Capítulo IV

Um Retrato do Brasil29

1 – Portugueses e brasileiros

“Um livro vale pelo que sugere.” É essa uma norma que aprendi nos anos universitários com Paul­-Arbousse­-Bastide; e que de fato constitui o melhor critério na análise de uma obra: até as divergências e mesmo os deslizes ocasionais nela aparecem reabilitados. Por isso, é um critério útil, ótimo guia de leitura de qualquer livro – de ciência como de arte. Mas é um conceito particularmente feliz quando se leem livros informativos, como Viagem ao Tocantins, escrito com o fim principal de transmitir experiências; de tornar ecumênico o que é exclusivo e pessoal. Este livro, por sua própria natureza, é uma imersão, ainda que horizontal e breve, em nossa realidade como povo. É de fato, o que também sente e diz o próprio autor – médico que trabalhou de 1934 a 1938 no Serviço de Febre Amarela – “as várias regiões que percorri mostraram­-me a realidade brasileira que me fora escondida na escola” (p. 15). Viajando pelo sudoeste e centro de Goiás e percorrendo todo o Tocantins, Júlio Paternostro viu muita coisa, com o “olho clínico”, de quem, por profissão, está habituado à análise dos casos patológicos. Seu interesse pelo povoamento e industrialização do Brasil e sua crença de que a solução política dos problemas brasileiros está no socialismo, dão ao livro, doutro lado, o caráter de coisa interessada, de participação intencional e efetiva do destino de nossa gente. Como trabalho interessado é realístico – não no sentido da “preocupação” pela “realidade brasileira”, de um Afonso Arinos de Melo Franco, por exemplo – procurando reagir contra a inópia deformadora do róseo ufanismo brasileiro. Com esta intenção aponta, embora não discuta suas raízes, o divórcio entre os líderes políticos e o próprio povo: “Geralmente aqueles que se encarregaram de conduzir o nosso desenvolvimento aprenderam corografia “ouvindo estrelas”, sem ser picados por mosquitos, sem compreender a realidade destes oito milhões e quinhentos mil quilômetros quadrados” (p. 21).

O primeiro problema que atrai atenção, no livro, é um problema propriamente histórico. Trata­-se da colonização portuguesa. Penso que o autor poderia ter aprofundado mais a sua análise desse processo, em vez de ligar­-se, com um ardor um pouco perigoso, a uma das três interpretações tradicionais da ação do português no Brasil. Entre estas, escolheu a mais rigorosa para com os portugueses, acreditando que a colonização portuguesa foi um prolongado ato de drenagem. Portugal, durante três séculos, agiria aqui à maneira das bombas hidráulicas, aspirando insaciável as riquezas brasileiras. Não suponho, como alguns autores nossos, que se devem esquecer os erros da colonização portuguesa ou que seja necessário, em virtude não sei de que estreitamento dos laços luso­-brasileiros, deixá­-los definitivamente à parte. Todavia, há alguns pontos assinalados por Júlio Paternostro que merecem retificações. A bem da verdade, são confusões que circulam como as “manolitas” em certo período da ditadura. E que, como estas, já precisam ser recolhidas e incineradas – existem maiores possibilidades, hoje, na compreensão e interpretação do passado colonial brasileiro. Uma das questões é contida numa frase agradavelmente ingênua do autor: “se o português deixou de modelar nesta Terra uma página no sentido material, também não se preocupou em formar uma mentalidade específica de seus habitantes” (p. 22). Grifei o último trecho, porque soa a exagero aos ouvidos de qualquer especialista de ciências sociais. Os processos sociais, através dos quais pode nascer a “mentalidade” de um povo, são muito complexos; e independem da vontade direta das pessoas que passam por eles, que os sofrem. São processos naturais, que ocorrem apesar dos interesses ou preferências dos indivíduos neles envolvidos. Contudo, o interessante – sabemo­-lo muito bem – é que o português contribuiu mais que o negro, mais que o indígena e mais que qualquer outro branco na formação de nossa “mentalidade” brasileira – à medida que se torna aceitável esse conceito, numa sociedade tão grande e econômica, cultural e geograficamente tão diferenciada como a do Brasil. O estudo dos fatores raciais, culturais e sociais de nossa formação evidenciam muito bem o que fica dito. Os trabalhos de Euclides da Cunha, de Sílvio Romero, de Oliveira Viana, de Gilberto Freyre, de Caio Prado Júnior, de Sérgio Buarque de Holanda etc. provam­-no sob diversos aspectos. O que o autor assinala depois em nada melhora a sua análise: “as gerações brasileiras vieram­-se desenvolvendo muito a sabor das circunstâncias das épocas do mundo, recebendo influência de tutti quanti que por aqui aportaram posteriormente” (p. 22). De fato, não poderia ser diferente. O Brasil é um país de imigração, oferecendo condições geográficas, sociais e econômicas peculiares – além de suas condições demográficas, da grande rarefação humana resultante da pequena densidade demográfica. Eduardo Alcântara, em estudo recente, mostra muito bem como a própria concentração demográfica das grandes cidades, consequente dos processos concomitantes de industrialização e de urbanização, como em São Paulo, é, proporcionalmente à população total, pouco significativa. Nessas condições, é fácil o aparecimento e o desenvolvimento de ilhotas culturais, nascidas do isolamento de pequenas comunidades e, algumas vezes, mesmo de grupos familiares, como acontece no sul do Brasil com imigrantes alemães, italianos, poloneses etc. Os vizinhos – isto também acontece aos brasileiros, pois, conforme o autor assinala há em Goiás fazendas distantes umas das outras de um dia e meio de viagem – ficam longe e as possibilidades de contato são reduzidas. Às vezes, mesmo, os contatos não são desejados: imigrantes e brasileiros evitam­-se reciprocamente. Mas, em regra, as condições geográficas desempenham um papel importantíssimo nessa segregação. Nas zonas densamente povoadas, o processo de assimilação assume outros aspectos. Ocorre mais facilmente o intercâmbio de valores culturais e a miscigenação. O estudo destes processos, entretanto, está apenas começando entre nós. De realmente importante, do ponto de vista científico, só apareceram, até agora, as contribuições de Emílio Willems – que se reduzem aos imigrantes alemães do sul do Brasil. Portanto, não se pode falar com a displicência do autor relativamente à influência dos tutti quanti, que mal conhecemos de olhômetro. Desconhecem­-se os aspectos e as condições explicativas dessa influência. E o processo aculturativo é sempre bilateral. O imigrante pode dar valores culturais, mas por sua vez também os recebe. E geralmente as modificações maiores são eles mesmos que sofrem. Nessas modificações, exatamente, tem um papel importante a nossa herança cultural, marcada profundamente pelo português. Aqui, parece­-me que as pesquisas de campo vão evidenciar coisas inesperadas, como já o revelaram os estudos de Gilberto Freyre e Emílio Willems. Em São Paulo mesma, conhecida como a italianinha do Brasil, eu próprio tive as minhas surpresas numa pesquisa de folclore infantil. Em bairros predominantemente habitados por italianos e seus descendentes (Bom Retiro, Brás, Bela Vista), registrei alguns romances velhos portugueses e vários jogos – competitivos e cênicos – e rondas, todos de origem ibérica, como me revelou a análise de filiação temática a que procedi. A mesma coisa acontecia relativamente aos filhos de outros imigrantes (poloneses, judeus etc.). Nenhum elemento recolhido nas pesquisas tinha outra origem senão a ibérica.

É evidente que o autor, neste caso, ainda está influenciado por um certo tipo de historiadores brasileiros, mais preocupados com suas ideias sobre os fatos que com os fatos. Mas não é sobre esta questão que o autor comete o maior equívoco de apreciação – já que a falta de trabalhos especializados sobre os processos sociais e culturais da colonização portuguesa e estrangeira em geral, no Brasil, só pode redundar em equívocos. O que me parece mais lamentável é que o autor tenha aceitado, em nossos dias, outra ideia batida, sem maiores exames: é a do caranguejismo dos portugueses. Estes teriam ficado no litoral como jacarés, gozando o calor do sol, deitados na areia de papo para o ar. A penetração, a busca do interior, seria um acidente. Pura consequência da ambição desmedida dos portugueses – se há ouro, se há valores naturais à mão, lá procurarão estar os portugueses. Feita a pilhagem, ou a drenagem – dá na mesma – segue­-se o retorno ao litoral, a volta para o torrão natal dos felizardos enriquecidos etc. Os que ainda cogitam da história do Brasil segundo semelhante modelo cometem um grave erro, nessa abordagem da questão. Começaram por considerar a história como um processo abstrato, algo aéreo e até anímico, capaz de se desenvolver em si e por si mesma. São historiadores do período pré­-histórico da história como ciência, os quais Simiand, pitoresca e ironicamente, batizou de “historiadores historizantes”. Hoje, que se tende a considerar a história como uma história natural das sociedades humanas, e que são publicados estudos históricos mais próximos daquilo que alguns sociólogos alemães entendem como sociologia especial e aplicada, é um anacronismo a repetição dos velhos chavões dos nossos antigos historiadores. A leitura dos quinhentistas, principalmente daqueles que davam maior atenção ao contato dos brancos com os índios, como Thevet, Léry, Hans Staden, e particularmente Gabriel Soares de Sousa, dá­-nos outra perspectiva: uma perspectiva mais verdadeira, pois elimina o mau vezo dos nossos historiadores de considerar o Brasil quinhentista como D. João VI considerou a coroa do futuro império brasileiro. Para muitos, ainda hoje, parece que os portugueses repetiram a célebre aventura de César: um simples “vir, vi e venci” coroara a travessia oceânica. Mas a história só se escreve com palavras depois que se desenvolve como realidade.

Os portugueses não encontraram aqui uma terra de ninguém, completamente despovoada. Havia gente – havia os índios, que constituíram o primeiro grande fator do nosso desenvolvimento demográfico e econômico, inicial. E que também foram o primeiro fator que reteve, obrigatoriamente, o branco no litoral durante vários anos, isto é, enquanto puderam. É incompreensível a insistência com que os índios são eliminados de nossa história. Parecem, os índios, uma espécie de matéria plástica que os portugueses utilizavam a bel­-prazer – para emprenhar, quando mulheres, para escravizar, quando homens. Contudo, essa é uma das mistificações mais ridículas da nossa história. Ou, antes, é a forma assumida pela história do “ufanismo”, como diria em sua própria linguagem Júlio Paternostro. A história falsificada pelo branco, pelos portugueses míopes e seus descendentes mais míopes ainda – porque um Gabriel Soares, pelo menos, que sentiu na carne as dificuldades e as durezas da conquista da terra, conta essa mesma história de outro jeito, como uma realidade áspera e vivida, cheia de sacrifícios e de sangue, de ambição, astúcia e abnegações, de ambos os lados; o índio, em nossa história, não é um peso morto. Ao contrário, entra ao lado das condições naturais como a barreira a transpor ainda que pela aliança ou pela guerra – em ambos os casos, pela destruição. Das páginas dos quinhentistas, especialmente de Staden e Gabriel Soares, nasce uma nova interpretação da conquista da terra aos índios, do avanço dos portugueses.

Pode­-se dizer que é uma história épica e heroica, essa da ocupação do litoral. Custou anos de guerra, de persistência e milhares de vidas. A terra descoberta foi conquistada palmo a palmo. Os índios eram os senhores da terra, como hoje o são os brancos. E as lutas entre as várias tribos pela posse das melhores áreas – aspecto do processo de competição ecológica no nível biótico que até hoje não foi estudado pelos etnólogos brasileiros – desenvolveram dominantemente em suas culturas conhecimentos relativos à guerra, fundamento básico da organização tribal. Os portugueses tiveram que enfrentar um inimigo não só mais numeroso, mas melhor organizado – no sentido tribal, é óbvio, e não em conjunto – e relativamente melhor equipado. Enquanto os brancos dificilmente podiam, com seus próprios barcos ou navios, utilizar todas as vias naturais de comunicações, os índios de várias tribos subiam e desciam à vontade qualquer rio, nas áreas de dominância da tribo, e navegavam, como os Tupinambá, livremente pela costa. Em diversos pontos, e também a respeito de outros elementos, Gabriel Soares chama a atenção para os obstáculos de penetração da terra. Ficaram, pois, os portugueses, durante muitos anos, prisioneiros de sua conquista. Encurralados entre o mar e o sertão desconhecido, lutavam para conservar a vida e o terreno ocupado – nem sempre com muito êxito. Engenhos e povoações de brancos, e dos índios seus aliados, submetidos, sumiram do mapa, como que varridos pelas tribos inimigas. A minuciosa história da Bahia, a quinhentista, feita por Gabriel Soares, mostra como isso acontecia. A vitória dos portugueses na primeira fase da colonização deve­-se, até certo ponto, à rapidez com que compreenderam sua posição de inferioridade diante dos índios e da plasticidade com que se ajustaram ao novo meio, geográfica, cultural e socialmente falando. Aceitaram dos índios muitos elementos culturais, enriquecendo assim o equipamento adaptativo não muito rico da “civilização” da época e relativamente precário diante das necessidades mais prementes do novo hábitat. A política de aliança com as tribos amigas permitiu, ao mesmo tempo, vencer as dificuldades de adaptação, do povoamento e da penetração, muito vagarosos, é óbvio, e subjugar ou dizimar as tribos inimigas mais obstinadas e perigosas. À luz desses fatos (os índios, as barreiras geográficas e o equipamento cultural pobre de que eram portadores), compreende­-se que a permanência na costa foi imposta como uma contingência geográfica, demográfica e histórica, tendo muito pouco ou nada de “critério português” como fala Júlio Paternostro. Nem se tratava, apenas, de ficar perto do Atlântico, junto da ligação natural com a pátria ultramarina, em virtude de qualquer espécie de “imediatismo português”, cobiçoso das riquezas à flor da terra (cf. p. 206). O Brasil, do ponto de vista da colonização, foi ao mesmo tempo colônia de exploração e colônia de fixação. Isto situa e explica tanto os diversos aspectos do povoamento e da orientação administrativa portuguesa como a procura de riquezas “drenáveis” e a transformação do conquistador aventureiro e ambicioso em homem rural, sedentário senhor de engenho.

2 – “Litoral versus sertão”

O antagonismo entre o “litoral” e o “interior” do Brasil, revelado sob a forma de conflitos culturais entre a civilização e culturas de folk, deu origem a essa fórmula cômoda, mas em certo sentido apenas figurada: “litoral versus sertão”. Como índice da correspondência entre a expressão geográfica brasileira e sua conformação sociocultural é, mesmo, uma fórmula precária. O uso corrente deu­-lhe, entretanto, validade e uma acepção plástica, a qual justifica por si mesma a validade. Litoral aí designa mais um certo tipo de formação social e cultural do que a orla marítima com a porção de terra e a ela associada. Corresponde, rigorosamente, à pequena faixa do território brasileiro durante os quatrocentos anos de nossa história, nas fronteiras ou na proximidades do Atlântico e aos seus postos avançados no continente, aliás muito menos numerosos. Pode­-se formar uma ideia objetiva desse conceito, analisando os mapas que ilustram Cultura Brasileira, de Fernando de Azevedo. Os principais centros urbanos pontilham o território brasileiro predominantemente nas imediações do mar e funcionam, relativamente ao resto do país, como “nos culturais”, pontos de condensação, de irradiação e de difusão de novos padrões de comportamento e de outro tipo de vida. Esses padrões e esse tipo de vida constituem o que vaga e enfaticamente enunciamos como “civilização”, contida e consagrada naquela fórmula. Não possui, também, um sentido mais preciso que o termo “litoral”; menos que um padrão característico de cultura, o termo lembra certas peculiaridades de nossa formação histórica. “Civilização” compreende tanto os automóveis e os bondes das zonas urbanas e industriais, como as manifestações modificadas do catolicismo ibérico e especialmente português e as práticas mágicas nas zonas rurais. E, em consequência, é chamado “homem civilizado” tanto o habitante da cidade, como o de Santos, quanto o sertanejo de Goiás e Mato Grosso, embora os padrões recíprocos de avaliação difiram mais ou menos em cada situação particular. Por isso, alguns etnólogos, como Curt Nimuendaju, referem­-se indistintamente aos contatos entre os índios e os brancos, como contatos com os “civilizados”. Na verdade, se do ponto de vista de precisão, o vocábulo deixa muito a desejar, como expressão de uma realidade histórica, o termo “civilização” – tal como é geralmente usado entre nós – é riquíssimo de conteúdo. Representa como que uma imagem em gradiente de nosso presente, revelando a falta de uniformidade, em suas oscilações, do desenvolvimento econômico, cultural e social do Brasil e suas consequências. Abrange, de um modo complexo, as diversas culturas de folk, disseminadas no litoral e no interior, e afirma dessa forma os elementos culturais que recebemos de nossa formação europeia, através dos portugueses, corrigindo a afoiteza dos que reduzem as proporções do problema à fórmula “litoral versus sertão”. Porque esse conceito de “civilização”, captando totalmente nossa realidade histórica, não se curva às contingências geográficas. Acentua tanto os traços da “civilização” existentes nas metrópoles, como nas pequenas comunidades rurais. Paradoxalmente, evidencia o que há de cultura de folk no litoral, do mesmo modo que entremostra o que existe de “civilização” no interior, no sertão. Assim, os conflitos, que podem ser analisados como expressão de antagonismo entre a civilização e as culturas de folk mais ou menos diferenciadas (do litoral e do interior), aparecem como aspectos de um processo de desenvolvimento longitudinal: são conflitos entre várias fases históricas de uma civilização, igualmente incluídos numa mesma expressão dramática.

Parece­-me que este é o principal aspecto que se deve reter. O desenvolvimento sociocultural do Brasil não foi uniforme ou orgânico. Algumas cidades acompanharam o “progresso” da civilização embora retardadamente; transformam­-se hoje, como São Paulo, em metrópoles. Outras, quando não regrediram, imobilizaram­-se, estacionaram em seu processo sociocultural – como as chamadas “cidades mortas”. Comparadas às quase­-metrópoles, como São Paulo, atualmente constituem culturas de folk. Várias ressurgem em nossos dias, renascem para a civilização. Sofrem um processo de mudança interna, passando por modificações bastante profundas. Desintegram­-se as antigas culturas de folk e em seus lugares aparecem núcleos urbanos, eletrificados e industriais, como Sorocaba, Campinas etc. Esse desenvolvimento processa­-se por crises, pela lenta substituição de uma ordem existencial por outra; e tende a diminuir a distância cultural entre as várias povoações brasileiras.

Mas, é óbvio, estamos assistindo ao início apenas desse processo de recuperação, digamos assim, de milhares e milhares de indivíduos para a civilização. A realidade cultural do Brasil é ainda e será durante alguns anos a descrita por Euclides da Cunha em Os sertões. O que se convencionou chamar “litoral” leva um tipo de vida, aos nossos olhos de “civilizados”, o único compatível com a “dignidade humana”, com o “progresso científico” etc.; o que se convencionou chamar “interior”, por sua vez, simplesmente desconhece esses “confortos” da civilização saída da Técnica. Conformados pela tradição, milhares de indivíduos vivem a vida de antepassados dos séculos XIX ou XVIII. É esse quadro que Júlio Paternostro descreve, um pouco aqui, um pouco ali, à medida que nos conta sua viagem ao interior do Brasil, pelo Tocantins. As nossas atitudes de “civilizados” diante dos “párias da civilização” – como Paternostro chama os sertanejos – são ambivalentes. Ora, revelamos um máximo de simpatia, ora mostramos um mínimo de compreensão. Certas atitudes estereotipadas, cuja análise não caberia aqui, obriga­-nos a ter diante deles ares “camaradas” e “tolerantes”. Por isso, as atitudes de “simpatia”, relativamente ao caboclo ou ao sertanejo, predominam a distância. Em situações concretas, porém, o que se verifica é a manifestação do etnocentrismo do “civilizado”.

Acho bom recomeçar por aqui o comentário do livro de Paternostro, porque a História do Brasil – tal como ela é fornecida nas escolas e em certos compêndios – é uma história etnocêntrica. Já vimos como o índio é sintomática e sistematicamente excluído de nossa história étnica. Ao negro, acontece, em menor grau, a mesma coisa. Os descendentes deles, nascidos da miscigenação com os portugueses, que estão ocupando o lugar pouco agradável de “párias da civilização”, nunca contaram nossa história – escrita pelos homens do “litoral” e para uso intestino, para não dizer doméstico. Essa história é uma delicada flor de estufa, destinada ao gosto não menos delicado de seus confeccionadores e só raramente mestres, como Capistrano João Ribeiro, Sílvio Romero, Gilberto Freyre, pisam­-lhe como os portugueses às uvas, para extrair o suco. O pária nela só aparece idealizado, de acordo com uma série de outros estereótipos, e suficientemente róseo para ser, inclusive, produto de poética, de exportação e de turismo postal. É recente o escândalo e a respectiva celeuma provocados pelos caboclos de Monteiro Lobato e os protestos suscitados pelo Romance de 30, ainda em plena efervescência.

Júlio Paternostro, como todos nós, estava modelado pelo e para o “litoral”; como “homem litorâneo”, desconhecia o que se ocultava atrás da tremenda “realidade brasileira”, tão vitimada pelos “intelectuais litorâneos” e até inextricavelmente ligada por eles a uma porção de encíclicas papais. “Até então, diz­-nos, confundi grandeza com pujança, rios com navegação, vida de quatrocentos anos com adiantamento. Foi­-me impossível compreender a paisagem com os dados que a instrução oficial me forneceu” (p. 15). A onipotência do Brasil, revelou­-se­-lhe, de boa­-fé, apenas virtual ou paravirtual. Os quadros pintados pelo ufanismo eram marrons. Nem mesmo as molduras seriam mais, porque começaram a surgir coisas inesperadas. Miséria, doença, analfabetismo, mais ou menos corrigidos pela fecundidade ou equivalência do meio físico e social. Ausência de estradas de ferro e de rodagem, navegação fluvial rudimentar, gado raquítico, raro e espalhado, plantações reduzidas, em algumas zonas comprimidas nas terras de vazante, penúria econômica, evidenciada sob todas as suas modalidades, eis o que viu na viagem pelo Tocantins, dando uma nova ilustração ao vaticínio de Zweig: “Brasil, país do futuro”.

Esses traços caracterizam bem a distância entre o “interior” e o “litoral”. E esclarecem porque o sertanejo “vive uma vida primitiva no mesmo ritmo da de um século passado, embora há três anos, periodicamente, venha levantando os olhos para ver as asas rutilantes do avião que chega do litoral” (p. 20). O contraste das duas ordens existenciais, contudo, nada resolve. Nem o desejo de participar dos bens culturais da “civilização” (cf. p. 249) adianta alguma coisa. No setor administrativo surgiu um círculo vicioso, verdadeira cabeça de Medusa. Os habitantes daquelas regiões, como os de outras, esperam que o Governo “endireitará” as coisas (veja­-se, por exemplo, p. 226). O Governo, por sua vez, acredita que certos melhoramentos, mesmo os imediatos, devem surgir como consequência natural do progresso econômico, demográfico e social das regiões em que se apliquem. O General Couto de Magalhães revelou, já em 1836, essa mentalidade dos governantes, ao tratar da navegação do Tocantins: “O aumento dos vapores depende da importação, que, por sua vez, depende do aumento da população; e em consequência, qualquer incremento que o governo lhe quisesse dar seria infrutífero por falta de objeto” (cf. p. 227).

3 – A vida no sertão

Todos os relatórios de viagens são, num sentido ou no outro, verdadeiros documentários, representando, por isso mesmo, contribuições às ciências do homem. Como não são obras de estudo especializados, porém por sua própria natureza constituem contribuições pouco regulares. Os autores prendem­-se, geralmente, ao que mais lhe interessa ou, o que acontece frequentemente, às curiosidades, na linguagem saborosa dos quinhentistas. Um Thevet, por exemplo, chega até a afogar a gente nas “curiosidades” que cegavam os seus olhos ou feriram suas suscetibilidades de “cristão” e de “civilizado” do século XVI. Nesse limite, compreendido entre o que atrai pela novidade ou pela diferença e o que se procura indagar por interesse, podem caber os principais dados indispensáveis ao estudo de uma sociedade ou de um povo. Saint­-Hilaire, verbi gratia, revela­-nos um retrato bastante convincente de São Paulo novecentista. Há, em sua descrição da viagem à Província de São Paulo, dados valiosos ao naturalista e ao estudioso do meio físico, geográfico ou não. Mas o historiador, o antropólogo físico, o demógrafo, o etnólogo, o folclorista, o economista, o sociólogo e o político encontram aí um material excelente. A descoberta desse material corresponde a modernos estudos de reconstruções históricas (no sentido de antropologia cultural), do desenvolvimento demográfico do Estado, de mudança social e cultural, da evolução de algumas cidades paulistas – como Guaratinguetá, sobre a qual Lucila Herrmann fez uma monografia sociológica – da economia paulista etc. etc. A importância e a possibilidade do aproveitamento científico dos dados assim obtidos, em cada disciplina social, varia muito. A passagem da conotação diletante às necessidades da pesquisa científica impõe reservas e restringe a utilização das informações fornecidas pelos viajantes. Contudo, é claro, de acordo com a objetividade, a honestidade, a inteligência, a riqueza de centros de interesse etc., dos viajantes, aumenta ou diminui o valor desses relatórios, do ponto de vista próprio de cada ciência social.

Nesse sentido, dos dados apresentados por Júlio Paternostro, em Viagem ao Tocantins, nem sempre tem a consistência desejável. E, ainda assim, é desigual a contribuição informativa às diversas ciências do homem. Parece­-me que o geógrafo, neste livro, é quem sai melhor servido. O demógrafo, o sociólogo, o antropólogo ou o economista recebem muito menos. Mas, é óbvio, sendo um relatório fiel, contém sugestões e dados preciosos. A começar pela caracterização do tipo de vida dos habitantes da zona continental – ou sertanejos – até certos problemas de natureza prática, como a discussão das condições econômica, educacional e demógrafo­-sanitária das populações do Interior. Em vários trechos do livro, recebe­-se a impressão viva dos efeitos que a distância cultural entre o “litoral” e o “interior” causaram no autor. Assim, ao registrar as homenagens dos palmenses (p. 249), desabafa: “Senti não ter forças para conseguir aquelas chãs e primárias aspirações que a ciência atual permite a milhões de homens, e que, no entanto, ainda pertence a um número tão limitado dos habitantes do meu país”. O contato entre estes e os sertanejos – entre a “civilização” e o “sertão” – entretanto, faz­-se na melhor das hipóteses, através de pequenos portos, no Rio Tocantins: como, por exemplo, Maripicu, Pampelônia, São Bernardo, Umarizal, Paritá, situados após a cidade de Baião e contando todos, com exceção do último que possui 55, de 1 a 8 palhoças! Esses portos precários, “que nada mais são que o começo da picada para o centro da mata”, constituem “os pontos de contato de dois mil habitantes da mata com a civilização, que passa a bordo da gaiola duas vezes por mês” (p. 80).

Nessas condições, é preciso dizer que os elementos culturais da “civilização” nem sempre são aceitos ou desejados; a falta de experiência a seu respeito e a estreiteza do horizonte cultural tornam­-nos, até, indesejáveis, um caso típico de dramático da rejeição de elementos integrantes do equipamento cultural do “civilizado” é descrito pelo autor (p. 318). Um sertanejo, ao avistar o automóvel em que viajava Júlio Paternostro, fugiu e escondeu­-se. Encontraram­-no trepado num piquizeiro e não consentiu em descer de lá: “Disse­-nos que não estava acostumado a encontrar essas coisas, que nossa presença lhe seria mau agouro etc.”.

Todavia, o autor gostou do sertanejo, do homem naïf, produto da cultura de folk, como o consideram alguns sociólogos norte­-americanos, que o opõem ao “civilizado” das metrópoles, sofisticado. Parece­-lhe que o sertanejo “caracteriza­-se pela boa­-fé”, que “mostra a lama na palma da mão” (p. 271). As condições de vida na extensa zona percorrida pelo autor variam muito, de acordo com os recursos naturais e as atividades dominantes em cada região. Em qualquer uma delas, todavia, há uma estranha combinação de facilidade e penúria. Vivem todos mais ou menos num regime pré­-capitalista, quanto à exploração da terra. Os “alugados”, da organização capitalista da sociedade, só conhecem a exploração do trabalho pelos arrendatários e “aviadores”. Desconhecem os métodos racionais de produção e o cultivo é imediatamente regulado pelo consumo. Como este é restrito e quase indiferenciado, o esforço necessário para conseguir os alimentos é pequeno. Em certas áreas, as famílias constituem unidades econômicas independentes e autossuficientes. Num percurso de 100 quilômetros, verbi gratia, o autor registrou apenas cinco choupanas. Por isso, os “moradores, isolados do convívio social, levam uma vida selvagem” (p. 216). A construção da casa, na “terra que é de todos” (idem), é o serviço mais demorado e complicado. Além disso, plantam mandioca, da qual fazem farinha puba, e sacrificam as reses raquíticas de que dispõem, para obter carne e couro – aquela secam ao sol, e deste fazem banquetas, alpercatas e esticados para dormirem. Na mata ainda conseguem favo de mel e no rio algum peixe. Os produtos de obtenção mais difícil escasseiam ou não existem. O autor encontrou meninos de 12 a 15 anos completamente pelados e verificou que naquelas “choças só existe a luz do dia” (falta de velas, lamparinas e candeeiros).

O compromisso verbal ainda conserva todo o seu valor (cf. p. 211) – quem não cumpre o “trato de boca” ou “entrega o cavalo” perde os seus direitos e perde, juntamente, a reputação. Além disso, não aceitam remuneração em dinheiro como pagamento da hospitalidade e outros serviços prestados com este caráter, mas sim na forma de presentes – certos objetos que indicam ter vontade de possuir (cf. p. 186­-87). O mais interessante, neste item relativo às condições de vida numa cultura de folk, é a existência de uma faixa de terra de posse comum (p. 207): “Em volta dos povoados e vilas, numa coroa circular de duas léguas de largura, a terra é da “santa”, isto é, dedicada à padroeira local, onde qualquer indivíduo pode chegar e construir sua casa, fazer roças, criar galinhas etc.” O mesmo comportamento revela­-se noutros setores da vida comunitária. O banho, por exemplo, é tomado em comum. É provável que se trate de uma herança cultural dos índios. O importante, todavia, é que a única separação existente é a relativa aos sexos. Juiz de Direito, fazendeiros, comerciantes, vaqueiros etc. nivelam­-se no banho comum, lugar de reunião obrigatória e de conversação. Noutro “ponto”, a 50 metros, banham­-se as mulheres (cf. p. 191­-2).

A organização e a estrutura familiais são ainda as dos tempos da Casa Grande e da Senzala. Família patriarcal, sendo absoluta a “preponderância dos direitos do sexo masculino no vale do Tocantins” (p. 192). A esposa cozinha, cria os filhos e dedica­-se exclusivamente aos serviços domésticos. Quando há visitas, só aparece para servir; não ocupa, porém, lugar à mesa. As moças, por sua vez, escondem­-se das visitas. E, em geral, cabe aos pais a escolha dos cônjuges para seus filhos (p. 193). As mulheres realizam trabalhos pesados, como transporte de água em lata ou potes, rachar lenha etc. O autor considera a vida sexual “simples e primitiva”, como as demais atividades. Não ocorrem, entretanto, segundo seu testemunho, certas perversões sexuais aparecidas com a complicação da vida nas grandes cidades; e “muitos rapazes perdem a castidade com esposa ou a companheira com que vivem monogamicamente a vida inteira” (p. 194). A poligamia é possível aos criadores de gado, aos “coronéis” ricos. Os filhos ilegítimos são criados juntamente com os filhos legítimos pela mulher legal. Esta admite as aventuras extraconjugais do marido e tolera a poligamia.

Em Porto Nacional, em 1935, era o seguinte o orçamento familiar, apresentado pelo autor (p. 225): aluguel mensal de uma das melhores casas, 40 cruzeiros; uma empregada, 4 cruzeiros por mês; 40 litros de feijão, 8 cruzeiros; 40 litros de arroz, 3 cruzeiros. Muitos plantam algodão no quintal e com ele fazem roupas, acrescenta. A fiação e a tecelagem, com o preparo e manufatura do couro constituem, portanto, as duas principais indústrias domésticas. A horticultura não é praticada regularmente, pois o autor diz que, numa extensão de dois mil quilômetros, só os frades dominicanos possuíam uma horta digna desse nome.

Entre os alimentos merece um comentário especial o leite, excluído do regime alimentar habitual. Na p. 221, o autor afirma que “mesmo nas águas, quando o leite é farto, ninguém o usa”, ajuntando: “desconheço a origem dessa aversão pelo leite; disseram­-me alguns que ninguém bebe leite porque origina doença no estômago”. Ora, isto parece uma simples racionalização. O motivo deve ser outro, pois a análise de situações similares prova que a utilização do leite como alimento está subordinada à existência de um complexo cultural. É preciso dispensar um tratamento especial ao gado, estabulá­-lo, manter pastagens etc.; e ter, também, os conhecimentos relativos à preparação dos produtos derivados (manteiga, queijo etc.) e conhecer sua utilização. O complexo do leite, digamos assim, por isso, não ocorre em todas as sociedades onde o gado bovino é conhecido e empregado em outras funções.

O autor deu pouca atenção aos elementos folclóricos. A coleta desse material, na verdade, é muito difícil; e exigiria pesquisas mais demoradas, contatos mais íntimos com os membros das populações visitadas e descritas. Ainda assim, parece­-me que Júlio Paternostro não se interessou pelo folclore, apesar de sua importância no estudo do comportamento dos indivíduos e da vida social nas pequenas comunidades rurais. As breves indicações de algumas festas, de certas práticas medicinais, religiosas e mágicas, e as notas sobre as festas do Divino e as folias de Reis quase nada representam. Quanto à antiga festa do Divino (cf. p. 280), a referência ao “encontro” das comitivas do monarca preto e do monarca branco tem grande importância folclórica, porque deita por terra uma hipótese que vem ganhando corpo ultimamente: que a festa do Divino fora uma festa de brancos em contraposição às congadas, por exemplo, festa de negros. O apego do autor a certas explicações telúricas dos elementos folclóricos (lendas, “superstições, “crendices” etc.) é um tanto excessiva e perigosa. Pesquisas modernas sobre os fatores e a organização da cultura e sua importância na determinação do comportamento humano e no desenvolvimento da personalidade colocaram a questão da influência do meio físico e de fatores extraculturais nos devidos termos. Essas ideias, esposadas pelo autor, tiveram efeitos negativos e sua influência na caracterização das áreas regionais em que divide a zona percorrida. Concomitantemente, afastou­-o de questões realmente importantes em ciências sociais, como a descrição dos próprios elementos culturais. O desenvolvimento restrito, dado a esses aspectos, constitui uma das lacunas deste livro e impede uma análise mais profunda da vida social no vale do Tocantins.

4 – A educação no interior do Brasil

“O maior problema brasileiro é o educacional”, “campanha pela liquidação do analfabetismo”, “devemos democratizar a cultura”, “as massas rurais devem ser ganhas pela civilização”, “precisamos ensinar os caboclos a ler”, “a cultura é a luz do espírito”, “o analfabetismo é a massa de que se alimentam os ditadores”, “na escola está a solução dos nossos problemas”, “no ensino primário está o problema número um do Brasil”, “o governo precisa criar mais escolas”, “este governo criará mais escolas”, “o Brasil é um país de analfabetos”, “eduquemos os homens do campo”, “o governo dedicará todas as suas energias à solução dos magnos problemas educacionais do Brasil”, “escolas para o povo” etc. etc., são essas e respectivas variantes, frases de circulação corrente; qualquer brasileiro culto, que se preze, deve conhecer pelo menos umas trinta no gênero. Se somos pobres quanto ao número de escolas e se o sistema educacional brasileiro é um pouco menos que precário, precisamos reconhecer que, em compensação, somos bastante engenhosos, muito ricos, mesmo, em matéria de slogans. Sobram­-nos problemas, mas felizmente não nos faltam fórmulas consagradas, com auxílio das quais nos pomos maravilhosamente de acordo a seu respeito. Essas, acima, já têm a força imperativa das regras. Impõem­-se de tal forma, que acabaram desviando a atenção dos brasileiros de seus próprios conteúdos, distraindo­-nos comodamente de uma realidade muito crítica e áspera. Aumentaram tanto em número, ultimamente, por causa de certas necessidades demagógicas, inerentes às devoções sadias dos “pais da pátria”, que produziram uma espécie de inflação de cegueira.

Em contraste com o número de fórmulas, existe pouca disposição para tomar consciência da situação exata do ensino no Brasil. Quanto à luta real com os problemas educacionais, nada se faz nem se pretende fazer. Alguns educadores clamam por reformas, mais ou menos profundas e necessárias, mas clamam no deserto. Para que fossem ouvidos – e postas em prática as medidas pelas quais propugnam – seria preciso que o assunto fosse levado a sério pelos chefes de família, pelos patrões, pelos administradores e políticos, bem como pela legião enorme de interessados diretos: os diretores de escolas, os professores e os próprios alunos. Não é de pasmar que isso acontecesse no passado. Só uma pequena elite poderia preocupar­-se com o esclarecimento dos espíritos na velha sociedade aristocrática imperial. Também é admissível que se fizesse pouca coisa pela causa do ensino público durante a implantação do regime republicano. Os homens não se alteram da noite para o dia. Homens habituados a mandar em escravos e a lidar com criaturas submetidas, discricionariamente, à sua vontade, mal viam a utilidade da educação segundo os próprios interesses sociais que lhes convinham. Só lentamente iriam aprender que o regime republicano requer a democratização da cultura e a universalização de todos os graus de ensino. Mas que após a luta contra o Estado Novo e a derrocada da ditadura se mantivesse o mesmo clima de indiferença diante da educação do povo é de estarrecer! A questão não é simplesmente humanitária. Ela envolve a segurança, a prosperidade e o progresso do Brasil como nação moderna. Está mais do que patente que não sairemos do marasmo econômico e político sem transformarmos, de forma profunda e geral, o nosso sistema de ensino. Ele precisa adaptar­-se às necessidades e às exigências de uma ordem social democrática e preparar todos os cidadãos para uma vida econômica, política e social cheia de graves responsabilidades. No entanto, os principais líderes das camadas dominantes obstinam­-se em voltar as costas à realidade, apegando­-se àquelas fórmulas consagradas que constituem algo parecido com o sucedâneo moral do ópio. Elas atestam nossa incapacidade de ação e criam ilusões mais ou menos caras aos que teimam em acreditar que as palavras testemunham, por si mesmas, que os problemas por elas descritos se acham resolvidos.

É inflação de cegueiras ou não é? Todos fazem vista grossa. Não são apenas os políticos. Os “escritores”, por exemplo, prometeram fazer mundos e fundos, abrindo uma catastrófica “campanha pela liquidação do analfabetismo”. Com exceção dos próprios redatores de tal proposta ao I Congresso Brasileiro de Escritores, esta não “liquidou” o analfabetismo de mais ninguém. O brasileiro, coitado, quase chorou de emoção naqueles dias heroicos da inteligência nacional. Pulou de contente, pois os escritores estavam com ele, povo, lutando ombro a ombro por seus interesses. O noivado durou pouco, todavia – é o que eu previa num artigo publicado logo após o Congresso na Folha da Manhã (“organização da Inteligência Brasileira”, 1º/2/1945) – e a “campanha” ficou enterrada num monturo de ideias. Houve a proposta “Democratização da Cultura”, de Fernando de Azevedo, um gigantesco plano que, aplicado realmente, criaria as condições necessárias ao levantamento do nível cultural médio das massas e à aniquilação do analfabetismo; e houve outra proposta, mais restrita, a de João Cruz Costa sobre a “Universidade Popular”, porém de grande importância. Foram muito discutidas, aplaudidas, aprovadas em plenário, enfim, tudo o que podem sofrer burocraticamente as propostas desta natureza, inclusive esquecidas. Entretanto, a situação educacional do país complica­-se de modo perturbador. O desenvolvimento de zonas urbanas, de metrópoles, como São Paulo, traz novos problemas educacionais e implica uma urgente reestruturação do sistema educacional brasileiro. Apesar disso, esperam solução problemas educacionais mais antigos – os relativos ao meio rural. Quero dizer, em poucas palavras, que o reformador que tiver coragem deve resolver, ao mesmo tempo, problemas educacionais surgidos em nossos dias e outros que constituem uma herança do passado, talvez um presente de grego do Segundo Império à Primeira República!

É esse um aspecto doloroso, uma das consequências diretas do fenômeno estudado em ciências sociais sob o nome de “demora cultural”. Na evolução social, o desenvolvimento de todas as esferas da cultura não é concomitante. Umas atrasam­-se em relação às outras. Nas modernas sociedades capitalistas do ocidente, a esfera em que as mudanças se processam com maior rapidez é a econômica. Com intensidade variável, as demais esferas da cultura – a política, a educação, a religião etc. – tendem a juntar­-se às modificações operadas no setor econômico. Esse fenômeno ocorre no Brasil, é óbvio, mas o reajustamento se tem processado em um ritmo muito lento e mesmo desigual. O atraso de nosso sistema educacional, que ainda se defronta com velhos problemas suscitados pela necessidade de adaptação do ensino à vida rural, ao campo, em relação a outros níveis de cultural, nem cálculo otimista, cifra­-se mais ou menos em meio século. É claro que seria simplista querer medir assim o fenômeno; procuro apenas dar uma ideia aproximada de como o problema educacional brasileiro coloca­-se, primariamente, diante de nós.

Porque, de fato, a falta de uniformidade no desenvolvimento demográfico, econômico e social do Brasil põe a questão em bases menos otimistas. O ensino primário, visando exclusivamente a alfabetização, tal como a conhecemos, não se integrou completamente no sistema sociocultural brasileiro. Se a escola é parte natural desse sistema, nas zonas urbanas ou em processo de urbanização, está muito longe disso nas estritamente rurais ou afastadas dos “núcleos da civilização”, das grandes cidades. Por isso é que Júlio Paternostro, no livro que vimos comentando – Viagem ao Tocantins – verificou que “os pais pouco se incomodavam com a alfabetização” (p. 217) e que, em Piabanha, a professora mantinha “com dificuldade” a frequência de 33 alunos (idem). A incongruência existente entre a escola e as necessidades imediatas do meio social tornaram­-na uma coisa supérflua, um quase luxo de homens da cidade. “Ler, escrever e contar”, para o sertanejo, é menos importante que receber conhecimentos relativos ao trato da terra, dos animais etc., isto é, conhecimentos indispensáveis ao seu tipo de vida. Saídos da escola, os conhecimentos lá adquiridos constituem peso morto, inaplicáveis, ou atuam à maneira de forças centrífugas – como verifiquei numa pesquisa que fiz – reforçando o êxodo da população rural, a migração para as grandes cidades. Portanto, é evidente que a escola, deixando de associar convenientemente os dois tipos de conhecimentos, distancia­-se do meio social imediato e afasta­-se do círculo de compreensão limitado pelo horizonte cultural dos pais dos alunos. Daí preferirem estes, a todo custo, também, que os filhos trabalhem na lavoura, em vez de frequentarem as “escolas do governo”. Os técnicos de educação do governo, por seu turno, aferram­-se a uma distinção pragmática entre ensino técnico e ensino geral e com isso só agravam as dificuldades. Porque, mais tarde, quando se quiser vencer esses obstáculos, ter­-se­-á que lutar contra um inimigo muito perigoso: as experiências negativas que se estão acumulando sobre tal tipo de escola primária.

Júlio Paternostro anota outros casos que constituem exemplos interessantes, a respeito dessa falta de integração da escola. Assim, na cidade de Santo Antônio, assombrou­-se com o “programa” de uma “festa escolar” (vejam­-se p. 116­-7). Principalmente a “comédia”, em que apareciam a “fada Morgana”, “Marianne”, “Pierrete”, “neve”, “frio intenso” etc. pareceu­-lhe uma categórica negação do meio. A professora, maranhense, como outras formadas para ensinar em pequenas cidades urbanas, só tinha aquela comédia em seu caderninho de notas. E apesar de todos os seus esforços, despendidos na organização da festa escolar – outro traço cultural desconhecido na maioria de nossas populações rurais – a reação dos pais, como havia de ser, foi de desaprovação: “Se ela não ensinasse direito o ‘bê­-a­-bá’ às crianças, seriam contra essa palhaçada” (cf. p. 116). Note­-se, outrossim, o descaso com que está aí metido o “bê­-á­-bá”; pejorativamente, não se poderia fazer referência mais incisiva à função da escola primária. Mas a falta de interesse por esta escola revela­-se, além disso, noutro fato: nas localidades por onde passou, Júlio Paternostro não consigna nenhum ato de assistência ao ensino por parte dos habitantes. Ao contrário, em Filadélfia, por exemplo, constatou que a escola era constituída “por um rancho vazio”; os alunos levavam de casa os seus banquinhos de assento de couro (p. 158)! É óbvio que, se a escola primária estivesse fortemente integrada no sistema sociocultural, haveria movimentos nas comunidades em seu benefício, como acontece com as igrejas, verbi gratia. O mesmo “material modestíssimo” apresentou­-se ao autor em Jataí (p. 304).

Nessas condições, a frequência das escolas é pequena. Boa vista mantinha “o maior número de alunos que observei nas escolas primárias das localidades do vale de Tocantins” (p. 131), que era de 155 alunos. Depois vem Filadélfia, pelos dados computados pelo autor, com 76 crianças na escola (p. 158); Santo Antônio, com 60 (p. 116); e Piabanha, com 33 (p. 217). No sudoeste goiano, Jataí conta com 150 alunos no grupo escolar e com 30 numa escola particular. Devido a uma deficiência estatística, desconhece­-se a distribuição desses alunos, por sexo, cor, idade, classe etc. Só relativamente à escola de Piabanha especifica que são: 36 meninas e 40 meninos. Esses dados, em conjunto, mostram qual é o prestígio da escola nessas localidades, e o que se pode esperar da perpetuação indefinida do atual ensino primário. A posição pessoal dos professores, por sua vez, não ajuda a melhorá­-lo; muito ao contrário. Pois, conforme Paternostro, uma professora, natural de São Luís do Maranhão, recebia, para lecionar em Santo Antônio, 50 mil­-réis, pagos pela coletoria de São Vicente do Araguaia, circunstancialmente com o atraso de 6 a 8 meses (p. 116). Com seu próprio sustento, gastava 40 cruzeiros por mês. A professora têm, portanto, um status econômico muito baixo, sujeitando­-se, provavelmente, à “proteção” inevitável das famílias abastadas do lugar, como tantas outras, por causa dos atrasos no pagamento.

Esses dados, não há dúvida, são pobres. Mas é preciso pensar sobretudo no que significam: amostras de uma situação­-padrão, que existe no interior e até em certas áreas do litoral de Estados como São Paulo. Evidenciam muito bem a complexidade de um dos aspectos dos problemas brasileiros de educação, que só podem ser resolvidos por verdadeiros e competentes técnicos. Além disso esses técnicos precisam ser compreendidos e amparados. Em poucas palavras, sua atuação precisa ser desejada e estimulada pelos demais setores da sociedade para produzir resultados. Entretanto, isso não acontece. Assistimos, ao contrário, a um círculo vicioso. Fórmulas estreitas contentam a média das pessoas, restringindo sua inteligência dos problemas educacionais brasileiros, tolhendo sua tolerância e boa vontade para com os educadores e arrefecendo o ímpeto das influências sociais ativas na esfera da educação.

5 – O estado sanitário do interior

A um combativo ensaísta parecia que dois são os problemas do Brasil: um, o educacional; outro, o sanitário, ou, como dizia, com ênfase, médico sanitário. Na verdade, trata­-se de um curioso excesso de otimismo, do qual poucos compartilham em nossos dias – pelo menos assim, de modo tão simplista. Como não me cabe desenvolver o mote, vamos diretamente ao que nos interessa: a apreciação dos dados apresentados a respeito do estado sanitário do vale do Tocantins por Júlio Paternostro. O autor de Viagem ao Tocantins, médico do Serviço de Febre Amarela da Fundação Rockefeller, fazia­-nos pensar, sem querer, que traria a fundo os problemas relacionados à sua especialização. Tal não se deu, contudo; o material recolhido pelo autor aponta aqui, reponta acolá, com a mesma displicente espontaneidade, com que surgiu à sua observação durante a viagem. Reproduz, ainda assim e à maneira de esboço, uma imagem forte e suficientemente clara da realidade.

A doença endêmica que mais vidas ceifa no vale do Tocantins é a malária. Este vale, de acordo com o mapa geográfico de Boyd, como observa o autor, situa­-se entre as regiões mais endêmicas do mundo. Por isso, é a doença que predomina (cf. p. 82 e 231). Como a recidiva é a regra, “há indivíduos que atravessam a existência com acessos anuais de malária”. Desse modo, estabelece­-se um modus vivendi entre o organismo humano e os hematozoários, permitindo uma inter­-relação que o autor chama de quase fisiológica. “A pouco resistência física, o desinteresse pelo trabalho, a constituição débil e a cor terrosa de muitos habitantes da região traduzem à primeira vista aquele modus vivendi”. Os próprios médicos somente após o malogro da quimioterapia pensam noutras doenças e na necessidade de novos diagnósticos (p. 231). Em janeiro e maio, que coincidem com o máximo e com o mínimo das médias pluviais, os acessos palúdicos são mais frequentes (p. 233). Os surtos epidêmicos da malária, todavia, sobrevêm esporadicamente, desaparecendo sem intervenção de medidas profiláticas especiais.

Os anófeles, transmissores da malária, existem em grande número, nas margens e nos afluentes do Tocantins. A temperatura e a chuva favorecem­-lhe a proliferação. O autor verificou que são cinco as espécies de anófeles existentes no Tocantins: A. argyritarsis, A. albitarsis, A. darlingi, A. parvus, A. bachmanni; a disseminação das espécies conhecidas processa­-se em todo o território brasileiro (o Brasil conta com 32 espécies conhecidas, conforme o autor e anófeles da região do Tapajós vivem no Rio de Janeiro). Entretanto, parece­-lhe que o estudo da disseminação das espécies importa menos que o da sua adaptação a certo meio: “É preferível sabermos em que meio ecológico uma determinada espécie é transmissora”. O autor organizou um quadro dos artrópodos colhidos durante sua viagem, inclusive os anófeles (p. 235).

Além da malária, há uma forma endêmica de broncopneumonia, que vitima os apanhadores de castanha. Os leigos chamam­-na de catarro. Ocorre, com maior frequência, em maio e junho (p. 82). Pelas informações colhidas por Júlio Paternostro, só em Joana Peres, em 1934, esta infecção exterminou 30 indivíduos. O autor menciona a sífilis, entre os outros tipos de doenças predominantes. Casos de sífilis primária e secundária foram observados inclusive entre os índios (p. 236). O mais interessante é que os acessos febris frequentes dos doentes de malária, conforme anota Júlio Paternostro, reduzem as possibilidades do desenvolvimento da sífilis primária em sífilis nervosa, apesar da falta de tratamento da primeira. O autor não teve nenhuma notícia de doentes mentais atacados de paralisa geral; entretanto, são muito conhecidos os distúrbios psíquicos provocados pela sífilis. Essas observações coincidem com os resultados de pesquisas cuidadosamente controladas, realizadas por Robert Needles em Bela Vista do Tapajós, na Fordlândia, e que foram aproveitados por Júlio Paternostro: “Entre os indivíduos das regiões endêmicas, onde o tratamento da malária não se faz ou é precário, não se observam casos de paralisia geral”. Casos de doença de Parkinson e de cretinismo (p. 68), de bócio – toda uma família: pai, mãe e seis filhos “tinham enormes bócios” – (p. 236­-37), úlceras de Bauru (p. 239), febre amarela urbana e silvestre (p. 236­-330­-2), hipertrofia do baço (p. 232) e ancilostomose (p. 238) – que não apresenta intensidade calamitosa na região – foram observados pelo autor. É comum encontrar sertanejos com mais de uma dessas moléstias. “Examinei dezenas deles que tinham no mínimo quatro moléstias: leishmaniose, malária, verminose e bócio” (p. 308). Mais impressionante, porém, são os dados relativos à mortalidade infantil e ao mal de Hansen. A falta de registro das pessoas falecidas é muito comum no interior do Brasil. Por isso, diz, “a ausência de atestados de óbitos impedia o cômputo da mortalidade infantil dos casos fatais de doenças infecciosas”. Contudo, constatou que a mortalidade infantil em Igarapé­-Mirim era de 58% – de janeiro a março de 1935 faleceram 48 indivíduos, dos quais 23 crianças (p. 68). A desnutrição e o desconhecimento da puericultura, associados aos surtos epidêmicos da malária, agem concomitantemente no elevamento do índice da mortalidade infantil.

No Pará existem, de acordo com a informação de médicos sanitaristas, aproximadamente uns cinco mil leprosos. Em Goiás, o Censo dos leprosos ainda não foi feito; são calculados, entretanto, em dois mil indivíduos, na maior parte localizados no sudoeste goiano. A mesma situação repete­-se em Mato Grosso. Contudo, assistência à “macutena” é precária. No Pará, o “Estado mantém um pequeno leprosário” (p. 95), apenas; por isso, os leprosos vivem disseminados no interior e nas zonas urbanas – afundados no mato ou em suas casas, procurando a todo custo esconder sua doença. Numa das casas em que foi recebido, Júlio Paternostro só contou com a presença do dono da casa à refeição. Mais tarde, soube que os demais moradores da casa tinham lesões mutilantes de lepra. A população acostumou­-se aos leprosos. Todavia, os doentes de mal de Hansen retraem­-se, porque à divulgação da doença correspondem, inexoravelmente, a perda do status e a segregação não só do membro da família atacado, como de todo o grupo familiar. “Não procuram médico por medo da difamação e da possível perda de casamento das moças da família leprosa etc. Não se tratam e a doença se dissemina. Moças recém­-casadas, como vi, apresentavam sinais clínicos de doenças de Hansen” (p. 309).

O autor deu pouca atenção, como já observei, à coleta de elementos folclóricos. Neste capítulo, isso é ainda de lamentar, pois o que Júlio Paternostro registra, praticamente, não significa uma contribuição séria. Faz uma referência rápida aos curandeiros e ao uso de raízes e folhas nas infusões (p. 229) e consigna uma prática associada à cura da lepra – sangue de jacaré misturado com caju (p. 95). Mas estas formas costumeiras e empíricas de cura têm grande importância analítica. São principalmente valiosas no estudo dos padrões de comportamento de uma cultura de folk e mesmo de certos aspectos da organização social e são ainda úteis na análise dos motivos de aceitação ou de rejeição de formas desconhecidas de cura e tratamento das doenças – a relativa à “medicina científica”, por exemplo, representada pelos “médicos”. A medicina científica constitui um verdadeiro complexo cultural, implicando conhecimentos especiais, uma distribuição particular de tarefas e funções (médicos, enfermeiros, farmacêuticos etc.) e um equipamento próprio (instrumentos cirúrgicos, de diagnóstico, medicamentos, hospitais etc.). Atualmente, como aspecto de um fenômeno já muito estudado de secularização da cultura, presenciamos uma luta acentuada entre aquele complexo e o da medicina empírica. A tendência é de substituição parcial desta por aquela, como evidenciam pesquisas efetuadas em zonas urbanas e rurais. Ora, Júlio Paternostro viajou por uma região onde a substituição apenas começou e as mudanças ocorridas são ainda incipientes. Se tivesse dedicado maior atenção ao problema, teria feito uma inestimável contribuição ao estudo desse assunto, tal como se apresenta no vale do Tocantins. O material que coligiu, sobre o papel dos médicos, da assistência sanitária, da existência ou não de farmácias, das atribuições dos vendeiros etc., mostra o que se perdeu com isso, do ponto de vista da sociologia e da antropologia cultural.

A assistência sanitária, nessas regiões, ou é rudimentar e precária ou praticamente não existe. Assim, diz o autor, a respeito do único posto de assistência sanitária que encontrou em toda a viagem – o de Marabá (p. 232): “Um modesto posto de saúde do Estado do Pará é a única assistência sanitária dos habitantes do município; atende insuficientemente aos impaludados, cujo número aumenta de janeiro a junho” (p. 109). Socorrem também os apanhadores de castanha, vítimas da broncopneumonia. O trabalho realizado no posto, contudo, é quase o mínimo que se poderia fazer; consiste “em misturar quinino sem controle de cura”. Como vimos, lá só se pensa em outras doenças após o fracasso do quininoterapia. Também não se preocupavam, nesses postos, com estudos epidemiológicos nem executavam medidas profiláticas (p. 232). Os municípios mais adiantados resumem sua assistência às “Santas Casas” (vejam p. 239­-40). Estas mantêm­-se de donativos irregulares e das contribuições populares, recolhidas nas festas das igrejas (prenda, rifas etc.). Com esses recursos, é obvio, não podem adquirir todos os aparelhos e medicamentos indispensáveis, funcionando quase sempre devido à “abnegação dos médicos locais e das enfermeiras religiosas ou leigas”. Assim, a instituição não está em condições de provar positivamente. Os malogros constituem experiências negativas dos sertanejos sobre a “medicina científica”, atuando à maneira de forças centrípetas: leva­-os novamente aos métodos, processos e formas de tratamento das doenças já conhecidos, isto é, da “medicina empírica”. Observando isto, diz Paternostro: “No seio do povo há uma frase que resume essa deficiente assistência: morreu na Santa Casa. A repulsa ou melhor o pavor popular que se observa no interior, pela hospitalização, nasceu da ausência de recursos hospitalares”. Os postos de saúde, por sua vez, nem sempre foram localizados atendendo à distribuição das doenças endêmicas. Ao contrário, o seu fim geralmente era o de “garantir o prestígio de chefes políticos”. A precariedade, a escassez de medicamentos e a má localização dos postos fazem com que estes vegetem indefinidamente. “A maioria dos necessitados deixa de frequentar os postos pela dificuldade das distâncias. Os moradores das vilas, das pequenas aglomerações, das fazendas e terras inexploradas dos 1.574 municípios brasileiros têm que se contentar com os serviços do boticário, dos “entendidos” e das “comadres”. Novamente observa­-se que elementos da “medicina científica” produzem efeitos negativos, reforçando a prática dos meios costumeiros de cura. Os diversos aspectos da questão, acima apresentados, levou o autor a pensar na insuficiência da iniciativa privada. Parece­-lhe ser, este, um problema que poderá e deverá ser resolvido pelo Governo. “Só a execução de um plano estatal de assistência médica poderá remover as doenças curáveis que inutilizam precocemente a população de regiões que necessitam de indivíduos sadios para o seu desenvolvimento econômico­-social” (p. 231). Os dados discutidos acima mostram, não obstante, que a intervenção dos poderes estatais e o desenvolvimento de um plano sistemático de assistência médico sanitária, isoladamente, não bastariam. É preciso adotar, concomitantemente, outros meios, capazes de modificar a atitude de desconfiança diante da “medicina”, compartilhada por um número elevado de indivíduos de nossas populações rurais.

6 – Medicina científica versus Medicina popular

A situação precária da assistência médico sanitária, analisada anteriormente, tem uma correspondência natural e adequada nos outros setores da “medicina científica”, no vale do Tocantins. Verifica­-se logo a causa disso: a difusão dos vários elementos de um mesmo complexo cultural processa­-se senão organicamente, como queriam alguns etnólogos, pelo menos de modo concomitante. Porque os elementos constitutivos de um complexo cultural, é óbvio, condicionam­-se reciprocamente. Por isso, à penetração e integração de uns, numa área cultural determinada e em certo sistema sociocultural, segue­-se com maior ou menor rapidez a penetração e integração de outros elementos culturais, associados aos primeiros. Pela mesma razão, os obstáculos que dificultam a aceitação dos elementos culturais de um mesmo complexo cultural, oferecidos com antecedência, e as atitudes desenvolvidas a seu respeito – favoráveis ou não – refletem­-se com intensidade variável na aceitação, rejeição ou modificação dos outros elementos culturais, oferecidos ou difundidos posteriormente. No presente caso, médicos, enfermeiros, farmacêuticos, remédios e práticas da “medicina científica” devem ser considerados conjuntamente com os “postos de saúde” e as “santas casas”. Ao sucesso ou malogro dos “postos de saúde” e das “santas casas” deverá corresponder, provavelmente, o sucesso ou insucesso dos demais setores. É bastante possível que assim seja, especialmente devido às condições de vida sociais e naturais no vale do Tocantins. O fato de se tratar de uma zona muito vitimada por sérias doenças endêmicas (malária, broncopneumonia) cria necessidades especiais de assistência médico sanitária e hospitalar. Nessas fases, pelo menos, a assistência dos “curandeiros”, “entendidos”, o uso das “mezinhas” etc. revelam­-se insuficientes. Muitos indivíduos tentam obter os socorros da “medicina científica” por meio de postos de saúde, direta ou indiretamente, isto é, pessoalmente ou por meio de terceiros.

O importante, aqui, é que os principais contatos com a “medicina científica” efetuam­-se sob aspectos particulares, envolvendo os centros especializados de assistência médico sanitária de preferência. Os “postos de assistência sanitária” e as “santas casas” parecem desempenhar, pois, o papel de elemento dominante do complexo cultural. Os contatos com os médicos, enfermeiros, farmacêuticos, com as formas e processos de tratamento etc. da “medicina científica” assumem, de um modo geral, um caráter próprio: o de realizarem­-se por e através dos “postos” e das “santas casas”. Pode­-se compreender melhor, agora, as consequências da rudimentar assistência médica, dispensada ao sertanejo no vale do Tocantins. O equipamento deficiente; a tendência do médico a optar constantemente, mas sem maiores exames, pelo mesmo diagnóstico; a inexistência do controle da cura, como nas aplicações terapêuticas do quinino, por exemplo; a orientação insegura, por falta de estudos epidemiológicos; a má localização dos “postos”, exigindo muitas vezes a colaboração de terceiros incapazes, que passam a exercer o papel de intermediários entre a “medicina científica” e a “medicina popular”; as condições desfavoráveis ao bom desenvolvimento do tratamento (subalimentação, péssimas condições higiênicas, alojamentos precários etc.) são alguns dos fatores que explicam, conforme já foi visto parcialmente, o reduzido índice de curas. O rendimento e a eficácia esperados da “medicina científica” não se patenteiam aos olhos dos sertanejos, ou melhor, não correspondem às suas esperanças iniciais. A situação agrava­-se ainda mais, entretanto, porque suas impressões aumentam menos na base das experiências negativas de caráter pessoal, que na dos companheiros, em conjunto: é o espetáculo da repetição dos “fracassos”, que se desenrola diante dos doentes por causa do número mais ou menos elevado de enfermos, concentrados nas raras e pequenas cidades dotadas de recursos médico sanitários. Às decepções sucedem­-se reações emotivas de apego e de lealdade aos métodos de tratamento e de cura costumeiros, provisoriamente abandonados, isto é, ocorre um retorno aos processos e práticas da “medicina empírica”. Durante uma rápida viagem que fiz por Mato Grosso, em algumas cidades do interior de São Paulo, e mesmo numa pesquisa realizada nesta capital, tive oportunidade de analisar esse complexo mecanismo de mudança de atitudes, que o material apresentado por Júlio Paternostro em Viagem ao Tocantins evidencia nos seus aspectos essenciais. É óbvio que as decepções do homem da “cultura de folk” diante da “medicina científica”, estereotipadas em ditos como “morreu na Santa Casa”, dar “chá da meia noite” etc., atingem os demais elementos envolvidos pelo complexo cultural, parcial ou totalmente – os médicos, os farmacêuticos, os remédios, os processos de tratamento (dieta, a quem não está acostumado com regimes alimentares ou apenas conhece as “proibições” da “medicina popular”, ingestão de remédios em horas prescritas, a quem não tem relógio e não está habituado, como os homens da cidade, a usá­-lo etc.). A análise de outros dados fornecidos por Júlio Paternostro permitirá o deenvolvimento de alguns destes itens.

“Postos de saúde”, “santas casas” etc. são instituições pouco numerosas na região percorrida pelo autor. Concomitantemente, também, são pouco numerosos os médicos que nelas clinicam. “Em 1935, no norte de Goiás ou, em 2/3 da superfície do Estado, a única localidade que possuía médico era Porto Nacional. Encontrei em Natividade outro médico, mas a sua ocupação era a criação de gado e não a de medicina” (p. 229). Em alguns casos excepcionais, contudo, a importância do médico pode ser muito grande e sua influência, por causa da dedicação pessoal, favorece enormemente a difusão e a integração de elementos da “medicina científica”. A atuação de um médico de Jaraguá (dr. Paulo Alves da Costa) ilustra esse fato. Esse clínico abrigava em sua própria casa vários doentes, chegando a “ceder a sua própria cama a um que estava pior e passar a dormir no chão...” (p. 329 e ss.). Apesar da importância de casos deste gênero – relativamente comuns no interior – a sua frequência reduzida circunscreve suas proporções, limitando sua influência a certas áreas ou grupos de indivíduos e dando margem a uma personificação bastante esclarecedora, quanto ao significado desse tipo de conduta nos médicos (dos “médicos bons”, “santos médicos” etc.). É, ao mesmo tempo, um interessante aspecto do processo de substituição parcial da “medicina popular” pela “medicina científica”, nas fases iniciais e, pelo que fixa em tom de exceção na memória coletiva, um exemplo típico das reações dos membros de uma sociedade de folk à “medicina científica” e seus representantes.

Outros aspectos interessantes, relativos à introdução e à difusão de novos padrões culturais – os da “medicina científica” – constituem as próprias condições de vida do médico, nessas sociedades de folk. Júlio Paternostro deu pouca atenção às influências do meio social nas modificações do diagnóstico e no tratamento dos doentes. Anotou, porém, que “para um clínico regional como o dr. Aires da Silva, todo vexame (falta de ar, mal­-estar, inquietude etc.) diarreia ou dor de dentes são sintomas iniciais ou remanescentes do paludismo” (p. 231), e que, como foi visto, o diagnóstico se faz geralmente pela quimioterapia. O baixo nível de vida – principal causa da falta de médicos na região (cf. p. 230) – explica tanto a deserção da profissão como as dificuldades encontradas por esses médicos em acompanhar os progressos da “medicina científica”. Muitos médicos transformam­-se em criadores de gado, compradores de cereais, donos de olaria etc. (p. 230), procurando meios mais adequados à manutenção de seu elevado status social. Os que persistem na profissão, todavia, encontram sérias dificuldades, se quiserem acompanhar os novos desenvolvimentos da medicina. Processa­-se um curioso fenômeno de demora cultural numa esfera restrita; privados de meios amplos de comunicação com as zonas mais adiantadas, os médicos passam a ignorar os mais recentes e eficientes recursos terapêuticos. As consequências do relativo insulamento cultural dessas sociedades de folk repercutem, pois, profundamente, em seu campo de atividades profissionais. O autor refere­-se apenas vagamente a certas perdas culturais, referidas acima (apego a um diagnóstico, falta de controle de cura etc.), e indica também o aparecimento do curandeiro, em certos casos, como o intermediário entre o médico e o doente. Esses dados dão, apesar de sua pobreza, uma ideia aproximada de como se processa o desnivelamento cultural dos representantes: 1) da cultura de sociedades urbanas; 2) da “medicina científica”; são exemplos de esquecimentos de itens da antiga bagagem cultural e da aquisição de outros novos, por parte dos médicos. Quando estes se mantêm informados das inovações, é porque as malhas da rede da “propaganda científica” (outro elemento que se desenvolve associadamente ao complexo “medicina científica”), os alcança mesmo no interior. “De alguns anos para cá, a terapêutica é orientada, ou melhor, imposta aos médicos do interior pelas revistas de laboratórios de especialidades farmacêuticas estrangeiras e nacionais” (p. 230). Isso reduz o médico “a um simples elemento de ligação comercial na engrenagem da lucrativa indústria farmacêutica do país” (p. 231). O problema mais importante, aqui, deixou de ser focalizado pelo autor: em que grau os médicos, nas zonas em que havia farmácias, davam preferências às receitas sobre os produtos manipulados?

As farmácias, por sua vez, estão ligadas à existência dos médicos e sua aceitação – isto é, à aceitação da “medicina científica”, ainda que parcialmente. Os remédios que passaram da “farmácia científica” para o patrimônio da “farmácia popular” são vendidos em qualquer venda, na região percorrida por Paternostro – exemplo de que as decepções não implicam o abandono obrigatório de todos os elementos da “medicina científica” e de que as trocas são bilaterais (como ocorre nos casos, mencionados pelo autor, em que os próprios médicos lançam mão dos curandeiros para reunir informações ou estender o tratamento a certos pacientes). Mas como são poucos os médicos e porque os produtos mais procurados são vendidos nas “vendas”, as farmácias tornaram­-se raras – “farmácias não existem” (p. 229), diz o autor. Conforme seu testemunho, são os seguintes os remédios mais usados: sulfato de quinino, sal amargo, bicarbonato de sódio, magnésia fluida. “Panvermina”, “Saúde da Mulher” – e “uma outra droga”. Os vendeiros, nos povoados, passam, assim, a desempenhar os papéis de farmacêutico e de médico, por si mesmos muito confundidos no Interior. Indicam remédios, formas de tratamento etc., clinicam, numa palavra. Estas duas questões – estoque de remédios e receitas do “vendeiro” – são importantes. O autor, entretanto, deu­-lhe pouca atenção. Mas é evidente que nem sempre as sugestões (dos vendeiros) variam “com o estoque de drogas que possuam”. Seria preciso verificar até que ponto e com que intensidade elas refletem ou estão ligadas ao próprio contexto cultural. As funções dos vendeiros, longe dos povoados, passam aos “curandeiros”, aos “entediados” e às “comadres”. A terapêutica muda, então, predominando a infusão de raízes e folhas (p. 229). Algumas famílias possuem caixas de homeopatia – um interessantíssimo fenômeno de difusão e integração cultural registrado pelo autor. Foram adquiridas de compradores de couro, os quais as traziam consigo do Maranhão e da Bahia. E o autor anota que tem fé nos remédios, alguns com os líquidos originais de 20 anos. É um elemento cultural que foi integrado ao sistema sociocultural, sofrendo alterações de uso e significado, embora a função mantenha­-se a mesma. Outros elementos do complexo “medicina científica”, como a autópsia (p. 331), permanecem desconhecidos, e um número elevado deles ainda não foi integrado (intervenção do médico e uso de remédios em certas doenças como a lepra, verbi gratia).

Os fenômenos mais importantes dizem respeito, talvez, às relações entre a “medicina científica” e a “medicina empírica”. Júlio Paternostro revela uma compreensão completa da questão, sugerindo métodos de ação que se enquadrariam perfeitamente no que um meu amigo, professor de etnologia, chama enfaticamente de “política etnológica”. O exercício da “medicina científica” é compartilhado entre médicos, farmacêuticos, químicos, técnicos, propagandistas etc., as próprias funções restritas dos médicos são geralmente usurpadas por enfermeiros e farmacêuticos, mesmo nas zonas urbanas. Estes, nas zonas rurais, exercem­-nas em maior escala e também com maior aceitação e menores riscos. Mas, relativamente às funções dos médicos, nas zonas rurais há uma ampliação em bases generosas; como se exprime o autor, fazendeiros, esposas de fazendeiros, lavradores, seringueiros, barqueiros, apanhadores de coco, garimpeiros, boiadeiros, peões, “comadres” – como parteiras – acumulam os papéis e as atribuições de “entendidos” e de “curandeiros”. Por isso, o dr. Júlio Paternostro defende a utilização sistemática dessas pessoas, após certo treinamento, pela “medicina científica”. Alguns “curandeiros” “já são utilizados por médicos de sedes municipais para trazer informes e aplicar medicamentos aos doentes de rincões distantes” (p. 240). As duas ordens conflitantes de conhecimentos entram, pois, nesta fase do processo, em colaboração direta. E, por paradoxal que pareça, é o método mais seguro e provavelmente mais rápido de introdução dos novos traços culturais, relacionados à “medicina científica”. Os dados apresentados não permitem aprofundar as indagações sobre os processos através dos quais os “médicos” e “curandeiros” chegaram a essa forma de acomodação. O seguinte trecho, entretanto, é muito esclarecedor: “essa medida (aproveitamento dos curandeiros, entendidos etc. pelos médicos) contribuiria para erradicar a funesta fé nas mezinhas, beberagens etc., dos trabalhadores rurais e para cessar a luta subterrânea ou manifesta, nascida da necessidade ou da ignorância, que os representantes da medicina leiga mantêm com a medida científica” (p. 240).

7 – As condições de trabalho

Já fizemos algumas referências ao sistema econômico do vale do Tocantins. A relativa diversificação das áreas e dos recursos naturais implica uma certa diferenciação, dando origem a economias locais; estas, porém, mantêm algumas ligações entre si, pelo menos no suprimento recíproco de produtos básicos. O principal meio de comunicação utilizado no transporte ou no escoamento dos produtos é o próprio rio Tocantins. Mas, os tropeiros e mesmo os caminhões – em certos trechos – desempenham um importante papel na vida comercial. Os “motores”, quando descem, vão carregados da castanha e coco babaçu; quando sobem, levam sal, querosene, gasolina e tecidos (Júlio Paternostro, Viagem ao Tocantins, p. 64). O intercâmbio econômico ao longo da via fluvial, todavia, varia muito, quando se passa do baixo ao médio ou ao alto Tocantins. As economias locais permanecem num estado pré­-capitalista na exploração e cultivo da terra, a produção em grande parte é determinada diretamente pelo consumo e a família funciona, geralmente, como uma unidade econômica autossuficiente (como já foi visto). Júlio Paternostro não dedica a mesma atenção, entretanto, a todos os problemas envolvidos pela vida econômica. Somente sobre as condições de trabalho fornece, aqui e ali, alguns dados fundamentais. Embora, incompletos, estes dados dão­-nos uma ideia clara da variedade de ocupações do sertanejo – “o pária da nossa civilização” – de sua remuneração muito baixa, das relações que mantêm com os empregadores etc.

De acordo com as ocupações, pode­-se distinguir vários tipos de sertanejo; há os seringueiros, os vaqueiros, os remeiros, os carregadores, os apanhadores de castanhas, os tropeiros... Há ainda os pilotos, que devem ser considerados à parte. Pois a importância de suas atividades situa­-os de fato numa posição especial na hierarquia dos assalariados ou “alugados”. Recebem salários relativamente altos, determinam a hora de saída dos barcos, o percurso do “motor” durante o dia etc., e podem transportar nas viagens, de graça, a quem entenderem – “um amigo ou a amásia” (cf. p. 99­-100). Os seringueiros, ou “canelas finas”, são mais nossos conhecidos, por causa da imprensa e dos romances. À meia­-noite ou às quatro horas da manhã engastam nas árvores as vasilhas de flandres ou de barro. Cada seringueiro fura, em média, de 100 a 150 seringueiras, para obter 4 quilos de borracha. Essas vasihas enchem­-se até as 10 horas e o seringueiro tem de correr para levar o látex, ainda líquido, ao tacho; secando no vasilhame, transforma­-se em “sernambi”, um tipo inferior de borracha. Se a árvore já foi perfurada, o seringueiro usa uma escala de embira, o “mutá”, lancetando a parte superior da hévea; outras vezes pratica o “arrocho”, extraindo o látex das próprias raízes (cf. p. 73­-4). Os “carregadores” trabalham no fornecimento de lenha aos “gaiolas”. São homens de 60 anos e crianças de 8 anos. Transportam a lenha de torso nu, enchendo, rapidamente, os porões dos navios. “Como formigas ligeiras, entram e saem do navio, correndo nas pontas dos pés em cima da prancha que liga o porão à margem do rio, fazendo um percurso de 50 a 100 metros por ‘caminho’” (p. 72). No trapiche de Ariranha o autor contou 34 carregadores; 11 adultos e 23 crianças. Doutro lado, essa é uma ocupação irregular, quase periódica, pois os carregadores só têm serviço de 15 em 15 dias, quando passa o gaiola (cf. p. 73).

Na zona compreendida entre Baião e São João do Araguaia existem muitos castanhais. Aí trabalham os “apanhadores de castanhas”. As safras vão de janeiro a maio, e de dezembro a abril. Proprietários e arrendatários dos castanhais alugam, então, os sertanejos. Para fazer o seu serviço devem atravessar riachos a pé ou de canoa, pois as castanheiras margeiam as cabeceiras dos igarapés. Entram na mata descalços, de calça curta e chapéu de carnaúba, às vezes auxiliados pelas mulheres e filhos. Os acidentes são comuns e alguns têm morrido com o crânio fraturado pelos ouriços, os quais caem de 20 a 30 metros de altura; precisam esperar amanhecer, para evitar esses acidentes. Dos ouriços retiram as castanhas que são transportadas em cestas de 60 quilos até as “pontas” – bordas do castanhal. “A postura forçada em marchas longas, durante alguns anos de trabalho, arqueia a coluna vertebral de muitos deles. Observei alguns homens e rapazes com essa cirrose profissional” (cf. p. 82­-4).

Os tropeiros levam uma vida menos dura. Dois tropeiros e seis a sete burros (três com carga e outros com adestros) formam uma tropa (cf. p. 201­-02). Essas tropas são alugadas pelos freteiros aos viajantes. O autor mostra que é uma modalidade muito usada de transporte e de locomoção em certas áreas da região, embora bastante precária. Mas os vaqueiros são os diletos da fortuna, por assim dizer. Vestem­-se com roupas de couro e vivem sempre nos gerais ou nas caatingas, atrás do gado. Ainda adolescentes, começam a trabalhar como vaqueiros. São alegres e mais inteligentes e argutos que os lavradores, diz o autor (p. 208­-10), muitos deles intercalam os seus serviços de campeiros com os trabalhos no rio, como remeiros. Esses, por sua vez, não usam, em geral, camisas, e as calças de algodão podem ser curtas; em contraste com o vestuário do vaqueiro, completam o seu próprio vestuário com o chapéu de carnaúba. “Estão sempre alegres, cantando, falando, dizendo graçolas, num linguajar que muitas vezes não podemos entender” (p. 175).

Os sertanejos ganham muito pouco pelo seu trabalho. Júlio Paternostro, numa frase incisiva, testemunha: “Recebem um salário de fome” (p. 46). Uma empregada tem um ordenado de 4 cruzeiros mensais (p. 225). (Nota: Todos os dados fornecidos pelo autor referem­-se ao ano de 1935.) Já vimos também que uma professora de curso primário ganhava 50 cruzeiros por mês (p. 116). Por certos serviços de caráter especial (prestados como parte da hospitalidade, por exemplo; p. 186), apenas são aceitas retribuições em forma de presente. Os seringueiros, os carregadores etc. são muito mal­-remunerados. Aqueles vendiam o produto de seu trabalho por preço irrisório: 80 ou 50 centavos o quilo, tratando­-se de borracha ou de sernambi, respectivamente. Os carregadores recebiam mais ou menos, de acordo com sua capacidade de trabalho. Uma criança de 8 anos, em troca de 20 fichas, recebeu 40 centavos; um adulto, de 53 anos, por um serviço correspondente a 52 fichas, recebeu 1 cruzeiro e 40 centavos. Os apanhadores de castanha também são pagos na base de sua produção. Por um Hl de castanha, que pesa 56 quilos, recebiam 10 cruzeiros. Tem­-se uma ideia perfeita do regime de exploração em que vivem, comparando­-se sua remuneração com os lucros dos comerciantes e dos exportadores. Um Hl de castanha, posto no porto de Belém do Pará, custa ao comerciante 18,50 cruzeiros. O preço de compra, pago pelos exportadores, era, em 1935, 58 cruzeiros por Hl. O exportador revendia­-o, por sua vez, por 100 cruzeiros (p. 85). Os remeiros antigamente percebiam 50 cruzeiros por uma viagem que durava 6 meses (ida e volta de Palma a Belém); agora, ganham 2 cruzeiros por dia de trabalho (p. 178­-79). A situação do vaqueiro é pouco melhor. O pagamento do seu trabalho é feito em espécie: em cada grupo de 5 bezerros, nascidos e cuidados durante o ano, cabe­-lhe por trato um, o qual pode criar ou vender. São marcados com o seu ferrinho e em geral são os melhores, porque na época da ferra empulham os patrões na escolha. Se preferir vendê­-lo, o vaqueiro recebeu do patrão de 10 a 12 cruzeiros por bezerro. “Quase sempre os bezerros não dão para pagar o dinheiro, o sal, os panos que o vaqueiro tomou emprestado do patrão.” Apesar disso, como dispõem de roças de mantimentos e os tecidos são fiados na própria casa, alguns alcançam relativa independência econômica. Após uns dez anos de trabalho transformam­-se em criadores (p. 210­-11). É o único caso de modificação de situação econômica e de ascensão de status apontado pelo autor.

Os contratos são feitos verbalmente. No caso dos vaqueiros, após o compromisso de boca, estes recebem dos patrões: enxadas, machado, cavalo arreado e uma palhoça – quando esta não existe, o próprio vaqueiro deve construí­-la (p. 209). A fidelidade ao compromisso verbal é muito grande. Quando o vaqueiro “entrega o cavalo”, antes de terminar o ano, perde o direito sobre o trabalho prestado e o seu prestígio junto aos seus companheiros (p. 214). De outro lado, a legislação brasileira do trabalho não se estende ao trabalhador agrícola. O autor nota várias vezes as consequências desastrosas desse fato (p. 45 e 209), que torna possível a exploração sem limites do sertanejo. Por isso mesmo, todavia, a função dos contratos verbais é muito mais importante. Os elementos da tradição oral estipulam as obrigações recíprocas dos contratantes. Vimos, acima, as obrigações dos criadores; as do vaqueiro são: campear, levar os bezerros para o curral, amansá­-los, curar as bicheiras do gado, saber se ele está na caatinga ou nos gerais ou, ainda, se anda pelas terras do vizinho. É interessante que o engodo dos criadores pelos vaqueiros, na época da ferra, é uma expectativa de comportamento aceita e aprovada pelos últimos (p. 210).

É claro que a situação do vaqueiro, do ponto de vista de suas relações com os criadores, é muito especial. Ambos convivem intimamente. Quando conduzem o gado, dormem igualmente em cima de couros e comem juntos a mesma comida com as mãos (p. 214). Trajam do mesmo modo e montam os mesmos animais. A única diferença, quando existe, está na riqueza maior ou menor dos arreios. Neste caso, o “alugado” confunde­-se com o “patrão”. Nos pousos das boiadas do vale do Tocantins, dificilmente diferenciei o patrão do vaqueiro, diz o autor.

A condição dos outros assalariados é diferente. De acordo com as anotações de Júlio Paternostro, horas de trabalho, dispensa, pagamento do “aluguel” etc., “quem resolve a seu critério é o patrão” (p. 110). Em alguns casos, mesmo, a competição econômica leva os patrões a empregar métodos que eliminam as possibilidades da concorrência dos trabalhadores agrícolas, na venda dos produtos naturais. Assim, os arrendatários e os “aviadores” – comerciantes – têm usado os modernos meios de transporte fluvial para isolar na mata os apanhadores de castanha (p. 81).

A maior parte do material de natureza folclórica, apresentado no livro pelo autor, refere­-se a este item. As mesmas lacunas que já observei em casos anteriores ocorrem aqui, tornando impossível a utilização sistemática dos dados coligidos.

Indica, entretanto, ótimas pistas para futuros trabalhos de campo, especializados. Não só no setor do folclore material, pouco estudado entre nós. Vejam­-se por exemplo: fiação e tecelagem do algodão (p. 213­-14); indumentárias características e matéria­-prima das peças do vestuário (passim); unidades locais de pesos e medidas (o peso e a vara, p. 214; a talha, o caminho etc., p. 72, por exemplo); outros itens da cultura material, como o “colin”, o “panero” ou “joão maxim”, o aproveitamento do castanheiro na obtenção de estopa, madeira de canoa, como alimento e óleo de amêndoas etc. (p. 84­-6); os tipos de embarcações usados (passim). Sobre a alimentação, o autor ajunta também alguma coisa: “o cozido maria­-isabel”, a carne de sol, o café adocicado com rapadura, a “jacuba”, o hábito de comer sem talheres, a inexistência de frutas, de verduras, do leite, no regime alimentar habitual etc. Registra uma lenda e um diálogo de barqueiros (p. 177­-78) e faz uma referência ao tratamento empírico das bicheiras (p. 209), pelos vaqueiros. Mais interessante, porém, é a conservação do hábito e de palavras de campeagem nos vaqueiros que alternam esses serviços com as atividades de barqueiros. Um vocabulário especial, misto, e certas atitudes caracterizam os barqueiros­-vaqueiros: “bote é o mesmo que boi, quando entra na caatinga só a cacete”. No rio, empregam termos da campeagem; nos campos usam termos e expressões dos barqueiros. Isso reflete­-se, também, nas suas lendas e no seu tipo de vida (vejam­-se p. 175 e ss).

8 – As cidades e os movimentos migratórios

A povoação do interior do Brasil constitui um dos problemas mais importantes e interessantes do nosso desenvolvimento demográfico, econômico e social. Contudo, com exceção de Capistrano de Abreu, poucos foram os que fizeram do tema preocupação séria. Contemporaneamente, sob influências de duas correntes que encorpam dia a dia – uma originada no seio da geografia, outra nascida das ciências sociais – o estudo dos movimentos migratórios, do povoamento e da evolução das cidades e das zonas novas, tem progredido de modo alentador. Nesse sentido, os dois grandes centros de estudos são liderados por Gilberto Freyre e Pierre Monbeig, um ensaísta e sociólogo brasileiro e um geógrafo francês. Sob certos aspectos, a obra de Gilberto Freyre é mais importante, porque agitou um movimento de ideias e de pesquisas sem paralelos na história do pensamento brasileiro. Mas Pierre Monbeig deixará uma obra por sua vez duradoura. O grande valor de sua orientação e dos pesquisadores treinados sob sua direção está na fixação da paisagem brasileira como algo dinâmico, pondo em evidência as interações entre o homem e seu ambiente – físico e social – em toda a sua totalidade e complexidade. Problemas não faltam; são até numerosíssimos, nessa terra virgem.

Viagem ao Tocantins, de Júlio Paternostro, mostra­-o muito bem, sugerindo vários problemas de pesquisas de grande interesse científico. Falo em sugestão porque o caráter do livro só muito dificilmente permitiria ao autor aprofundar suas observações. Mesmo assim, essas sugestões correspondem a pontos de partida, que não devem ser desprezados. Como algumas questões, relativas à vida econômica e social nas sociedades de folk do vale do Tocantins, aos recursos naturais, à diferenciação geográfica e econômica etc., já foram abordadas, limitar­-me­-ei ao comentário dos dados mais sugestivos.

As povoações do interior do Brasil devem sua criação a fatores de ordem muito diversa. Mas, “no Brasil Central, diz J. Paternostro, grande parte dos arraiais originou­-se da bateia” (p. 38). Os corumbás formavam­-se em função do ouro contido nas areias dos pequenos rios. Depois, à medida que se rompia o equilíbrio entre os recursos naturais e as necessidades das comunidades, novas atividades eram tentadas, modificando as relações entre o homem e a terra e concomitantemente a própria organização social. O pequeno rio, entretanto, preservava a sua importância. “A disseminação quase sempre se produziu acompanhando os córregos, pois, quando os grandes rios davam passagem aos desbravadores, acontecia ser rara a terra boa que lhes ladeava o leito, ao contrário do que ocorria na margens dos ribeirões. Perto destes, os primeiros moradores aproveitaram a uberdade do solo. Depois desta uberdade estancada, as ondulações de arenito, os rebaixos, os cerrados, os agrestes, que se estendiam além, transformaram os pequenos agricultores em pastores de gado crioulo e raquítico” (idem). Não sei até onde é possível estabelecer uma ligação dessa espécie entre os agrupamentos humanos surgidos com a bateia, a agricultura e o pastoreio, e tampouco até onde isso seria legítimo, como generalização. Em todo caso, a busca do ouro, a coleta dos produtos naturais, o plantio de cereais e o pastoreio constituem as atividades econômicas dominantes na região, comunicando um ritmo muito próprio de desenvolvimento às povoações rurais, dispersas rarefeitamente sobre grandes extensões de terra. Esse ritmo de desenvolvimento não espanta ninguém; uma cidade como a de Baião, fundada em 1694, contava com 57 habitações, em 1894, e com 125, em 1935 (p. 79). O crescimento lento pode ser substituído, contudo, por uma regressão de ritmo acelerado. A cidade de Palma possuía, há cem anos, 255 habitações. Em 1935 contava com 120 casas velhas em ruínas. Essa regressão explica­-se economicamente: o seu porto fluvial deixou de ser centro comercial da região, passando Palma a ser abastecida por suas antigas cidades satélites (cf. p. 251). Muito interessantes, também, são as diferenças observadas por Júlio Paternostro entre as cidades velhas e novas. Os fundadores daquelas escolhiam áreas naturalmente protegidas contra as surtidas dos índios e conquistadores. Caracterizam­-se, por isso, pelos barrancos e pela preferência de pontos de observação, ao contrário das cidades modernas (cf. p. 125).

A composição dos povoados, entretanto, nem sempre é constante ou estável. Há uma certa instabilidade demográfica, a qual varia de acordo com as flutuações econômicas. Assim, a população de Marabá compreende 3.000 habitantes no “verde”, para descer à metade durante a seca (p. 108). Os agricultores nordestinos do médio Tocantins constroem suas habitações acima do comércio, isto é, do lugar por onde se escoam os produtos do seu trabalho extrativo ou agrícola. “Assim, as margens do rio povoam a montante do ‘comércio’ e são desabitadas e jusante” (p. 124). A oscilação demográfica diferencial entre a seca e o “verde”, no baixo Tocantins, é expressa pelo autor, numa variação de 50 a 200%, de uma estação a outra (p. 79­-80)! Nessas condições, o deslocamento de indivíduos e grupos de indivíduos torna­-se um espetáculo natural. O nomadismo encontra uma modalidade periódica de manifestação. Ao seu lado, há outro movimento de intercâmbio interestadual de indivíduos – as migrações de maranhenses, piauienses, baianos, mineiros, paulistas, os quais invadem novas áreas da região, competindo no nível biótico e econômico com os seus primitivos habitantes. Os piauienses e maranhense chegam até a Goiás, conservando muitas vezes a roupa de couro típica dos vaqueiros (p. 124; veja­-se também p. 116). Os baianos também se espalharam no vale do Tocantins. Mas é no alto Tocantins que sua fama é grande, pois são considerados o protótipo do imigrante bem­-sucedido, que consegue subir na escala social: “Baiano que chega de alpercata puída, quando a gente dá fé está montado” (p. 272­-73). Os mineiros, partindo do triângulo ou do Oeste de Minas, chegaram ao sudoeste goiano (p. 307). E os paulistas já alcançaram o centro de Goiás (p. 328).

Esses movimentos migratórias constantes, que refletem a “verdadeira caçada de matas”, segundo o autor, reforçam certas tendências de isolamento dos grupos familiais – que formam unidades economicamente autossuficientes. Escolhendo áreas limitadas e isoladas, e sempre em mudança, o sertanejo insular­-se­-ia socialmente (p. 40). Outros fatores aumentam esse isolamento, como a distância entre as fazendas – algumas distantes até a dia e meio de viagem (cf. p. 208) – o perigo da travessia de certos lugares do rio, como no caso dos povoados Boa Vista do Tocantins e Porto Franco (p. 41). Não obstante, o “telégrafo do bosque”, fenômeno conhecido em ciências sociais, funciona regularmente. Paternostro revela, perplexo, suas experiências, afirmando que “no sertão, as notícias esparramam­-se como se existisse telégrafo nas árvores” (p. 246­-47). Nessas condições, doutro lado, as fronteiras político­-administrativas constituem uma ficção. Os homens ignoram­-nas, simplesmente, como a outros tantos elementos culturais da “civilização”, não integrados em seus sistemas socioculturais. Os sertanejos de Goiás não sabiam informar onde começavam as fronteiras da Bahia ou do Maranhão (p. 116, 283 e 284).

Não menos interessante é o material que se refere às relações entre o homem e a terra. Uma questão de certa importância já foi abordada anteriormente: a existência de um modus vivendi desenvolvido entre o homem e os anófeles no vale do Tocantins. Por isso restrinjo­-me, para terminar estas notas, ao aproveitamento dos recursos naturais, pois aqui a “teia da vida” estabelece um novo tipo de modus vivendi, agora entre o homem e os elementos indispensáveis à sua alimentação e sobrevivência. O autor consigna poucos dados a respeito. Mas combate com veemência o extermínio que significa a simples coleta, agricultura extrativa praticada pelo sertanejo, de que se beneficiam, com exclusividade, os concessionários, os comerciantes e os exportadores. O esgotamento da terra é uma das consequências diretas dos métodos de sua utilização adotados pelos “párias da nossa civilização”, lavradores seminômades quase todos (p. 39­-40). Doutro lado, ao mesmo tempo desaparecem espécies vegetais existentes na região. Da madeira usada como combustível nos “gaiolas”, o autor fala que seu uso representa “um saque que perpetuam continuamente à floresta” (p. 72). Também somem as variedades de Hevea brasiliensis, mutiladas na extração do látex ou aproveitadas até reduzirem­-se a cinzas (p. 74). A mesma coisa acontece aos castanhais. A disseminação da castanha processa­-se pelas cutias, pacas, araras, antas etc.; ora, a presença do homem afugenta esses animais. Por isso, os novos castanheiros são raros, pois ninguém cuida da sua substituição. E a economia da região corre o risco de esgotar ou perder suas maiores fontes de renda.

9 – Os contatos raciais e culturais

Os estudos dos contatos raciais e culturais constitui, atualmente, um dos campos mais importantes da antropologia e da sociologia. O principal interesse da abordagem científica, nesses estudos, está na descoberta do que “acontece, quando grupos de indivíduos, racial e culturalmente distintos, entram em contato prolongado e contínuo”. Vários problemas, como o intercasamento, desenvolvimento de novos padrões, aceitação de novos valores sociais e perda de outros antigos, mudanças de atitudes nos indivíduos em função desses fatores, grau de isolamento ou de intensidade de contatos entre esses grupos de indivíduos em zonas social e espacialmente delimitadas (encravamento racial, intercâmbio racial e cultural etc.), desajustamentos de personalidade etc., podem ser assim estudados. Nesse setor, o Brasil oferece muitos problemas sérios de pesquisas. Relativamente aos “elementos fundamentais de nossa formação”, como são considerados os índios, os brancos e os negros, pode­-se dizer que tudo o que tem sido feito não passa de tentativas preliminares, de esforços para colocar, por assim dizer, o problema. De fato, um duplo trabalho de pesquisas históricas e de pesquisas de campo regionais precisa ser levado a efeito, de acordo com as possibilidades e os critérios, especialmente da antropologia física e social.

O livro que estou comentando, de Júlio Paternostro, mostra quantas possibilidades de pesquisas perdem os nossos especialistas em ciências sociais, por falta de recursos e de equipamento técnico. A região percorrida pelo autor tem uma particularidade muito importante: é uma das áreas em que um relativo isolamento cultural e racial, durante longo período histórico, provavelmente favoreceu o desenvolvimento cultural e racial num sentido bastante definido. Embora exista grande mobilidade demográfica (imigração das populações nordestinas etc.), a fixação de imigrantes europeus e asiáticos ocorreu em escala reduzidíssima naquela região (cf. p. 60; alguns negociantes sírios e os teuto­-brasileiros que adquiriram terrenos niquelíferos em São José). O sertanejo daquela zona é o que se chamaria, vulgarmente, de “cepa velha”. A também relativa estabilidade das atividades econômicas – predomina a produção extrativa vegetal no baixo Tocantins, a produção extrativa vegetal e a pecuária no médio Tocantins e a pecuária e a produção extrativa mineral no alto Tocantins – deve ter atuado de alguma forma no processo de diferenciação social e cultural. Os dados fornecidos pelo autor não permitem um aprofundamento adequado na discussão dos problemas que a leitura suscita; mas sugerem muita coisa, principalmente do ponto de vista das trocas culturais e das relações puramente físicas entre os “civilizados” e os “índios”.

Júlio Paternostro faz referências aos brancos, de pele tostada pelo sol e de cabelos ruivos; aos negros grandalhões; aos índios; e aos numerosos mestiços de branco e de negro com índios, e de branco com negro (p. 175). Está aí, pois, toda a gama de nossa escala racial, quanto aos contingentes biológicos que Sílvio Romero batizou de formadores. Os negros são mais numerosos nas zonas antigas de mineração, de Porto Nacional para cima (p. 223), tendo sido introduzidos na região já no século XVI (p. 59). Por isso, os mestiços de branco com preto existem em maior percentagem no alto do Tocantins (p. 93). Mas, de acordo com as observações de Júlio Paternostro, o elemento que mais contribuiu na miscigenação com o branco e com o preto foi o índio (p. 93). Além do intercruzamento desses elementos fundamentais – os brancos, os negros e os índios – ocorre intensamente a miscigenação dos tipos mestiços provenientes de áreas diversas (os emigrantes piauienses, paraenses, baianos, mineiros, paulistas; ver p. 58­-60), com os mestiços das áreas em que se radicam durante algum tempo e com os índios pacificados.

As informações do autor não nos adiantam nada a respeito do intercâmbio cultural, de como têm o índio, o negro ou o branco conservado elementos de sua herança cultural e contribuído com eles para o enriquecimento do patrimônio sociocultural comum. É possível que alguns elementos anotados pelo autor constituam exemplos da aceitação de traços culturais dos agrupamentos indígenas da região por parte dos grupos “civilizados”. Estão, nesse caso, certas práticas, como o costume de limar os dentes incisivos superiores, em forma de V – “observei dentes limados principalmente entre os índios, mulatos e cabras” (p. 185­-87); o tipo da marcha – os homens andam ligeiro e sobre as pontas dos pés (p. 74), sendo também comum a marcha em fila; o banho em comum no rio – com dois pontos próximos de homens e mulheres (p. 191­-92); elementos da cultura material, como os instrumentos e técnicas de pescaria – o pindá, a gamboa, o matapi, as gapuias (p. 70); outros artefatos, comidas, tipos de embarcação, certos elementos na construção da palhoça, cuja descrição incompleta impede qualquer espécie de conclusão, provavelmente também foram recebidos dos índios, pelos “civilizados”. As palavras aceitas dos primeiros por estes são do mesmo modo numerosas; os nomes referidos acima exemplificam­-no muito bem. Em alguns casos, todavia, a conservação das palavras não corresponde à manutenção do traço cultural primitivo. Assim, a palavra mutá designa uma escada feita de embira, muito usada pelos seringueiros; mas, antigamente, designava o palanque feito nas caçadas, para a espreita, pelos índios (p. 74). Esses dados, apesar de sua pobreza, representam a maior contribuição do autor relativamente ao aspecto que considero nesta parte. Pois evidenciam, claramente, o quanto se poderia esperar de pesquisas sobre a influência real dos índios na vida social dos brasileiros “civilizados”, do ponto de vista de suas trocas culturais durante o longo processo aculturativo, em que ambos os grupos têm estado em contato.

Esses contatos quase sempre têm resultados desastrosos para os índios. Ao lado da desorganização de sua vida social, provocam a transmissão de doenças dos brancos, de efeitos letais para os índios. O autor observa, de passagem, como os costumes e as doenças dos brancos estão dizimando os Apinayé e os Cherente (p. 58). Além disso, existe uma longa experiência negativa da parte dos índios sobre os seus “irmãos brancos”. A história do Brasil é uma longa história de espoliações e de destruição lenta e sistemática das tribos indígenas. O extenso vale do Tocantins não poderia ser uma exceção, tanto no passado como no presente. O autor diz que, ainda “recentemente, proprietários de terra e sertanejos do município de Pedro Afonso, banhado pelos Tocantins, massacraram 32 índios do Estado de Goiás” (p. 134). Isso faz com que as expectativas dos índios em relação aos brancos não sejam já muito favoráveis a um contato íntimo e amigável com estes, de conduta sempre duvidosa. E, por isso, algumas tribos preferem viver em conflito com os “civilizados”. O autor cita alguns casos de ataques dos Gavião aos apanhadores de castanhas que entram no centro da mata (p. 58­-135). Em outras situações, recusam colaborar com os brancos em suas atividades econômicas. Doutro lado, racionalizando os seus interesses, os “civilizados” desenvolveram padrões negativos de avaliação a respeito dos índios (cf. p. 134­-35­-46). Os habitantes seus vizinhos e até os seus próprios descendentes tratam­-nos com descaso. Basta alguém revelar interesses por eles, para provocar motejos dos sertanejos (p. 146).

Júlio Paternostro conseguiu alguns dados sobre os Apinayé que visitou rapidamente (p. 135­-47) e dá também algumas informações ligeiras sobre os Cherente, colhidas da boca de alguns moradores da região (p. 147­-50). Uma boa parte dos dados são citados do Padre Luís Antônio da Silva Sousa, de Vicente Ferreira Gomes e de D’Orbigny. Interessante é que o autor de maior importância, no estudo dos Cherente e Apinayé, do ponto de vista etnológico, que é Curt Nimuendaju, nem sequer foi citado. Os trabalhos de Curt Nimuendaju – The Apinayé, Washington, 1939; The Serente, Los Angeles, 1942 – constituem duas monografias modelares, como estudo científico. Júlio Paternostro poderia ter aproveitado pelos menos o primeiro trabalho, pois o seu livro só foi programado em 1942. Sua publicação, em 1945, poderia ser depurada das levianas afirmações feitas contra Nimuendaju (cf. p. 146­-47). Curt Nimuendaju nunca foi nenhum “explorador de índios” e tampouco pintou­-se em nenhum lugar como “explorador das selvas brasileiras”. Que deu exemplos de bravura e de coragem, é coisa conhecida; sirva­-me de exemplo a pacificação dos Parintintim (cf. Herbert Baldus, artigo in O Estado de S. Paulo, 6/11/1946; e o meu artigo in Jornal de São Paulo, 22/1/1946). Contudo, a detração é menos perigosa para Curt Nimuendaju que para o próprio Júlio Paternostro. Porque Nimuendaju não é apenas um dos nomes mais importantes da etnologia brasileira; é reconhecidamente um dos maiores amigos e benfeitores dos índios, aos quais dedicou toda sua vida. Foi também a única pessoa que teve coragem de acusar a Fundação Brasil Central pelo assassínio de índios do Pará (conforme carta lida, após sua morte, no Conselho Nacional de Proteção aos Índios; in Jornal de São Paulo, 27/1/1946).

Os dados de primeira mão recolhidos por Júlio Paternostro sobre os Cherente e Apinayé não têm nenhuma consistência científica. Como se trata de índios já muito conhecidos e estudados, o material coligido têm pouco valor como contribuição. É de espantosa ingenuidade, todavia, a correlação estabelecida pelo autor entre os traços culturais dos “civilizados”, rejeitados pelos Apinayé, e a “estrutura psíquica dos primitivos” (p. 140­-41; cf. tb. p. 145­-46). Ainda assim, esse trabalho engrossa a bibliografia existente, podendo ser apreciado particularmente pelas sugestões que deixa para futuros estudos de aculturação.

É interessante que os “civilizados” procuram o pajé para curar as suas doenças. O autor encontrou dois brancos que estavam se tratando de malária e úlceras da perna (p. 143­-44). Outros utilizam­-se da hospitalidade dos índios para obterem ligações amorosas com as índias (p. 143). Transmitem­-lhes, desse modo, as suas doenças. Nos contatos com os brancos de Boa Vista, os Apinayé desenvolveram uma nova forma de silent trade – o agrado. Deixam os seus produtos agrícolas (carás, inhames, bananas), na porta da pessoa escolhida para a troca. Mais tarde, voltam e esperam até receber uns níqueis (p. 145).

Às mulheres é vedado pelos homens da aldeia o comércio mudo; mas elas praticam­-no ocultamente. O dinheiro obtido serve para comprar os produtos da economia dos “civilizados”, integrados em seu consumo (caninha, chitas etc.). Este é o outro lado do processo aculturativo, que deveria ser estudado – quais os elementos da cultura do branco que fazem parte do sistema sociocultural da tribo? O autor verificou que muitos traços culturais dos “civilizados” foram aceitos com certas modificações (o uso a roupa, por exemplo). Mas outros foram energicamente repelidos (com o trabalho assalariado).

10 – Conclusões

O leitor gostaria, naturalmente, de saber por que escolhi o título geral dos estudos desta série – Um retrato do Brasil. Sua curiosidade deve ter aumentado, já que não tratei do Brasil, em geral, mas simplesmente comentei os dados apresentados por Júlio Paternostro em Viagem ao Tocantins. A resposta é singela: em conjunto, os vários aspectos que foram sucessivamente analisados, com as reservas e as limitações impostas pelo próprio material coligido pelo referido autor, dão­-nos, de fato, um retrato do Brasil. Daquele Brasil que está longe dos nossos olhos, afastado das nossas preocupações diárias, porém um Brasil que existe, que solicita a nossa boa vontade e o nosso carinho. No fundo, o que ficou feito é menos um retrato que um esboço; não importa, todavia, pois em tudo isto o essencial era chamar a atenção... e pensar sobre uma realidade via de regra ignorada, ausente do campo de nossas experiências habituais. Parece­-me que isso valeu a pena, tanto como tentativa de conhecimento, como em resposta às nossas exigências afetivas. Agora, contudo, chegou o momento do ponto final; e na alternativa entre a recapitulação e um novo debate, optei pelo segundo alvitre. Porque, é claro, não devemos nos colocar os problemas do vale do Tocantins por mero diletantismo. O próprio Júlio Paternostro afastou­-se dessa orientação perigosa, revelando uma vocação prática pouco comum na maioria dos nossos escritores.

Todavia, por coerência, devo limitar­-me às reflexões que cabem naturalmente nos propósitos deste ensaio. Os problemas que existem podem ser resolvidos de várias maneiras: cabe­-me, aqui, apenas pôr em evidência como se deve proceder para se chegar a resultados positivos, do ponto de vista das ciências sociais. Essa questão, aliás, é mais importante do que parece, pois comumente se diz que muitos pacientes morrem da cura. Em nosso campo, isso é ainda mais verdadeiro que nas esferas da medicina, porque sequer temos a garantia de que as pessoas que lidam com os problemas sociais sabem a seu respeito tanto quanto os médicos conhecem sobre o funcionamento do organismo. A relativa mocidade das ciências sociais e as barreiras opostas por sérios preconceitos – existentes tanto entre os cientistas como nos meios onde os seus conhecimentos podem ser aplicados – têm impedido, até hoje, a utilização em larga escala dos recursos fornecidos modernamente pela economia, sociologia, antropologia social, estatística etc. As ciências sociais nasceram e desenvolveram­-se, sob o signo de Augusto Comte ou sob o signo de Karl Marx – com o duplo propósito do conhecimento exato da realidade social e de seu domínio pelo homem. Esse desiderato só parcialmente tem sido levado efeito; o que se faz hoje é um arremedo do que se faria, se houvesse uma forte tradição de aproveitamento das investigações científicas – apesar dos exemplos de países como os Estados Unidos e a Rússia. Esta, após a Revolução de Outubro, desenvolveu uma verdadeira “política etnológica” em relação aos antigos grupos nacionais internos, cultural e racialmente distintos, ligados apenas por laços políticos; naqueles, a utilização tem chegado em certas ocasiões a ponto de pôr em ridículo a seriedade das ciências sociais.

No Brasil, até hoje, fora da iniciativa privada – e em escalas restritas – ainda se desconhece a primeira exceção que marcará o início de uma nova orientação político­-administrativa no seio do Governo e da administração. Em alguns casos, a pseudociência em que se baseiam políticos, administradores e reformadores sociais de vária espécie, é antes motivo de pesar que de júbilo. Entretanto, embora aqui não sejam lícitas certas comparações, o Brasil é um dos países onde a racionalização administrativa e política torna­-se dia a dia mais premente e necessária. As próprias condições em que se processou o desenvolvimento demográfico, econômico, jurídico, político e social do Brasil transformam esse problema numa questão de causa pública. O grau de descontinuidade econômica e cultural existentes entre as cidades do litoral e o sertão, por exemplo, implicam métodos de ação política e administrativa para o qual o governo e a administração não estão aparelhados e adequadamente preparados. Em geral, os métodos postos em prática ajustam­-se, relativamente, às necessidades das cidades mais adiantadas: à proporção que as demais cidades se desviam do ambiente padrão, as medidas tomadas não só evidenciam sua precariedade, como se transformam em sérios entraves ao seu progresso. Então, surgem combinações entre a prática política ou administrativa, estipulada pelos poderes centrais, e as práticas locais, costumeiras – como acontece, por exemplo, na eleição dos “coronéis”, no uso da capangagem etc. Em consequência, os métodos locais perdem sua eficiência; e os métodos propostos não alcançam os fins visados pelos legisladores. O problema é complexo, e não pode ser abordado profundamente nos limites deste trabalho; em todo caso, a regra fundamental, fornecida pelas ciências sociais, no caso de tentativas de mudanças dirigidas, é que o êxito destas depende da congruência que exista entre a inovação e a situação social considerada. Nesse sentido, é possível facilitar a aceitação de um traço cultural novo e obter condições para seu funcionamento “normal”. Acelera­-se, ao mesmo tempo, o ritmo do processo de substituição pela redução dos obstáculos elimináveis e diminui­-se ao mínimo o número de desajustamentos previsíveis etc. Essas pequenas indicações mostram muito bem que os problemas, nesses casos, devem ser estudados e resolvidos por especialistas. Se é verdade que os nossos dirigentes, como diz Júlio Paternostro, ignoram “a realidade destes oito milhões e quinhentos mil quilômetros quadrados” (p. 21), é ainda mais certo que o simples trato empírico com essa realidade não é suficiente para dar a alguém os elementos para a dirigir e modificar. Pelo menos, se se tem em mira evitar o célebre método de ensaio e erro, com acertos ocasionais.

Essas reflexões parecem­-me especialmente aplicáveis aos problemas levantados pela introdução de elementos culturais da “civilização” naquelas “sociedades de folk” do vale do Tocantins. Aqui se revela, em toda a sua força, a diferença que existe entre o processo orientado ou dirigido de alguma forma por meio de técnicas sociais e a mudança sociocultural espontânea. Nas páginas anteriores, foram analisados muitos casos de desajustamentos e de conflitos provocados pela difusão da medicina, da assistência médico sanitária e hospitalar, do ensino primário etc. Em sua maior parte, esses desajustamentos originam­-se das próprias condições em que aqueles traços culturais são oferecidos aos membros das pequenas comunidades rurais consideradas, pouco adequadas, de fato, ao desenvolvimento de experiências positivas a seu respeito, conforme vimos. A introdução desses elementos estava subordinada a uma orientação contraditória: 1º) determinação pelos poderes centrais das normas gerais a serem obedecidas em casos particulares (abertura de escolas, localização de postos de higiene etc.); 2º) abandono da instituição, por assim dizer imposta exteriormente, ao seu próprio destino. Mesmo outros problemas, habitualmente tomados isoladamente – criação de meios de comunicação e de transportes, elevação do nível de vida do trabalhador, criação de uma legislação do trabalho rural, fixação do homem à terra, introdução de novas técnicas de cultura agrícola etc. – devem ser definidos em relação a cada caso particular e considerados em conjunto, organicamente relacionados num plano. Enquanto se pensar que se conseguirá eficácia especial tentando resolver os problemas desta forma, isto é, procurando elevar alguns níqueis no “salário de fome” (p. 46), ou apenas combater a capangagem e a política desastrosa dos “coronéis” (p. 329) etc., não se fará mais do que remover o problema de um lugar para outro. A técnica é, além disso, perigosa, porque a ilusão de cura geralmente é desfavorável à análise dos efeitos negativos persistentes.

Os índios são outro exemplo valioso. As tribos pacificadas também constituem um problema difícil sob todos os aspectos. O desenvolvimento de padrões recíprocos de avaliação dos índios, de um lado, e do grupo “brasileiro” de outro, e de formas de acomodação, não justifica o cruzamento de braços dos poderes centrais. Em sua modalidade atual, verifica­-se que os resultados do processo, tal como se opera naturalmente, são sumamente desastrosos. Tanto do ponto de vista demográfico e econômico, como do ponto de vista social e ético. Centenas de indivíduos perdem­-se, dia a dia, fisicamente (em particular entre os índios), ou não são aproveitados economicamente. Fenômenos de desorganização social afetam a vida social e psíquica de indivíduos de ambos os grupos em contato e uma sucessiva série de frustrações dos padrões de comportamento estabelecidos “legalmente” ou “espontaneamente”, também por indivíduos de ambos os grupos – em particular dos “brasileiros” – contribui para o aumento da desconfiança recíproca. Os poderes estatais fecham os olhos; com isso, a questão não muda de aspecto e a realidade subsiste a mesma. O mesmo processo de liquidação lenta dos índios, que foi utilizado pelo colonizador português, é ainda praticado. Na verdade, os postos criados pelo Serviço de Proteção aos Índios são exemplo dos aspectos que geralmente assumem as intervenções semicientíficas. Pois não impedem – ao contrário, favorecem, embora em menor grau – o processo acima descrito. Diante disso, não sendo possível deixá­-los a si mesmos, por causa dos efeitos letais dos contatos com os brancos, e revelando o seu agrupamento em postos as mesmas falhas, de um modo geral, a única solução que resta é transformar esses postos em colônia de assimilação dos índios; chega­-se ao mesmo resultado, afinal de contas, sem perda do contingente humano.

Em síntese, a adoção pelo governo e pela administração de técnicas sociais definiria uma política de controle e orientação, na medida do possível, dos processos sociais. Para isso seria preciso, antes de mais nada, vencer uma velha norma que se enquistou na burocracia brasileira, que é o círculo vicioso. “Não é possível fazer melhoramentos, porque a população não comporta; a população não progride se não se fizerem os melhoramentos; mas, no fundo, ela atinge os melhoramentos que comporta, sem intervenção de ninguém.” O caso relatado por Júlio Paternostro, a respeito da navegação no Tocantins (cf. p. 227), é típico. Essa atitude é incompatível com a racionalização da política e da administração; mas ela é efeito e não causa. Modificando­-se esta, aquela tende a desaparecer.

29 Este trabalho foi publicado, parceladamente, em Jornal de São Paulo (São Paulo, 5/3/1946, 12/2/1946, 26/2/1946, 5/3/1946, 12/3/1946, 19/3/1946, 2/4/1946, 16/4/1946, 23/4/1946, 30/4/1946), no qual o autor escrevia, semanalmente, um rodapé dedicado às ciências sociais, sob o nome Homem e sociedade. Nessa série, foram aproveitadas indicações e dados fornecidos por Júlio Paternostro em Viagem ao Tocantins (São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1945).