como os meios e os fins da educação. E afirmamos que são “essenciais”, porque essas condições estão na própria base de toda conduta política democrática e do funcionamento das instituições políticas nucleares em uma ordem social democrática. Segundo, concorrer ativamente para que essas condições dinâmicas se reproduzam similarmente, provocando efeitos socializadores relativamente uniformes, nos diferentes tipos de comunidades brasileiras. Aqui se levanta a questão de saber se a rede escolar poderia penetrar, de fato, todas as populações brasileiras em suas diversas camadas. Teoricamente, isso é possível; praticamente, depende de uma organização adequada de meios e fins na educação nacional. Os problemas mais difíceis estão propriamente nos limites da democratização do ensino. A convicção de que as oportunidades concedidas às camadas populares pelo ensino primário e profissional são satisfatórias, tanto quanto a presunção de que a seleção dos mais capazes não é prejudicada pelas barreiras que restringem, economicamente, o acesso a outros graus do ensino médio e ao superior, são incompatíveis com uma concepção verdadeiramente democrática da educação. Entretanto, seria possível admitir critérios elásticos e variáveis de fixação desses limites, de acordo com o nível de procura do ensino médio e superior por indivíduos pertencentes às camadas populares e, secundariamente, em conformidade com os recursos financeiros do Estado. Nesse caso, a escola brasileira poderia proporcionar uma formação relativamente uniforme na esfera dos ajustamentos sociais na vida política e contribuir, indiretamente, para criar liames orgânicos entre o Estado e a nação.
Enfim, toda a argumentação desenrolada tenta mostrar que um dos fatores que prejudicam o desenvolvimento da democracia no Brasil é a persistência de uma mentalidade política arcaica, inadequada para promover ajustamentos dinâmicos não só a situações que se alteram socialmente, mas que estão em fluxo contínuo no presente. A contribuição que a educação sistemática pode oferecer para alterar semelhante mentalidade exprime, naturalmente, as tarefas políticas que ela pode preencher em uma esfera neutra. O problema poderia ser encarado de outras perspectivas, como os interesses das classes sociais, as afiliações partidárias, os conflitos sociais em uma sociedade em mudança para nova forma de organização econômica etc. Limitamo-nos à relação escolhida, entre o sistema educacional como um todo e as necessidades educativas de uma comunidade política nacional porque ela convinha melhor à natureza do tema do presente estudo. Contudo, ao assinalarmos que a educação pode preencher funções construtivas na vida social, não pretendíamos insinuar que isso se faria independentemente da opção de outros fatores ou acima deles. Apenas acreditávamos que, assim, localizaríamos concretamente quais são as influências criadoras que a educação poderá exercer na elaboração sociocultural de uma ordem social democrática no Brasil.
4 – Conclusões
Um trabalho como o presente não comporta conclusões sistemáticas. As opiniões emitidas estão sujeitas ao subjetivismo e ao relativismo inerentes à maneira pela qual o autor acredita descrever, com um grau aceitável de aproximação e de veracidade, certos processos, que se desenvolvem na sociedade brasileira. Tais processos ainda não foram investigados cientificamente; ou então, os conhecimentos que possuímos sobre eles não permitem uma definição precisa, baseada em critérios empírico-indutivos. Como optamos por uma exposição construída em leque, em vez de concentrarmos a nossa atenção em um número restrito de problemas, talvez tenhamos contribuído, sem o querer, para suscitar algumas perplexidades. Por isso, gostaríamos de concluir assinalando o encadeamento que supomos existir entre as três partes da exposição.
A primeira parte conduz a uma conclusão negativa. Não se pode falar em “crise” da democracia no Brasil, a menos que se pretenda, com isso, sugerir que as tendências em processo, de constituição da ordem social-democrática, estejam sendo neutralizadas ou contrariadas socialmente. A segunda parte conduz a uma conclusão positiva. As condições propriamente políticas para intensificar o desenvolvimento da democracia no Brasil existem, na realidade, embora devam ser apreciadas restritamente e aconselhem certa prudência na focalização das potencialidades dinâmicas de alteração imediata ou a curto prazo da ordem social vigente. Quem as encare, porém, em termos de possibilidades de mudança social espontânea ou provocada, precisa admitir que as próprias tendências de evolução política favorecem a elaboração da ordem social democrática na moderna sociedade brasileira. A terceira parte conduz a uma explanação de cunho pragmático. Entre os fatores que podem acelerar essa elaboração, tanto existem os que podem ser submetidos a um controle determinado quanto os que escapam, em grau variável, a uma manipulação racional direta, embora sua atividade possa ser capaz de produzir efeitos previsíveis, em maior ou menor escala. No âmbito daqueles, há os que atingem pequenos grupos de indivíduos ou instituições sociais isoladas; e há os que afetam toda uma população, de maneira relativamente uniforme e homogênea. A educação sistemática se apresenta, sociologicamente, como um fator suscetível de ser controlado, dentro de certos limites, e que exprime alterações ocorridas ou provocáveis em uma coletividade como um todo. Isso no que diz respeito à situação brasileira. As evidências discutidas permitem supor que as possibilidades de manipular a educação como uma técnica de criação ou de controle de ajustamentos e de valores políticos democráticos dependem, fundamentalmente, da organização do sistema educacional brasileiro tendo em vista necessidades educativas de alcance nacional, que no entanto não foram atendidas até o presente. Parece que, nesta esfera, se colocam argumentos fortemente contrários às reflexões melancólicas sobre as incertezas da democracia no Brasil.
28 Conferência pronunciada no Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política no Ministério da Educação, em 28/6/1954; publicada pela revista Anhembi, ano IV, vol. XVI, no 48, São Paulo, 1954, p. 450-71.