Capítulo X

Uma Evocação da Revolução Constitucionalista74

A guerra, como fenômeno social, tem preocupado singularmente os psicólogos, antropólogos e sociólogos contemporâneos. Para isso muito contribuíram os acontecimentos que envolvem o mundo ocidental na Segunda Grande Guerra e as controvérsias provocadas pela aplicação bélica da energia atômica. Depois de terríveis experiências históricas, o homem ocidental procura descobrir, através das ciências humanas, o que alguns psicólogos chamam de sucedâneos da guerra, e o que certos antropólogos preferem designar como equivalente cultural da guerra. Os sociólogos, provavelmente por questão de modéstia, têm­-se limitado a proposições menos ambiciosas, satisfazendo­-se com tentativas de explicação da função social da guerra nas diferentes sociedades humanas. Acreditam que poderão, assim, conhecer cientificamente os fatores que determinam a integração da guerra em sistemas sociais tão diversos, como seria, por exemplo, a sociedade Tupinambá comparada com a sociedade em que vivemos, e indicar, na base de tal conhecimento, técnicas sociais de tratamento da guerra. Admitindo que um problema social só pode ser resolvido por meios sociais, os sociólogos não se iludem com as perspectivas exageradamente otimistas dos psicólogos e antropólogos. Por isso, interrogam com tanto interesse a organização social dos diferentes povos, visando extrair dela, se não a eliminação das estruturas guerreiras da sociedade, da cultura e do comportamento humano, pelo menos um saber positivo sobre as formas sociais de controle da guerra.

Nem todas as sociedades dispõem, entretanto, de fontes históricas capazes de oferecer à investigação sociológica uma documentação suficientemente rica e completa. Com relação aos povos primitivos, verbi gratia, os sociólogos precisam contentar­-se com os dados que eles próprios conseguem recolher através da observação direta e com as indicações, nem sempre claras, dos fatos conservados pela tradição tribal. No caso dos povos primitivos que entraram em contatos com os brancos a documentação, em geral, é a mais variada. Assim, pode­-se estudar, com relativa profundidade, a função ecológica e social da guerra na sociedade Tupinambá, aproveitando­-se os dados fornecidos por Léry, Gabriel Soares, Thevet, Cardim, Knivet, Abbeville, Evreux etc. Mas é nos povos que dispõem da escrita, como as sociedades ocidentais, que a análise sociológica da guerra encontra um terreno suficientemente sólido. Em tais sociedades, um complexo conjunto de fontes históricas transmite para a posteridade fatos significativos para a explicação da emergência de guerras em determinadas conjunturas sociais e descrições mais ou menos satisfatórias sobre o desenrolar das mesmas. Diários de campanhas, memórias, autobiografias e correspondência de militares, descrições de ex­-combatentes, romances, ensaios históricos, documentos e mapas oficiais etc. fornecem à Sociologia uma base empírica tão consistente quanto a que se poderia conseguir pela observação direta. A leitura das penetrantes páginas de Simmel sobre a guerra como fenômeno social dá um ideia do que se poderá obter, quando se tentar a exploração sistemática dessas fontes.

Entre os livros por mim recebidos ultimamente, encontra­-se o diário de um ex­-combatente da “revolução constitucionalista”, o qual comporta um aproveitamento desse gênero. Trata­-se de Palmares pelo avesso (São Paulo, Ipê, 1947), em que o autor, Paulo Duarte, nos oferece uma descrição viva e dramática da sua participação dos combates no Destacamento Leste. Por meio desse relatório, pode­-se acompanhar, pari­-passu, as sucessivas retiradas das tropas constitucionalistas, de Cachoeira até Aparecida, e as batalhas travadas entre elas e as tropas federais. Na qualidade de diário de campanha, o livro contém dados suscetíveis de utilização sociológica. Em primeiro lugar, fornece base empírica suficientemente sólida para permitir a reconstrução histórica das operações dos exércitos insurreto e legalista na referida frente de batalha. Em segundo lugar, a documentação apresentada descreve situações em que o autor se viu envolvido com os seus companheiros de armas. Por isso, pode ser aproveitada em duas direções. Na parte propriamente autobiográfica, dá abundante material para um “estudo de caso”, em que o problema central seria de mudança de personalidade: como as condições de existência social nas trincheiras transformam a mentalidade de um civil, provocando lentamente a emergência de sentimentos, emoções e atitudes características do soldado. Na parte narrativa, reúne informações sobre a vida na frente de combate e descrições de cenas cotidianas ou de atividades rotineiras, bastante significativas para a análise das atitudes e do comportamento dos soldados, das relações dos soldados nas trincheiras, bem como do aparecimento e das manifestações de ideais coletivos.

Alguns exemplos poderão surgir ao leitor a variedade e o tipo de documentação contida no livro. Seria interessante tomar, verbi gratia, as autoanálises de emoções e sentimentos contidas nas p. 25, 31, 33, 153 e 268­-69. As autoexposições citadas não guardam, entre si, uma ordem de sequência lógica; mas constituem índices expressivos de mudanças de atitudes, relacionadas com a interferência de novos fatores sociais. São, em particular, evidências de mudanças de comportamento motivadas pelo status de soldado e exercício dos papéis correspondentes. Assim, o autor viu­-se envolvido, ainda calouro, em uma situação crítica: a insegurança de um tenente pôs em risco, em um momento difícil, a posse de um setor. Sua incapacidade de controlar as emoções levou­-o a desmaiar diante dos soldados e estes esboçaram um movimento de recuo. “Tive ímpeto de matá­-lo, mas faltou coragem. Alguns dias depois, com mais algumas semanas na frente, quando o respeito pela vida humana deixa completamente o espírito dos mais tímidos e escrupulosos, tê­-lo­-ia matado. Porém, nesse dia de estreia, sem querer, ainda não dominavam em mim as virtudes da guerra. Ao contrário, o medo da morte e a covardia em matar – os vícios da paz – é que nem sofreava direito para aparentar, àquele instante, a atitude que devia manter quem os soldados chamavam de capitão” (p. 24­-5). Mas, pouco a pouco, o autor conseguiu despojar­-se dos “vícios da paz”, incorporando à sua personalidade valores que lhe permitiam compreender os “encantos da guerra”. O processo pode ser descrito, utilizando­-se o material do livro, em diversas direções. Neste comentário limitar­-me­-ei à apresentação de alguns tópicos sobre a modificação de atitudes diante dos cadáveres, a capacidade de autodomínio e as representações sobre a morte. Os contatos com os cadáveres suscitavam, a princípio, reações subordinadas a padrões de comportamento inadequados. “Eram os primeiros cadáveres que eu via na frente. Senti repugnância de tocá­-los. Enquanto os olhava, à beira da linha, esperando a gôndola, dançava em meu espírito tudo quanto pode pensar quem ainda não está adaptado à carnificina” (p. 31). Lentamente, as reações foram ajustadas à nossa situação, de acordo com as experiências e os padrões de comportamento vigentes nas trincheiras. Acompanha­-se, assim o processo através do qual a cultura promove a racionalização das manifestações emocionais dos indivíduos, abrigando­-os de si próprios, isto é, protegendo­-os contra os resultados fatais a que estariam expostos se ficassem abandonados às contraditórias manifestações dos sentimentos pessoais. Encarando­-se o processo do ângulo antropológico, pode­-se compreender a progressiva “insensibilização” dos soldados como consequência da vigência de novos valores sociais. Portanto, a insensibilidade revelada pelos soldados, depois de ajustamentos bem­-sucedidos, nem sempre pode ser encarada como perda de “qualidades” pessoais e de potencialidades emocionais. Constitui, apenas, expressão de tipos de racionalização e de controles sociais dos sentimentos e das emoções individuais, através de mecanismos culturais. Eis como se poderia ilustrar, com poucos trechos, esta explanação: “Aos poucos nos acostumamos com os encantos da guerra. Fizemos intimidade com o sangue e a morte. Já não olhávamos os cadáveres com a mesma repugnância. Nem pelo cérebro dançava agora, ao vê­-los, qualquer comentário. Tocava­-se sem pensar em lavar as mãos depois”. “Via­-os sem atenção. Eram coisa inútil. Mandava­-se um morto para trás, da mesma forma que as marmitas vazias ou as armas quebradas” (p. 33). “Esgotaram­-se as reservas sentimentais. Acabara já de consolidar em mim a mentalidade de combatente. Sentia mortos todos os meus preconceitos, todas as supertições...”. “Estou perfeitamente à vontade até para matar. Um dia destes, na frente foi que descobri a morte de todos os meus escrúpulos. Uma granada derrubara várias soldados. Casualmente eu vinha chegando. Um médico socorria os feridos. Um destes fora largado atrás de uma moita junto a um cadáver ali oculto das vistas dos que ainda gemiam. Aproximei­-me deste ferido que respirava uma espuma sangrenta. Uma bala do crânio, outra no peito. Estranhei que socorressem outros antes dos mais graves. Quando os padioleiros partiram com o último mutilado, o médico justificou.” “Nem bem despachara o meu sapador, ecoou um tiro atrás de mim.

“Com a pistola na mão o médico explicou:

“– Para limpar o cano, estava muito sujo...

“Aproximei. O agonizante estremecia levemente.” “Acho que em qualquer outra eventualidade, teria tido qualquer impressão. Ali não senti nada. Até, nos rápidos momentos em que o caso me dançou na memória, achei razoável aquele método de dar uma solução rápida a uma situação irremediável...” (p. 152­-53). “Coisa curiosa: há três dias senti remorso por haver matado um porco. E hoje não senti nada ao matar um homem... Nunca tivera tido até agora a certeza de haver sequer atingido alguém. Neste momento tinha a convicção, todas as provas ali estavam. Certeza absoluta não de o haver ferido, mas de o ter matado, porque não o atingi com um fuzil, o que poderia fazer admitir a hipótese de um ferimento apenas. Mas de uma rajada em cheio, ninguém escapa! E depois eu o vi por algum tempo após a queda. Lembrei­-me quando se alçou, depois da rajada, tão perto que cheguei a ver­-lhe as feições. Os olhos esbugalhados, abandonando o fuzil com o qual vinha de atirar.” “Uma rajada era uma rajada.” “Fosse o que fosse, o fato é que eu tinha matado um homem. E eu não sentira a menor impressão” (p. 268­-69).

Os textos citados mostram que o abandono de certas convenções e atitudes prende­-se ao fato de determinados padrões de comportamento deixarem de ter vigência nas situações enfrentadas pelos soldados na guerra. O status de guerreiro está polarizado em torno de padrões de comportamento cuja observância desenvolve qualidades especiais e modifica profundamente a perspectiva social dos indivíduos. Entre outras, as representações sobre a vida e a morte adquirem outro significado e função. Atitudes que em situações anteriores acentuavam o valor da vida humana assumem um sentido específico: com referência ao “nosso grupo”, conservam todo o conteúdo positivo; em relação ao inimigo, porém, exprimem­-se de modo negativo: o sucesso e a preservação de um grupo depende, estreitamente, do aniquilamento total ou parcial do grupo antagônico. As atitudes humanitárias são assim restringidas e suas manifestações concretas convertem­-se em um mecanismo de proteção dos que lutam de um mesmo lado ou por uma mesma causa. Contudo, as representações sobre a morte sofrem redefinições mais radicais. Pois, aqui, torna­-se necessário integrar o guerreiro em duplo sistema de ajustamentos. De um lado, ele precisa reelaborar suas concepções sobre o significado da morte. Esta cai, de chofre, dentro da esfera da consciência como uma ameaça permanente. Por isso, a ideia de que a morte é uma probabilidade constante e talvez um prêmio certo, sublinha todas as atividades rotineiras, das mais simples às mais complexas. A noção de perigo acaba recebendo nova interpretação, e o clima de heroísmo emerge dentro de uma configuração cultural em que os atos deixam de ter, em si mesmos, um caráter excepcional ou dramático. Tornam­-se exigências da situação e a consciência do alcance dos mesmos nem sempre nasce de um ímpeto heroico. De outro lado, o guerreiro precisa, como em relação à ideia de vida, integrar suas atitudes em duas categorias culturais discrepantes; uma, que se associa a manifestações emocionais positivas, relativamente fortes, quanto às perdas do “nosso grupo”; outra, que traduz polarizações negativas das emoções individuais, nos casos de malogros fatais para os inimigos. O grau de regulamentação ou de controle sociais de ambos os tipos de emoções é que determina a intensidade das ações agressivas e retaliadoras nas operações coletivas. Em grande parte, a integração do “nosso grupo” flutua em função dos mecanismos sociais de sublimação das emoções pessoais em atos construtivos, propostos em termos de objetivos do grupo. Por meio desses mecanismos, as emoções pessoais positivas são canalizadas para os alvos do “nosso grupo” e as emoções pessoais negativas são contidas, nas exteriorizações objetivas, dentro dos limites de represália estabelecidos pelo “nosso grupo”. Quando esses mecanismos sociais não se ajustam equilibradamente uns aos outros e à situação total enfrentada pelo grupo, a ação dos guerreiros fica entregue às flutuações dos sentimentos e emoções pessoais; a integração ao “nosso grupo” das atividades de cada um, considerado individualmente, e a coordenação das atividades propriamente grupais processam­-se com dificuldades. Surge, então, um ambiente propício à desorganização da personalidade e da ação coletiva. Manifestações desarticuladas de bravura e de desespero pessoais, bem como de pusilanimidade e covardia individuais, tornam­-se frequentes, interferindo seriamente no equilíbrio do sistema organizatório do “nosso grupo”. O livro comentado oferece ampla base empírica (além dos trechos já citados), para uma análise deste tipo, permitindo a evidência de que o fracasso da “revolução constitucionalista” se deve, em parte, ao funcionamento inadequado dos referidos mecanismos grupais de regulamentação do comportamento e de organização das atividades coletivas (cf. p. 15­-329).

A documentação fornecida pelo livro permite lidar, porém, com problemas menos gerais. Assim, é interessante acompanhar a mudança de atitudes diante dos objetos desejados (cf. p. 130­-33). “O soldado em campanha, com a maior naturalidade deste mundo, tenha sido ele na vida normal o homem mais honesto da terra, via se apossando de tudo quanto lhe caia debaixo dos olhos.” “A desapertação faz parte dos usos e costumes militares.” “Desapertar tudo quanto encontra é o pensamento mais comum que viaja debaixo de uma farda combatente” (p. 130). O autor descreve as próprias indecisões, quando precisou “desapertar” um binóculo; mas, através de uma série de racionalizações, chegou à conclusão de que o binóculo estaria servindo melhor em suas mãos e conseguiu ganhá­-lo de “presente”. Outra sugestão de interesse sociológico refere­-se ao emprego sincrônico das metralhadoras. Os soldados obtinham certos efeitos sônicos, como o zé­-pereira, combinando as rajadas com perícia. Com isso animavam os companheiros e quebravam parte da monotonia das perigosas atividades rotineiras. Do mesmo gênero são as atitudes de réplica: “O Felício comentou: – Vamos repicar o jogo do inimigo: os seus 120 mais 30!...” (p. 203). Essas seriam, para os sociólogos e antropólogos que veem na guerra uma espécie de jogo, ilustrações significativas. Há também o registro de várias cenas da vida dos soldados nas trincheiras, através das quais o sociólogo pode ter conhecimento dos assuntos prediletos nas conversações e dos valores sociais básicos que as informam. Apesar dos efeitos literários que o autor procura tirar, pode­-se avaliar o teor analítico de tais descrições pelo seguinte excerto:

“Um mulato claro contava um montão de inimigos que, na frente sul, varrera com a metralhadora. Os companheiros aparteavam, cada um memorando também uma valentia.

“– Não se lembra, naquele dia, perto de Faxina? Ô! dia feio! Nunca fabriquei tanto morto, na minha vida! De noite, o batalhão inteiro estava de capote novo oferecido pelos defuntos.

“– Agora, um bicho foi ali o André! Hein? André! Abriu o peito dum capitão mineiro com a granada de mão!

“O André, sorrindo, veio contar a sua história. Quase um adolescente. Fora no Túnel. De madrugada, o inimigo assaltou as trincheiras. O pessoal plantou firme. Mas, depois, acabou a munição e o apertado mandou lembrança! Aí o comandante disse para escorar com a granada de mão. O inimigo, quando viu a trincheira quieta, avançou, pensando que tudo tinha fugido. Foram chegando devagar. Bem pertinho, eta, Nossa Senhora! Quanta porrada! Os abacaxizinhos fizeram uma limpeza! Era pedaço de mineiro pra toda banda! A mineirada que ainda pôde, desandou pelo morro abaixo que parecia pedra rolando!

“E prosseguiu:

“Foi aí que eu vi um capitão deles procurando animar o pessoal. Não tive dúvida, pulei pra fora da trincheira, já com o tatuzinho sem colchete pronto para arrebentar. O capitão, quando me viu, virou o revólver, mas já a granada arrebentava mesmo em riba do peito dele! Eh! Rapaz, só ficou a casca! Abriu desde o peito até detrás da bunda. (O pequeno ilustrava com o gesto, indicando o próprio corpo.) Espirrou tripa e bofe pra todo lado! concluiu, cuspindo de esguicho.

“Uma risada de aplauso cobriu a descrição. O fato foi confirmado por companheiros. Olhares de admiração, de inveja cercavam o heroizinho, que estava de verve:

“– Nesse dia, eu ganhei a divisa de cabo e um capacete novo.

“– A divisa, o meu capitão. O capacete, o defunto.

“O aplauso geral traduziu o sonho de cada um por oportunidade igual. Nem sempre vinham, ao mesmo tempo, o par de preciosidades, capacete e divisas” (p. 22­-3).

O trecho anterior também descreve as formas aprovadas de obtenção de prestígio. Aliás, este é um tema que merece menção especial, em virtude de abundante documentação fornecida pelo livro. A referência mais explícita à correlação de prestígio e curriculum guerreiro é a seguinte: “A metralhadora de cá, do Barros, conhecia­-se pela variante musical do tiros. Um dos bons soldados, o Barros. Adaptou­-se à guerra com a maior facilidade. Hoje, uma espécie de líder dos companheiros. Ganhou prestígio pela maneira única por que na guerra se ganha prestígio: matando” (p. 69).

Entre outros problemas sociológicos da guerra, o leitor encontrará ainda, no relatório de Paulo Duarte, dados de fato para a análise da reação circular, das relações de companheirismo, da ética militar e da função de liderança nos grupos guerreiros. Quanto ao primeiro problema, é preciso esclarecer que o principal atrativo do material recolhido está no fato de se referir a uma situação social específica, na qual são visíveis as manifestações de desequilíbrio do sistema organizatório do exército constitucionalista. Por isso, como se constata por meio de diversas descrições, o “medo” eclodia com relativa frequência, substituindo por emoções desintegradoras o inaproveitamento cultural das aptidões e qualidades pessoais dos combatentes. Ao sociólogo interessam, especialmente, as observações sobre os processos de propagação e de retenção do medo. “Às vezes, só uma reação hercúlea pode evitar o domínio do medo. Em especial quando se manifesta coletivamente. Um nada pode provocá­-lo. Vi tropa bater­-se de dia e de noite, tesa, fria ao pior dos riscos. Passado o perigo, tudo calmo, sem a menor causa: rato que correu, o estalido de um galho seco, uma arma que disparou, é o pânico!” (p. 99). O autocontrole, em tais condições, é resultado de uma concepção de segurança profundamente penetrada pelas expectativas de perigo e pelas representações sobre a morte, desenvolvidos nas trincheiras, e depende em larga escala da capacidade grupal de ação e de ajustamento à situação crítica. “O segredo do domínio é não perder o raciocínio. Basta pensar que no mais das vezes a segurança está no lugar mais perigoso e a morte numa retaguarda, num ponto abrigado. Qualquer sobressalto é inútil. Aquele soldadinho assassinado, à nossa vista, no vagão, dias e dias andou pela frente de Bianor, fez a retirada de Queluz no próprio carro em que muitos foram atingidos pelas primeiras balas dos invasores. Foi morrer quando já não havia o menor perigo... A morte não veio do inimigo. Estava a meio metro, no fuzil do companheiro...” (p. 99). “No ambiente especial das linhas de fogo, essas coisas e mais o hábito vão pondo a gente indiferente e apático. Mas, apesar disso, é preciso um alerta contínuo, porque o medo é o melhor cúmplice do inimigo – cai de improviso. É preciso habituar­-se a ter medo para dominá­-lo bem” (p. 99). Em trecho anterior, encontra­-se um bom exemplo de como se processava a retenção de um movimento incipiente de pânico e recuo; “O bombardeio, geralmente, começava às dez horas. Desde a véspera o rancho não chegava na trincheira. Um grupo do Piratininga distraía­-se da fome respondendo aos tiros inimigos. O Fernando, que trabalhava num F. M. reclamava munição. O Pereira que os comandava (o Piratininga quase nunca teve um oficial na trincheira) esperava o bombardeio da maneira por que numa trincheira se espera um bombardeio certo. Entremeadas com os tiros, as pilhérias nervosas cruzavam­-se. O Fernando, que esvaziava outro pente, susteve uma frase ao meio, encontrou a cabeça à beira da vala e, devagarinho, como um corpo cansado que se entrega aos poucos, foi escorregando para o fundo da trincheira. O companheiro que lhe passava munição viu um fio vermelho na fronte do outro. Como uma criança que se assusta e chama pela mãe, o companheiro do Fernando chamou também:

“– Pe­-rei­-ra!

“O comandante do grupo fez estender o cadáver sobre uma lona. Escalou dois para levá­-lo e mandou que se prosseguisse o fogo.

“Como um grupo de crianças que se tivesse contagiado do susto da primeira criança, os rapazes cheios de comoção não sabiam obedecer. Um deles, chorando, declarou que não podia mais ficar ali. Outros fizeram coro com o primeiro. O choro já amolgava as feições de mais um. O Pereira, quase contagiado, pensou no pânico. Pensou no bombardeio que deveria iniciar. Pensou no provável ataque depois do bombardeio. Pensou na trincheira vazia ocupada pelo inimigo. Pálido, sibilino, malcriado, as palavras ricocheteando pelos dentes concordou com eles:

“– Vocês têm razão! Vão embora depressa, porque agora vai começar o bombardeio!

“O pranto estancou­-se, as feições recompuseram­-se. Dois minutos de silêncio e estourou a primeira granada. Durante uma hora duas baterias martelaram o Morro Verde.

“Os meninos tinham virado homens!” (p. 96­-7).

Do mesmo modo, ocorrências insignificantes podem provocar uma debandada: “... Fizemos uma longa fileira, o tenente à frente, seguido dos homens e eu à retaguarda. Quase transpúnhamos o perigo, quando subitamente, em disparada, volta o tenente, para trás. A soldadesca apavorada debandou pela encosta abaixo.

“– É a mim que eles estão visando! – exclamava o tenente de olhos esbugalhados. – Por causa dos galões! – continuou. Arranquei as platinas para desviar a atenção dos inimigos.

“E mostrava os ombros rasgados pela violência com que arrebatara os galões.

“– Ora, tenente, o inimigo está a oitocentos metros e a essa distância não se vê nem cara, quando mais galões!

“E ante o espetáculo dos homens rolando os barrancos, as armas atiradas fora, no pânico provocado pela covardia de um oficial, roeu­-me um desespero doloroso” (p. 57).

Na base de suas experiências, o autor oferece­-nos uma representação vívida da influência da guerra, na supressão das barreiras sociais: “Quase de manhã, uma sede horrível me torturava. Embora molhado completamente, tinha a garganta ressequida pelos gases da pólvora.

“– Ninguém tem água, aí?

“– Aqui, tem um pouco, seu capitão.

“Era um preto fantasticamente feio. Beiços inchados e feridos, dentes podres, gengivas escuras abertas num sorriso para me agradar. Eu testemunhara já a sua bravura e destemor. Mas tinha nojo da figura mulambenta que lembrava os morféticos de estrada.” “Agarrei­-o (o cantil) rápido e emborquei, bebendo de um só trago o resto da água que continha, um líquido salobro com gosto de terra. Ao devolver o cantil ao dono, esse também tomava água. Ele também tinha sede. Estava bebendo numa poça suja à borda da trincheira.” “Toda a ternura que pode ter um homem que passou a noite combatendo, pus no meu agradecimento.” “A trincheira nivela e acaba com os escrúpulos” (p. 37­-8; o grifo é meu).

A documentação sobre as relações sociais dos soldados, entre si e com os oficiais, é bastante rica. Mais do que estes aspectos da vida social nas trincheiras, porém, atrai a atenção do sociólogo, no livro, as consequências da composição heterogênea do exército constitucionalista. O ajustamento recíproco dos componentes do exército, principalmente os oficiais, foi perturbado pelos atritos devidos à sua extração de camadas sociais diversas: uns eram oriundos de corporações militares, outros de população civil. O autor nota “um orgulho tolo de quase toda a oficialidade de carreira, desprezando os civis que se tornaram oficiais, na linha de frente; pela gente do Exército não receber com boa cara o comando de superiores da polícia. Indivíduos incapazes de compreender que ali não existia mais nem esta nem aquela corporação, mas um exército novo, que devera permanecer unido e forte contra um inimigo unido e forte!” (p. 58). Graças a essa situação, ocorriam interferências graves no sitema organizatório do exército constitucionalista. Tais antagonismos constituíam fatores de pertubação das atividades militares e muitas vezes provocaram resultados desastrosos. Eis um exemplo esclarecedor: “Este, uma noite, narrou­-me o incidente da Vala Suja, no qual tomara parte. Tudo culpa exclusiva do tenente que comandava o Blindado. Ao atacar, por engano, a nossa trincheira, o próprio tenente, que não quisera ouvir o Nino sobre a sua localização, assumira uma das metralhadoras pesadas. O sargento Benjamim chamara­-lhe a atenção sobre a possibilidade de um erro: insensatamente e de má cara como fizera ao Nino, cortara a observação do sargento com um gesto brusco. E uma dezena de soldados nossos foram assassinados” (p. 281).

Quanto à ética militar, gostaria de indicar aqui apenas duas ocorrências. Uma diz respeito às atitudes de honra: o Trem Blindado caiu em uma tocaia. “A ordem de recuo foi dada, rápido.” “Vagarosamente, o trem principiava a rodar. Mais dois tiros seguidos e as granadas assoviavam arrebentando no flanco esquerdo” (p. 286). Nessa circunstância, o maquinista do trem pretendia guardar certas conveniências da ética militar: “a máquina chamou­-me ao telefone. O Silva, maquinista, consultava se não seria melhor afastarmos vagarosamente para que o inimigo não pensasse que estivéssemos com medo...” (p. 286). A outra, refere­-se à resposta que o capitão Saldanha deu a outro oficial: “o militar não se deve julgar abandonado e sim honrado quando lhe dão um posto de sacrifício” (p. 237).

De toda a documentação exposta no livro, a mais rica e sólida corresponde às atividades e comportamento dos oficiais. O material contido nos quatro primeiros capítulos apresenta, pois, ampla consistência para uma análise sociológica da liderança nos grupos guerreiros. Mas a excelência da documentação não repousa no acúmulo de dados. Ao contrário, ela nasce da própria situação social criada pela revolução constitucionalista. Graças ao desequilíbrio patente do sistema organizatório das forças militares de São Paulo, dificilmente se encontrará melhor campo para a investigação sociológica da função social da liderança nos grupos guerreiros. A desorganização das atividades militares – dentro de toda a frente do Destacamento Leste, em determinados setores da mesma frente, ou em certas posições, mantidas por forças voluntárias, da polícia ou do exército – permite estabelecer uma relação funcional entre o comportamento do líder e a ação da tropa. Embora outros fatores estivessem envolvidos, além das relações do tipo líder­-e­-soldado e soldado­-e­-líder, as descrições evidenciam que o exercício inadequado das funções de liderança foi uma das principais causas do malogro militar da revolução constitucionalista. Poderia fazer várias citações, mas limito­-me a algumas mais significativas: “O capitão Arcy aprovou com a cabeça e reforçou que o lugar do oficial é junto da tropa. O oficial é o primeiro que avança e o último que abandona as posições” (p. 21); “a constituição pela qual guerreávamos, tinha soldados. Mas faltavam oficiais” (p. 59); “por isso, não me revolto contra o soldado, mas contra o oficial que corre. Este tem obrigação de dominar­-se” (p. 99); “sem repressão violenta contra os maus comandos, principalmente os pequenos comandos, o melhor soldado, o de moral mais firme tem que correr para trás. Só um bom oficial é capaz de ensinar a um soldado correr para a frente...” (p. 188); “no início, era evidente a má vontade dessa tropa. Efeito da má vontade dos oficiais, porque o soldado está sempre com a disposição do oficial. Mas os dormentes com que o Trem Blindado os presenteou, o trabalho que íamos tentando junto aos mais fracos iam mostrando­-nos resultados animadores” (p. 275). A preocupação pelo assunto por parte dos oficiais manifesta­-se, inclusive, nas conversações e no desejo de punir as contravenções à ética militar: “O malogro destes batalhões de voluntários, mais do que à franqueza da mocidade, se devia aos maus comandos. Geralmente, os comandantes não iam às frentes, onde lutavam e caíam os seus soldados, nem por mera curiosidade... A única maneira de devolver a uma tropa a eficiência que deve ter, quando falta valor nos comandantes respectivos, é a sanção violenta contra os responsáveis. O capitão Saldanha pensava como eu: no dia que se encostar numa parede à frente de um pelotão um sargento ou um tenente cuja trincheira debandou, nunca mais nenhum soldado correrá. Porque os soldados até agora tinham corrido atrás do tenente ou do sargento...” (p. 162). No caso do exército paulista, as desaprovações ao comportamento dos oficiais atingiu a tropa; um sargento, por exemplo, protestou contra a avaliação negativa da unidade a que pertencia, atribuindo ao capitão o fracasso dos companheiros. “Não senhor. A tropa é boa. É só dar um comandante que ela vai para a frente!” (p. 151). Em resumo, esses dados indicam precisamente a função do líder nos grupos guerreiros. A consecução dos objetivos grupais, nos campos de batalha, depende em grande parte do comportamento do líder do grupo. Manifestações de indecisão ou de covardia, no comportamento do líder, podem provocar desorganização das atividades militares e quebra na unidade de ação do grupo.

Na realidade, a situação total era mais complexa. Deve­-se considerar, especialmente, as diferenças de comportamento dos oficiais “militares” e “voluntários” – distinguindo­-se ainda, entre os segundos, os que eram “constitucionalistas” dos que apenas participavam da “revolução constitucionalista”. É evidente, à análise sociológica, que os ideais da Revolução Constitucionalista não conseguiram empolgar grande parte da oficialidade, oriunda das corporações militares ou da população civil, nem a maioria da tropa. Essa é uma das fontes de explicação da desorganização das atividades militares no Destacamento Leste. A falta de comunhão dos valores da revolução constitucionalista impediu o funcionamento dos mecanismos de ação recíproca do líder sobre a massa e da massa sobre o líder. Parece que a revolução constitucionalista malogrou seja na criação dos ideais políticos, que deveriam orientar a opinião pública, canalizar suas manifestações e coordenar as disposições inconformistas do povo, seja da propagação daqueles ideais. O clima de exaltação política confinava­-se aos núcleos urbanos mais densos e a consistência dos valores que deviam presidir a “ação revolucionária” era pequena, em comparação com as consideráveis proporções do movimento. Os reflexos dessa situação nos setores militares foram apreciados acima: falta de coordenação das atividades militares, exercício inadequado das funções de liderança guerreira e passividade da tropa, que passou a depender da iniciativa e do comportamento dos oficiais. Se por acaso os ideais da revolução constitucionalista representassem valores sociais para a maioria da oficialidade, esta teria comunicado outros sentimentos e emoções aos soldados, obtendo da tropa uma ação mais decisiva e produtiva. Do mesmo modo, se os ideais da revolução constitucionalista fossem partilhados efetivamente pela maioria da tropa, esta teria agido sobre o ânimo dos oficiais: quer comunicando­-lhes maior ardor combativo, quer promovendo a substituição dos recalcitrantes ou desajustados, processos normais em situações desta natureza.

Aliás, parte dos desentendimentos e conflitos dos oficiais “revolucionários” – principalmente “voluntários”, mas havia também “militares” – com os demais oficiais “militares” e “voluntários” pode ser atribuída ao grau desigual de participação desses valores. Os primeiros encaravam os objetivos da guerra e as tarefas que deviam realizar, à custa de quaisquer sacrifícios, de uma perspectiva “revolucionária”. Os segundos, ao contrário, julgavam­-se livres de toda a espécie de compromissos ideológicos, apreciando as obrigações impostas pela revolução constitucionalista como parte de uma situação de fato. Os “militares” principalmente, tanto do Exército como da Polícia Estadual, tinham poucos motivos para se prenderem ao movimento, em particular depois que as possibilidades de fracasso se tornaram evidentes. Descarregaram a carga mais pesada nos ombros dos companheiros e dos oficiais “voluntários” reconhecidamente constitucionalistas e exerciam um tipo de sabotagem que se poderia qualificar de passiva; mas, assim que puderam, passaram à oposição aberta e sistemática.

É óbvio que as relações dos “revolucionários” com os demais componentes do exército constitucionalista traduzem tais antagonismos. O presente livro é uma transposição do gradiente de desenvolvimento das relações entre as duas camadas do exército constitucionalista. No início, os elementos não revolucionários deram uma colaboração discreta, malgrado as manifestações de imperícia ou de intolerância; depois, em consonância com os progressos das tropas legalistas, procuraram agir sobre os próprios companheiros e subordinados, visando promover a cessação rápida da luta. Paulo Duarte exprime com ressentimento, como “revolucionário” que era, o desenvolvimento do gradiente de relações sociais. De acordo com a análise precedente, tal ressentimento deve ser compreendido como consequência de conflitos motivados por antagonismos sociais e por diferenças ideológicas. Graças a ele, porém, o autor registrou muitos acontecimentos e fatos significativos, que provavelmente teriam passado despercebidos a um observador “desinteressado”. Em primeiro lugar, vejamos o retrato do oficial “não revolucionário”: “... a coisa mais inútil deste mundo é um tenente de retaguarda. A mais enquizilante também. Aparecem por minutos, numa elegância e numa prosápia ostensiva, para depois contar coisas lá atrás. Foi um destes que veio, um dia, aqui. Parecia cavalo de caboclo rico. Completamente arreado. Tinha tudo. Revólver, binóculo, canivete com serrinha, saca­-rolhas, abridor de cerveja, furador, um canivete caixa de ferramenta; e ainda uma combinação admirável de correias cruzando o peito, cruzando nas costas; um capacete de aço com as armas da República, esporas de metal branco, botas de verniz, culote com reforço de camurça...” (p. 133). Na frente, esses oficiais esforçavam­-se para manter o mesmo tipo de vida a que estavam habituados. O autor encontrou “Cachoeira transformada num grande acampamento de ciganos. Ciganos elegantes. Automóveis entupindo as ruas. Moços elegantes da cidade transformaram o lugar numa sociedade elegante, mais ou menos com as mesmas pândegas e diversões. Ontem, vagabundos na paz, hoje vagabundos na guerra...” (p. 15). E mesmo em situações críticas procuravam afastar dos ombros as cargas mais pesadas. Dois praças, por exemplo, recusaram­-se a obedecer a determinada ordem: “O primeiro retrucou. Ficássemos sabendo que eles tinham posição social” (p. 63). Mas as restrições voltam­-se severas para os soldados das corporações militares: “Que ideia os cândidos caboclinhos da Força Pública ou do Exército fariam de uma Constituição pela qual combatiam? Que ideia faziam dos malefícios da ditadura? Que ideia faziam da Lei, quando repetiam tantas vezes que combatiam pela Lei?...” (p. 30). E para os oficiais das mesmas corporações: “É verdade que não eram só oficiais da Força que, desde o início, vinham falhando. Muitos do exército persistiam em dar a mais triste impressão de si. A maior parte, gente que acorreu, na certeza de uma vitória fácil nos primeiros momentos e, agora, com o prolongamento da luta vinha mostrando o que realmente era” (p. 238). O interesse deles pela revolução constitucionalista era tão pequeno, que nem lhes importava o aperfeiçoamento dos conhecimentos técnicos. “A Vala Suja fora o meu curso especializado e o meu curso de Estado­-maior, como estava sendo de outros como eu. E, no entanto, esses oficiais que com todas as facilidades contavam; que, quando nada, ao menos tinham ali campo de aperfeiçoamento, num curso prático, na escola da guerra verdadeira; esses miseráveis nem ânimo de aprender possuíam! Não pensavam nem em melhorar no ofício, já que lhes faltava a dedicação pela causa” (p. 58­-9). O trecho mais expressivo, como índice do conflito ideológico, é o seguinte: “Em termos firmes, o Saldanha estranhou a atitude do alto comando, assumida sem a menor consulta aos comandantes das frentes. A revolução não fora feita pelo G. Q. G. Não tinha este, pois, o direito de encerrá­-la sem consultar os seus camaradas. Assim, como a disciplina militar nos obrigava a obedecer de baixo para cima, a disciplina militar obrigava o alto comando a obedecer, até certo ponto, de cima para baixo. Tanto que, como general, o supremo comando não seguira a vontade expressa dos seus soldados que combatiam e do povo que dava alento ao exército paulista. Era assim um desertor do seu posto” (p. 314­-15). A partir de certo momento em diante, entretanto, a “revolução constitucionalista principiava a ter, à sua frente, a ditadura, e, às suas costas, a traição”; “à frente e à retaguarda, palmares pelo avesso!...” (p. 240). Como se tratava de um conflito ideológico, é duvidoso que os oficiais assim descritos pensassem a mesma coisa sobre o próprio comportamento. Ao contrário, os argumentos que usavam para convencer os companheiros e atrair a tropa equivalem, em sentido inverso, ao que os “revolucionários” sentiam a seu respeito. (O leitor interessado pelo desenvolvimento das negociações, entre o comando do exército constitucionalista e as forças federais, encontrará indicações nas p. 233­-38 e 304­-18.)

Em resumo, o presente diário de um ex­-combatente da revolução constitucionalista representa, sob vários aspectos, uma fonte primária, rica de dados de fato para a análise sociológica da guerra. Como sugestão de aproveitamento do referido tipo de material – desta fonte e de outras, da mesma natureza – procurei indicar uma forma de discussão sociológica dos seguintes problemas: relações de personalidade e cultura; tipos de ajustamentos e controles sociais; reação circular; relações de companheirismo; ética militar; função da liderança; e, como extensão da apreciação deste problema, repercussões de interesses sociais antagônicos e de diferenças ideológicas no sistema organizatório do exército constitucionalista.

74 Resenha do livro de Paulo Duarte, Palmares pelo avesso (Instituto Progresso Editorial, São Paulo, 1947), publicado por Nuto Sant’Anna na forma de artigo em Revista do Arquivo Municipal, vol. CXXIII, São Paulo, 1949 (p. 23-35), sob o título “A revolução constitucionalista e o estudo sociológico da guerra”.