As Mudanças Sociais no Brasil
O título deste livro foi escolhido por sugestão do editor, o querido e pranteado amigo Paul-Jean Monteil. Dele também foi a decisão de manter o título no plural, o que correspondia à variedade de facetas dos assuntos abrangidos nas três partes do livro7 e permitia fugir à ambiguidade do conceito formalista de “mudança social”, tão em voga entre os sociólogos norte-americanos. Todavia, na ocasião não me pareceu necessária uma discussão sociológica global dos problemas de mudança social no Brasil.8 O ensaio, que agora passou para o apêndice, sobre Atitudes e Motivações Desfavoráveis ao Desenvolvimento, parecia-me uma introdução teórica suficiente, aqui e ali adequada à situação histórico-social brasileira, graças ao debate de alguns exemplos típicos.
Hoje, depois de tanto tempo (é preciso não esquecer que os trabalhos que constam desta coletânea foram escritos entre 1946 e 1959), é evidente que se impõe a discussão global do tópico geral. Não tanto para justificar interpretações ou pontos de vista que então pareciam mais certos; e ainda menos, para colocá-los em dia. Mas, para levar o próprio tema ao leitor de modo mais direto e ordenado, com a experiência que consegui acumular posteriormente, de 1960 a 1974, anos durante os quais a análise histórico-sociológica atingiu o seu apogeu, no Brasil, e nos quais sofreu, em consequência, uma perseguição sem quartel. Tudo isso tem muito a ver com a maneira pela qual os problemas de mudanças social se colocaram, pelo menos para os sociólogos brasileiros que viam a realidade de uma perspectiva crítica e participante.9
As razões que explicam essa mudança de atitudes são de natureza psicológica e política. O maior contraste entre a situação do sociólogo em nossos dias e nas décadas de 1940 ou de 1950 está no nível de expectativas. Então, duas coisas pareciam certas. Primeiro, que ao sociólogo cabia assumir suas responsabilidades intelectuais em um nível puramente profissional. Feita uma descrição ou uma interpretação, suas implicações ou consequências relevantes acabariam sendo percebidas e se concretizando, de uma forma ou de outra. Segundo, que a sociedade brasileira estava caminhando na direção da revolução burguesa segundo o “modelo” francês, sob aceleração constante da autonomia nacional e da democratização da renda, do prestígio social e do poder. Havia, portanto, a presunção de que o alargamento do horizonte intelectual médio refluiria na área de trabalho do sociólogo, criando para as investigações sociológicas de cunho crítico uma ampla base de entendimento, tolerância e, mesmo, de utilização prática gradual. Tratava-se de uma “utopia” e, o pior, de uma utopia que se achava redondamente errada.
Tal utopia pode ser facilmente compreendida se se toma em conta sua origem acadêmica (transferência de ideais de trabalho por parte de professores de origem europeia e treinados para trabalhar nas universidades europeias) e a falta de concomitância entre papéis profissionais e oportunidades de participação dos sociólogos no movimento político-social. Um ideal relativamente complexo de pesquisa sociológica foi tolerado, durante certo tempo; mas, por fim, entrou em conflito com as situações de interesses de classes sociais dominantes, que não estavam preparadas para conceder real autonomia aos sociólogos profissionais. Além disso, a inexistência de um movimento político-social relativamente forte deixou os intelectuais mais ou menos “livres” e “independentes” à mercê da pressão conservadora. Os mais íntegros protegeram-se através de um radicalismo puramente subjetivo (isto é, sem suporte institucional, já que não se poderiam apoiar na estrutura e no funcionamento da universidade brasileira; e sem suporte de massa, já que não existia qualquer movimento político-social suficientemente forte para servir de contrapeso à pressão conservadora). Os que participavam, simultaneamente, da vida universitária e do movimento socialista tinham de cindir seus papéis intelectuais, como se esses dois eixos de atividades fossem estanques, exclusivos e só se encontrassem no infinito... Apenas em algumas esferas mais abstratas, quase sempre de elaboração teórica, ou, no extremo, como referência a questões práticas de alcance limitado, se tornava possível alguma comunicação frutífera e íntegra desses dois mundos.
Durante a década de 1960 iria-se assistir a uma dupla evolução. Nos primeiros anos dessa década, fortaleceu-se o impacto da condição externa do sociólogo sobre seu labor intelectual. Abriram-se, então, novas perspectivas, que acarretaram uma forte polarização política e ideológica dos papéis intelectuais dos sociólogos. Em compensação, produziu-se um aprofundamento qualitativo e quantitativo da sociologia “crítica” e “participante”. Todavia, esse processo se desenrolou tendo como patamar uma situação de crise nacional e internacional das estruturas internas de dominação de classe. Logo se evidenciou que o grau de secularização da sociedade brasileira como um todo e que os ritmos de democratização das relações de poder eram totalmente insuficientes para absorver tal desenvolvimento da pesquisa científica. Abriu-se um vácuo, que expôs a sociologia às circularidades do obscurantismo intelectual e da repressão conservadora. A resistência à mudança eclodiu, assim, como uma força especificamente política de alto teor destrutivo, pois ela se desencadeou de fora da universidade para dentro, mas encontrando, dentro da universidade, um sólido ponto de apoio institucional.
Esse rápido bosquejo mostra que não se podem reatar os vínculos com o passado como se nada tivesse acontecido ou como se a evolução tivesse sido outra, mais favorável à expansão da pesquisa científica e das ciências sociais. Os círculos sociais dos quais participo não me proporiam, nos dias que correm, os temas que me foram propostos nas décadas de 1940 ou de 1950. Doutro lado, os temas que me fossem propostos seriam certamente examinados de um ângulo bem diferente, como o demonstram os trabalhos que escrevi recentemente ou que estou escrevendo. Essa diferença de expectativas e de orientações impõe, no mínimo, que se considere criticamente certas questões. Por que o sociólogo, numa sociedade como a nossa, volta-se com tanta insistência para os problemas de mudança? Quais são as características da mudança numa sociedade como a brasileira? Por que o controle da mudança é tão importante para o poder político das classes sociais dominantes? Essas questões não apareciam ou ficavam apenas implícitas nos ensaios coligidos neste volume. Em nossos dias, porém, elas não podem ficar encobertas ou meramente pressupostas. Precisam ser consideradas em conjunto e tomadas, não como um “foco de referência”, mas como o ponto de partida de qualquer discussão sociológica crítica e realmente explicativa.
Por que estudamos a mudança social?
Há muitas razões – empíricas, teóricas e práticas, a serem consideradas isoladamente ou em conjunto – para que o sociólogo se interesse pelo estudo da mudança social. As sociedades humanas sempre se encontram em permanente transformação, por mais “estáveis” ou “estáticas” que elas pareçam ser. Mesmo uma sociedade tida como “estagnada” só pode sobreviver absorvendo pressões do ambiente físico ou de sua composição interna, as quais redundam e requerem adaptações sociodinâmicas que significam, sempre, alguma mudança incessante, embora esta seja com frequência pouco visível (quer à análise microssociológica, quer à análise macrossociológica de conjuntura). De modo que um “estado de equilíbrio” só pode ser imaginado e obtido, pelo sociólogo, como recurso heurístico e interpretativo (sob a suposição de que, em dadas condições, podem-se observar melhor e, por conseguinte, interpretar melhor os dinamismos de uma sociedade determinada, tomando-a como se o estado real de funcionamento pudesse ser fixado e retido como um estado de equilíbrio aproximado). Doutro lado, o que alguns descrevem como o “estado de equilíbrio perfeito” somente se pode imaginar e construir, sociologicamente, como recurso puramente heurístico e interpretativo, por via exclusivamente abstrata e teórica. Na verdade, o estado normal de qualquer sociedade – o único modo pelo qual as sociedades se dão à observação e à interpretação dos sociólogos – é um estado concreto em que ela se revela em funcionamento e, portanto, sob alguma combinação de tensões estáticas e de mudanças sociais. Por sua vez, os padrões e os ritmos de mudança variam de um tipo de civilização para outro (o que quer dizer: variam de um tipo de sociedade para outro). Os limites dentro dos quais funcionamento, mudança social estática ou dinâmica e equilíbrio relativo instável podem conjugar-se e confundir-se só são determináveis concretamente, em termos de condições objetivas (inerentes ao tipo de sociedade que se considere) e de condições técnicas (posição a partir da qual o sujeito-investigador irá descrever e interpretar os aspectos “estáticos” e “dinâmicos” de tal tipo de sociedade).
Haveria pouco interesse teórico em investigar-se a mudança social na sociedade de classes brasileiras com o objetivo de esclarecer os aspectos estruturais e dinâmicos do próprio regime de classes. Esses aspectos devem ser naturalmente esclarecidos pela investigação sociológica do regime de classes em sociedades nacionais que combinem certo grau de autonomia do desenvolvimento interno com um mínimo de projeção hegemônica para fora (o que equivale a dizer: com algum controle estratégico direto e crescente das estruturas internacionais de poder, nascidas das relações de sociedades nacionais, seminacionais e neocoloniais ou coloniais entre si). Os sociólogos da chamada “periferia” do mundo capitalista desenvolvido devem dedicar-se, através da análise monográfica e da investigação comparada, ao estudo do regime de classes: 1o) ou sob condições tipicamente neocoloniais (nas quais apenas emerge um mercado capitalista especificamente moderno e o regime de classes aparece, assim, como uma realidade histórica incipiente); 2o) ou sob condições tipicamente de dependência econômica, sociocultural e política (nas quais a dominação externa é mediatizada e em que a revolução burguesa, como uma dimensão histórica interna, não se acelera por via autônoma, mas graças a esquemas de articulação da “iniciativa privada nacional” com o “intervencionismo estatal”, como o “capital estrangeiro” ou com ambos). A primeira situação histórico-social existiu no Brasil na época da emancipação nacional e da eclosão interna do capitalismo. A segunda já aparece claramente configurada nas últimas quatro décadas do século XIX, exprimindo e servindo de suporte ao ciclo de deslanche da revolução burguesa; mas é sob a aceleração do crescimento econômico, portanto sob a “integração do mercado interno” e o industrialismo, que ela iria mostrar o que significa dependência sob o capitalismo monopolista e o imperialismo total. Se conhecimento sociológico da formação do regime de classes exige que se estude atentamente a primeira situação, é na segunda e em seus desdobramentos históricos que se pode descobrir uma explicação sociológica para o presente e para o futuro, ou seja, para o que o regime de classes reserva à periferia do mundo capitalista dependente e subdesenvolvido.
Ao adotar um ótica sociológica semelhante, o sujeito-investigador deixa de operar com a “ordem social competitiva” como se ela fosse o equivalente de um modelo físico-químico, biológico ou matemático, válido da mesma maneira para qualquer subtipo da sociedade de classes. Ao estudar o regime de classes em sociedades nacionais dotadas, ao mesmo tempo, de desenvolvimento capitalista autônomo e de posição hegemônica nas relações capitalistas internacionais, os cientistas sociais puderam operar, tanto descritiva quanto interpretativamente, com uma homogeneização máxima dos fatores propriamente estruturais e dinâmicos da diferenciação social; puderam concentrar a observação, a análise e a interpretação em casos extremos, considerados como “sistema” de uma perspectiva nacional, como se a economia, a sociedade e a cultura, sob o capitalismo, se determinassem apenas a partir de um núcleo interno em expansão; supuseram que os fatores causais e funcionais da transformação capitalista, tanto ao nível histórico quanto ao nível estrutural, atuam a partir de dentro (isto é, a partir do núcleo fundamental da relação capitalista e do conflito das classes sociais), e variam, sempre, de um ponto de menor complexidade para outro de maior complexidade quanto ao grau de diferenciação das relações de classe. Tal ótica sociológica era adequada de um duplo ponto de vista: a) objetivamente, dadas as condições de manifestação e de expansão do regime de classes nos países do “centro” do mundo capitalista; b) subjetivamente, dadas as hipóteses que fundamentavam ao próprio estudo sociológico do regime de classes. No que diz respeito à periferia do mundo capitalista, no entanto, impõe-se que se ponha em prática uma verdadeira rotação ótica do estudo sociológico do regime de classes. Isso não invalida, como muitos supõem, conceitos, métodos e teorias acumulados previamente, pois o regime de classes é o mesmo. Essa herança deve ser aproveitada criticamente e enriquecida. O que varia é o modo pelo qual o regime de classes “nasce” e se “desenvolve”, com influências dinâmicas externas que afetam tanto a história quanto as estruturas das sociedades de classes dependentes e subdesenvolvidas. A diferença entre uma e outra abordagem poderia ser enfatizada da seguinte maneira: em um caso, o sujeito-investigador estuda sociologicamente variantes do protótipo hegemônico da sociedade de classes; no outro, o sujeito-investigador estuda sociologicamente variantes do protótipo heteronômico (ou dependente) da sociedade de classes. O regime de classes “transborda” de um para outro, graças às estruturas de poder criadas no plano internacional pelo capitalismo, porém o primeiro “faz a história”, enquanto o segundo “a sofre” (é claro, mantidas as condições de preservação e crescimento do capitalismo). Portanto, para não viciar sua capacidade de observação, de análise e de interpretação, o sujeito investigador precisa, para investigar unidades que caem no segundo caso, ajustar-se criticamente às condições específicas seja do seu objeto de estudo, seja de sua investigação.
Isso implica romper com o resíduo naturalista implícito na ideia de que o regime de classes surge da mesma maneira, funciona do mesmo modo e produz os mesmos resultados onde quer que ele apareça. Para os fins de nossa discussão, isso quer dizer, especialmente, que o sociólogo deixará de considerar o desenvolvimento capitalista como se ele próprio fosse um cientista de laboratório ou um matemático. Ao estudar o regime de classes em sociedades que se defrontam com o desenvolvimento capitalista induzido e controlado de fora, além disso sujeitas ao impacto negativo das debilidades resultantes de suas posições heteronômicas, os cientistas sociais têm de operar, tanto descritiva quanto interpretativamente, com uma heterogeneização máxima dos fatores propriamente estruturais e dinâmicos da diferenciação social. Eles precisam adaptar seus ângulos de observação, de análise e de interpretação à natureza e à variedade das forças que intervêm, concretamente, na configuração e nos dinamismos do regime de classes das nações capitalistas heteronômicas: umas, procedentes das sociedades hegemônicas externas; outras, provenientes de tendências dominantes na evolução das estruturas internacionais de poder, criadas pela interação e acomodação, ao nível mundial, das impulsões imperialistas das nações capitalistas hegemônicas; e outras, por fim, que nascem “a partir de dentro”, das próprias sociedades de classes dependentes e subdesenvolvidas (às vezes “induzidas a partir de fora” mas, com frequência, parte da evolução interna do capitalismo) e que se voltam na direção do “desenvolvimento capitalista para dentro”. Ou seja, os cientistas sociais perdem parte de seu arbítrio na abstração do caso nacional do amplo conjunto de forças, que operam simultaneamente e com potencialidades sociodinâmicas ao mesmo tempo tão variadas e contraditórias. E se têm em vista uma descrição razoavelmente balanceada e uma interpretação rigorosa dos fatos, o caso nacional só pode ser entendido e explicado se não for considerado isoladamente: cumpre reter todas as forças que são relevantes em termos estruturais e dinâmicos, nos três níveis mencionados, pois o regime de classes, em tal situação histórica, exprime a combinação dessas três ordens de influências, tanto nas transições que são tidas como “graduais”, como nas que possuem “teor revolucionário”.
A principal contribuição do estudo sociológico do regime de classes, em tais condições, é empírica e teórica, embora muitas consequências práticas possam ser derivadas desse conhecimento. Trata-se do regime de classes que se desenvolve em conexão com o capitalismo dependente. A dominação burguesa nele apresenta dois polos; um interno, representado por classes dominantes que se beneficiam da extrema concentração da riqueza, do prestígio social e do poder, bem como do estilo político que ela comporta, no qual exterioridades “patrióticas” e “democráticas” ocultam o mais completo particularismo e uma autocracia sem limites; outro externo, representado pelos setores das nações capitalistas hegemônicas que intervêm organizada, direta e continuamente na conquista ou preservação de fronteiras externas, bem como pela forma de articulação atingida, sob o capitalismo monopolista, entre os governos dessas nações e a chamada “comunidade internacional de negócios”. O grande erro dos cientistas sociais dos países capitalistas dependentes e subdesenvolvidos consistiu em considerar a dominação burguesa somente sob o símile fornecido pelos países capitalistas hegemônicos. Esqueceram que o imperialismo, visto a partir do padrão de dominação burguesa existente em seus países, configura um polo societário específico (mesmo em termos ecológicos, institucionais e humanos, pois as firmas e capitais estrangeiros se deslocam para o interior dos países dependentes, e operam dentro deles com pessoal, tecnologia e política próprios). Ou, em outras palavras, ignoraram que a dominação burguesa nunca poderá ser descrita e interpretada corretamente, no caso de seus países, sem que suas conexões causais e funcionais com as sociedades de classes hegemônicas sejam agregadas às conexões causais e funcionais puramente internas. Além disso, ao contrário do que muitos cientistas sociais supuseram (e continuam a supor), seus países não estão diante de uma ordem feudal ameaçada e em desagregação. Nestes países (salvo algumas exceções), o que existe é uma ordem colonial em processo de crise e de liquidação (nos casos excepcionais, essa ordem colonial se superpõe à ordem feudal preexistente). O equivalente do processo histórico de desagregação do feudalismo é, pois, a descolonização – e esse fato é de reconhecimento difícil, especialmente na América Latina, onde prevalece a presunção errônea de que a descolonização constitui um episódio do século XIX e das lutas pelas emancipação nacional (quando, na verdade, o capitalismo comercial neocolonial e, em seguida, o capitalismo dependente condicionaram, de várias maneiras, a persistência de estruturas econômicas, sociais e políticas coloniais ou neocoloniais e sua coexistência com estruturas econômicas, sociais e políticas criadas pela eclosão de um mercado capitalista moderno e, em seguida, de um sistema de produção capitalista localizado no “setor novo”, predominantemente urbano-comercial e, mais tarde, urbano-industrial). Na medida em que a “burguesia nacional” luta pelo desenvolvimento capitalista em termos de uma política de associação dependente, ela se articula, ativa e solidariamente, aos variados interesses externos, mais ou menos empenhados na redução dos ritmos e dos limites da descolonização. Por aí se vê, portanto, que estamos diante de um subtipo de regime de classe, o qual só pode ser descrito e explicado através da investigação sociológica da sociedade de classes que se expandiu sob a égide do capitalismo dependente.
A segunda contribuição importante do estudo sociológico desse regime de classes diz respeito ao esclarecimento do tipo de revolução burguesa a que ele dá origem (ou que ele requer). As classes dominantes internas usam o Estado como um bastião de autodefesa e de ataque, impondo assim seus privilégios de classe como “interesses da nação como um todo”, e isso tanto de cima para baixo, como de dentro para fora. Elas precisam de um “excedente de poder” (não só econômico, mas especificamente político) para fazer face e, se possível, neutralizar: 1o) as pressões internas dos setores marginalizados e das classes assalariadas; 2o) as pressões externas vinculadas aos interesses das nações capitalistas hegemônicas e à atuação da “comunidade internacional de negócios”; 3o) as pressões de um Estado intervencionista, fortemente burocratizado e tecnocratizado, por isso potencialmente perigoso, especialmente se as relações de classes fomentarem deslocamentos políticos no controle societário da maquinaria estatal, transformações nacional-populistas ou revoluções socialistas. Em vista disso, o Estado não é, para as classes dominantes e com o controle do poder político, um mero comitê dos interesses privados da burguesia. Ele se torna uma terrível arma de opressão e de repressão, que deve servir a interesses particularistas (internos e externos, simultaneamente), segundo uma complexa estratégia de preservação e ampliação de privilégios econômicos, socioculturais e políticos de origem remota (colonial ou neocolonial) ou recente. Na lógica do uso do Estado como instrumento de ditadura de classe, seja ela dissimulada (como ocorria sob o regime imperial e sob o presidencialismo), seja ela aberta (como ocorreu sob o Estado Novo ou no presente), o inimigo principal da burguesia vêm a ser os setores despossuídos, na maioria classificados negativamente em relação ao sistema de classes, embora uma parte deles se classifiquem positivamente, graças à proletarização. Todavia, nessa mesma lógica o “parceiro externo” não passa de um “perigoso companheiro de rota”. É a relação política com esse aliado, aliás, que caracteriza a existência do capitalismo dependente e define os rumos da revolução burguesa que ele torna possível. Sem um Estado suficientemente forte e dócil, seria difícil manter a associação com “os interesses externos” em condições de autodefesa dos “interesses privados nacionais”; esse Estado é que engendra o espaço político de que necessita a “burguesia nacional” para ter uma base de barganha com o exterior e, ao mesmo tempo, poder usar a articulação com o “capital externo” como fonte de aceleração do crescimento econômico ou de transição de uma fase para outra do capitalismo. As classes dominantes seriam uma mera “burguesia compradora”, destituída de meios políticos para evitar a regressão a uma condição colonial ou neocolonial, se não depusessem dessa faculdade para criar e utilizar o seu próprio espaço político nas relações com o seu polo externo. Analisando-se as conexões apontadas, constata-se que o Estado surge, assim como o instrumento por excelência da dominação burguesa, o que explica as limitações de sua eficácia: seus alvos são egoísticos e particularistas; e são raras as coincidências que convertem “o que interessa ao topo” em algo relevante para toda a nação. Em tais circunstâncias, a dominação burguesa não é útil nem para levar a cabo a revolução nacional (por causa de suas conexões estruturais e dinâmicas com as burguesias das nações capitalistas hegemônicas e com o capitalismo internacional), nem para promover a democratização da riqueza, do prestígio social e do poder (por causa da coexistência de vários modos de produção pré ou subcapitalistas com o modo de produção capitalista e do temor de que uma liberalização da compressão política pudesse conduzir à “anarquia” e à “revolução popular”). Em consequência, temos aí uma revolução burguesa de tipo especial. Ela tem sido encarada e definida como uma revolução burguesa “frustrada” ou “abortada”. Contudo, esse raciocínio interpretativo só se justifica quando ela é pensada em confronto com o modelo nacional-democrático de revolução burguesa (a comparação implícita ou explícita seria com a França, a Inglaterra ou os Estados Unidos). Nos quadros em que ela ocorre, porém, a sua eficácia para o “poder burguês” e o desenvolvimento depende da contenção tanto da revolução nacional quanto da revolução democrática. Nesse sentido, ela não é nem uma revolução frustrada nem uma revolução abortada, pois nem a “democracia burguesa” nem o “nacionalismo revolucionário” burguês se inscrevem entre os seus objetivos reais. O que ela colima, a criação de condições e meios para o aparecimento e a sobrevivência do capitalismo dependente, tem sido atingido, às vezes suscitando até a ideia do “milagre econômico” (já aplicada ao México e ao Brasil quanto à América Latina). Sob outros aspectos, ela cai na categoria das transformações capitalistas conseguidas por vias autocráticas.10
Por fim, o estudo do regime de classes, em tais condições histórico-sociais, contém outra contribuição empírica e teórica deveras importante. Ele esclarece que muitas transformações ocorridas nas sociedades de classes não são um produto automático da ordem social competitiva. Ao contrário do que se acreditava, através de utopias “democrático-burguesas” ou de hipóteses específicas,11 por si mesma, a ordem social competitiva não cria dinamismos suficientemente fortes para destruir o “antigo regime” ou as estruturas econômicas, sociais e políticas “arcaicas”, dele remanescentes, e para construir as estruturas alternativas, autenticamente nacionais e democráticas, típicas de uma sociedade de classes. Sem contar com um sistema de produção capitalista autônomo e universalizado tanto em bases nacionais quanto de classes, a ordem social competitiva só é eficiente e aberta para os “mais iguais” (os quais oscilam, nos povos de capitalismo dependente, entre um e cinco por cento, raramente atingindo um quarto da população total). Esse pequeno setor realmente constitui toda a sociedade competitiva da nação. Não obstante, seria incorreto dizer-se que a ordem social competitiva não exista, em tais casos, ou que ela opere como um “sistema fechado”. As influências sociodinâmicas que ela desencadeia são consideráveis, comandando todo o fluxo da reorganização da economia, da sociedade e da cultura. Além disso, ela se abre “para baixo”: há forte mobilidade social vertical, ascendente e descendente, com alguma “circulação das elites” e intensa absorção dos elementos em ascensão social (nacionais ou estrangeiros). Contudo, tudo se passa como um processo típico de socialização pelo tope, o qual promove uma constante redefinição das lealdades dos grupos em mobilidade ascendente e uma permanente acefalização das classes “baixas” e destituídas. O que explica por que o crescimento quantitativo da ordem social competitiva não acarreta maiores alterações nos padrões de relações de classe ou de consciência de classes: o próprio crescimento da ordem social competitiva tende a favorecer unilateralmente os grupos e classes privilegiados; e, de outro lado, contribui para fortalecer e generalizar expectativas autocrático-conservadoras de utilização e controle do poder. Isso que dizer que, nas condições apontadas, a ordem social competitiva se esvazia como fator histórico-social, tornando-se rígida ou inerte principalmente para os interesses de classes que não coincidem com os dos “donos do poder” (os da imensa maioria silenciosa e esquecida). Ela não se coloca, através de seus dinamismos espontâneos, na fonte das correções de tendências antidemocráticas e antinacionais, porque ela própria funciona como uma fonte de perpetuação indefinida e de fortalecimento de tais tendências. Correções dessa natureza só poderiam surgir se a ordem social competitiva fosse libertada da tutela de uma burguesia autocrática e ultraconservadora. Ou seja, através de pressões anticonformistas de grupos elitistas (isto é, como uma “revolução dentro da ordem”) ou através da rebelião das massas isto é, como uma “revolução contra a ordem”), alternativas que são especificamente reprimidas e postas fora da lei pela burguesia, com base em um ideal de “nação” e de “democracia” que se conforma ao modelo existente da ordem social competitiva.
Semelhantes contribuições empíricas e teóricas possuem alguma significação prática? É claro que a utilidade prática das descobertas dos sociólogos depende da existência de grupos e de movimentos dispostos a utilizar os resultados da investigação sociológica na esfera da ação. Em países destituídos de forte participação política popular e de “tradições liberais” muito débeis, só existem limitados incentivos para que isso possa ocorrer. Ainda assim, os três pontos assinalados contêm evidente importância para os vários círculos sociais mais ou menos inconformistas da sociedade brasileira. Não tanto em virtude do “desmascaramento” da revolução burguesa, o qual já se patenteara, de múltiplas maneiras, no terreno da ação (já na década de 1910 as greves operárias foram tratadas como “questão de polícia”, como essa ótica foi reimplantada de forma ampliada, em 1964, deve-se supor que ela define o horizonte político das classes dominantes). A nível prático, só acumulamos experiências que pressupõem as expectativas autocráticas de uma “tirania esclarecida”, o que fez com que o desmascaramento da revolução burguesa entrasse para a rotina. Ninguém, hoje, se ilude com os propósitos de “autonomia nacional”, de “nacionalismo econômico” ou de “democracia liberal” da burguesia. Esses conceitos sofreram tal desgaste, que perderam qualquer sentido prático (a própria burguesia gravitou para outros conceitos, como o de “segurança nacional”, “milagre econômico” e “democracia forte”). Doutro lado, a “revolução institucional” pôs fim ao próprio mascaramento ideológico, deixando a nu que certas compulsões nacionalistas e democráticas são parte do folclore político, mero recurso de ritualização do comportamento de classe. De fato, a dominação burguesa se apresenta como ela é: rígida, monolítica e autocrática, anulando ou suprimindo todo o espaço político que não sirva aos interesses econômicos, sociais e políticos das classes dominantes. Tudo isso é essencial do ponto de vista prático: os movimentos de oposição ou de inconformismo militante precisam criar, por seus próprios meios, o seu espaço político. A ordem social competitiva não lhes dá caminho; e a repressão conservadora desaba sobre eles para destruí-los, quaisquer que sejam suas vinculações reais como o nacionalismo, com a democracia ou mesmo com a intensificação da revolução burguesa. Dada essa situação global – e o fato de que a luta contra a repressão conservadora tem de ser, ao mesmo tempo, uma luta contra a dominação externa – é claro o calibre das exigências práticas, que impõem ao movimento democrático-nacionalista e ao movimento socialista uma ruptura total com a ordem existente. Nessa conjuntura, a contribuição prática do conhecimento sociológico é fundamental, porque ele nos ensina a não termos ilusões. Ou servimos ao Deus do capitalismo dependente; ou nos colocamos contra ele, pelas formas e meios que conseguirmos articular.
Na verdade, onde a revolução burguesa se insere em um contexto histórico-social de apropriação dual do excedente econômico,12 de modo a canalizar-se institucionalmente grande parte da expropriação capitalista para fora, a base material para a formação e a expansão da ordem social competitiva torna-se muito fraca e vacilante. Não se poderia esperar, em tais condições, que a ordem social competitiva, em suas sucessivas transformações históricas, gerasse forças econômicas, sociais e políticas capazes de acelerar e universalizar a descolonização e, por conseguinte, de subverter a orientação dependente e oscilante da revolução burguesa. Nessa situação, a mudança social é comprimida, convertendo-se, extensa e profundamente, em um processo de “modernização dependente”,13 produzido e regulado graças à absorção de dinamismos socioeconômicos e culturais das nações capitalistas hegemônicas. É claro que este padrão básico de modernização debilita o controle interno da mudança social e do desenvolvimento econômico, de modo permanente (quando declina a hegemonia de uma nação central, surgem outras que ocupam a mesma posição, como sucedeu com as transições neocoloniais, para o capitalismo competitivo ou para o capitalismo monopolista), e impede que se instaure o padrão alternativo de “modernização autônoma”, ainda dentro do capitalismo.
O que importa aqui, do ponto de vista prático, são as consequências sociodinâmicas e políticas de tal processo secular. Os ritmos históricos e estruturais, a continuidade ou descontinuidade e o grau de aceleração da revolução burguesa passam a depender largamente dos dinamismos imperialistas das nações capitalistas hegemônicas e do mercado mundial. A falta de correspondência entre poder econômico e poder político faz com que a burguesia nacional, mesmo que desejasse o contrário, seja impotente para realizar, por conta própria, os seus papéis históricos e tentar, assim, assumir o controle completo, a partir de dentro (embora com recursos materiais e inovações importados), das grandes transformações econômicas, socioculturais e políticas. Isso sugere que a revolução burguesa, à medida que se transita do capitalismo comercial para o capitalismo industrial e financeiro, engendra problemas crescentemente mais complexos e insolúveis na esfera da dependência econômica, cultural e política, aparecendo como inevitável a transferência de decisões vitais para os centros estratégicos das nações capitalistas hegemônicas. Em consequência, a autonomia nacional e a democracia deixam de ser historicamente concretizáveis, ao nível em que elas se objetivam na consciência conservadora, pela via da revolução burguesa. Só as classes sociais que se ponham a esse tipo de revolução (ou ao caráter que ela assume sob o capitalismo dependente) poderiam romper o impasse. A experiência demonstrou que ainda não chegamos a esse ponto de ruptura e que, de outro lado, o inconformismo das elites (de classes médias e altas) não é bastante sólido para criar uma alternativa histórica dentro e a partir da ordem social competitiva. O que significa que só as classes sociais destituídas e o proletariado poderão forjar essa alternativa, mas fora e contra a ordem existente, o que exige que suplantem a dominação burguesa interna e externa, bem como se mostrem aptos para desencadear uma revolução socialista.
Quais são as características da mudança social no Brasil?
Deixando de lado várias questões fundamentais – algumas já debatidas em outros trabalhos de minha autoria, que cuidam do processo de transplantação cultural propriamente dito e do esforço criativo inerente à preservação de uma herança sociocultural que transcendia, de modo inevitável, às exigências das situações históricas vividas – concentrarei a atenção sobre certos aspectos sociodinâmicos do fluxo da mudança social e de seu controle societário coercitivo. Impõe-se deixar de lado o período colonial. Contudo, não se deve esquecer que o padrão brasileiro de gente de prol se constitui nesse período, em que se agravam, por causa da escravidão e da própria expropriação colonial, as distinções sociais preexistentes na sociedade portuguesa. Há evidente ligação entre esse padrão, que ainda não foi neutralizado pela ordem social competitiva, e a mentalidade mandonista, exclusivista e particularista das elites das classes dominantes. Por isso, as relações de classe sofrem interferências de padrões de tratamento que são antes estamentais e que reproduzem o passado no presente, a tal ponto que o horizonte cultural inerente à consciência conservadora de nossos dias, em seu mandonismo, exclusivismo e particularismo agreste, lembram mais a simetria “colonizador” versus “colonizado” que a “empresário capitalista” versus “assalariado”. Isso evidencia o quanto a ordem civil ainda não atingiu mesmo grupos incorporados ao mercado capitalista de trabalho e ao sistema de relações de classes, demostrando que a distância social entre as classes nem sempre é uma mera questão quantitativa. Aquele padrão compatibiliza a coexistência da tolerância e até da cordialidade com um profundo desdém elitista por quem não possua a mesma condição social. O que faz com que aquilo que parece “democrático”, na superfície, seja de fato “autoritário” e “autocrático”, em sua essência. Esse patamar psicossocial das relações humanas é a nossa herança mais duradoura (e, ao mesmo tempo, mais negativa) do passado colonial e do mundo escravista. Gostaria que ele fosse mantido na perspectiva crítica do leitor, qualquer que seja sua dificuldade para imaginar como as coisas seriam se o Brasil não tivesse surgido como uma sociedade colonial e escravocrata.
O principal foco dos dinamismos sociodinâmicos da mudança social é a organização da sociedade. No caso brasileiro, os modelos de organização social sempre contiveram potencialidades sociodinâmicas (de diferenciação estrutural e funcional ou de saturação histórica ) que não lograram se concretizar de modo mais ou menos rápido e intenso.14 O primeiro modelo, que serviu de base para a organização da sociedade colonial, envolvia uma superposição do padrão português do regime estamental (em fase de transição incipiente para o regime de classes) à escravidão de estoques raciais indígenas, africanos e mestiços. Essa superposição representou uma técnica adaptativa imposta pela exploração colonial e deu origem a um sistema estratificatório misto, cuja duração foi condicionada pela persistência do regime servil e do sistema de produção escravista. Ele possibilitava a classificação dos elementos da raça dominante em termos estamentais; a classificação dos elementos das raças escravizadas (legal ou ilegalmente) em termos de castas; e uma ampla gravitação dos elementos mestiços libertos ou livres em torno dessas duas categorias. Bastam dois exemplos para se ter uma ideia aproximada de como foi lenta a saturação estrutural-funcional e histórica desse sistema de estratificação. No que diz respeito ao senhor, não é no período colonial, mas graças à emancipação nacional que ocorre a integração vertical dos estamentos senhoriais. Essa transformação operou-se através da integração desses estamentos em uma ordem civil, que detinha o monopólio do poder político, o qual conferiu aos senhores a probabilidade de controlar a máquina do Estado sem qualquer mediação. Enquanto durou o sistema colonial, a Coroa impediu essa evolução, que deslocaria o poder político de suas mãos para os estamentos senhoriais. No que diz respeito ao escravo, somente depois da supressão do tráfico (portanto, depois que o mundo de produção escravista entra em crise estrutural) e para fazer face às pressões da incorporação de novas áreas à economia de plantação, é que a escravidão como “instituição econômica” iria sofrer uma depuração funcional. O domus foi separado da plantação e, em consequência, muitos fatores de desperdício ou subaproveitamento do trabalho escravo foram reduzidos ou eliminados, com o objetivo de aumentar seja a sua intensidade, seja a sua produtividade.15 O segundo modelo, que se originou, simultaneamente, da desagregação do regime estamental e de castas e do desenvolvimento interno do capitalismo, foi amplamente solapado pela coexistência e concorrência do trabalho servil, do trabalho semilivre e do trabalho livre, provocadas pela coetaneidade de várias idades históricas distintas e pela articulação, no mesmo sistema econômico, de modos de produção pré-capitalistas e capitalistas. Isso, mais que o seu aparecimento relativamente recente, explica as vicissitudes do regime de classses no Brasil e as dificuldades, tanto estruturais quanto históricas, que vêm embaraçando a eficácia da competição e do conflito na coordenação das relações de classe. Basta um exemplo para de ter uma ideia aproximada do que implica esta afirmação. As greves operárias, enfrentadas como “questão de polícia” na década de dez, foram reiteradamente tratadas de modo repressivo posteriormente e banidas da ordem legal depois de 1964.16 Uma sociedade de classes que submete o sindicalismo a uma regulamentação corporativista e tolhe as pressões de baixo para cima não está apenas na “infância”. É uma sociedade de classes que só funciona como tal para os “mais iguais”, ou seja, para as classes altas e médias.
O outro foco dos dinamismos sociodinâmicos da mudança social é a difusão cultural. No caso brasileiro, cumpre reconhecer, desde logo, esse foco tem uma importância básica, pois a incorporação aos movimentos de “expansão do mundo ocidental moderno” tem operado como fator de precipitação tanto de transições históricas quanto de diferenciações estruturais que explicam transformações capitais da sociedade brasileira (quer sob o regime estamental e de castas, quer sob o regime de classes). Em regra, o desenvolvimento interno da economia, da sociedade e da cultura cria, previamente, um novo patamar, o qual condiciona e torna possível a partir de dentro, uma alteração súbita no enlace com os dinamismos econômicos e culturais com as nações capitalistas hegemônicas e com o mercado mundial. Precipita-se, desse modo, uma fase mais ou menos intensa de modernização, orientada e regulada a partir de fora. Em seguida, a transformação completa-se, através de vários reajustamentos internos simultâneos ou sucessivos. Quando a transição é substancial, estrutural e historicamente (como ocorreu na época da emancipação nacional, com a passagem do sistema colonial para o neocolonial; do último quartel do século XIX em diante, com a emergência e a expansão do capitalismo competitivo; e, depois da Segunda Guerra Mundial, com a emergência e expansão do capitalismo monopolista), ocorre uma substituição do padrão de desenvolvimento econômico, sociocultural e político; alteram-se também os ritmos do desenvolvimento econômico, sociocultural e político, que atingem maior velocidade inicial, para decair gradualmente e, com o tempo, retomar uma velocidade média compatível com a preservação das mudanças ocorridas (sem, no entanto, eliminar hiatos e descontinuidades, nascidos da heterogeneidade dos modos de produção articulados no mesmo sistema econômico e da coetaneidade de idades históricas diversas); e, por fim, surge o encadeamento das transformações ocorridas com a diferenciação da economia, da sociedade e da cultura, estabelecendo um patamar novo, que permite ou uma melhor saturação estrutural-funcional e histórica dos modelos de organização social vigentes, ou outro “salto” estrutural-funcional e histórico. Esse esquema, ultrassimplificado, situa bem a complexidade da vinculação dos dinamismos sociodinâmicos internos e externos. A relação não é uma relação de causa e efeito simples. Temos, antes, um modelo dialético de causação, pelo qual podemos localizar múltiplas causas e efeitos em influência recíproca e em tempos sucessivos ou simultâneos, todos regulados, nas relações de concomitância e de sucessão, pelos vários tipos de contradições que jogam o desenvolvimento interno contra a modernização e vice-versa. Procurei reter e pôr em primeiro plano as regularidades que aparecem, aos níveis estrutural-funcional e histórico, como as tendências características do complexo movimento social resultante. Esse esquema comporta duas afirmações complementares: 1º) em si e por si mesmas, as “transformações internas” não seriam suficientes para promover a diferenciação estrutural-funcional e as transições históricas conhecidas (a desagregação do sistema colonial, a plenitude do sistema de castas e de estamentos, a desagregação desse sistema e a formação do sistema de classes); 2º) porém, em si e por si mesmos, os fluxos da “modernização dependente” não encontrariam base econômica, sociocultural e política para transcorrerem e, em particular, para atingirem a eficácia que lograram (seja na dinamização da ordem escravocrata e senhorial ou da ordem competitiva, seja na dinamização do desenvolvimento capitalista interno, nos desdobramentos que vão de uma economia neocolonial dotada de um mercado capitalista moderno ao capitalismo competitivo e ao capitalismo monopolista). Essas duas conclusões também comportam um corolário: a articulação dos dinamismos econômicos, sociais e culturais internos e externos, apesar de tudo, não é suficiente para produzir a emergência e a consolidação de uma padrão de desenvolvimento que se pudesse equiparar ao padrão de desenvolvimento autossustentado das nações capitalistas hegemônicas. Isso faz com que a incorporação e a modernização surjam à observação em sua verdadeira natureza, como uma expansão de fronteiras econômicas, socioculturais e políticas externas (de fora para dentro: das nações capitalistas hegemônicas na direção da sociedade brasileira), como uma espécie de “conquista”, à qual os dinamismos internos não têm o poder de se oporem e de neutralizar.
O fluxo descrito continha, de fato, dois movimentos de mudança social que se superpunham e, a partir de certo momento, se confundiam e se fundiam. Ambos os movimentos operavam “espontaneamente”: um, através de processos de diferenciação da ordem social escravocrata e senhorial (ou, mais tarde, da ordem social competitiva) e da saturação histórica progressiva de potencialidades dinâmicas de status e papéis sociais, de relações sociais ou de funções sociais das instituições-chave; outro, através da ampla difusão e novas técnicas, valores e instituições sociais, implantados no “setor novo” graças à eclosão de um mercado capitalista moderno, à reorganização político-administrativa do Estado e à crescente expansão urbano-comercial (ou, mais tarde, urbano-industrial). No conjunto, os dois movimentos é que exprimiam toda a transformação da economia, da sociedade e da cultura. Todavia, eles não operavam isoladamente. Tanto a partir de dentro quanto a partir de fora, havia outros movimentos de sentido oposto, que trabalhavam pelo equilíbrio estático da economia, da sociedade e da cultura. O modo de produção escravista, a estrutura estamental e de casta das relações sociais, e a dominação patrimonialista concorriam para preservar, aos níveis estrutural e histórico, as estruturas econômicas, sociais e políticas herdadas do período colonial, mantendo-as quase intacta. Doutro lado, a influência externa, autenticamente revolucionária aos níveis estrutural e histórico na fase de desagregação do antigo sistema colonial, pois incorporava a economia interna diretamente ao mercado mundial e fixava os núcleos urbanos que iriam servir de fulcro ao crescimento de um mercado capitalista moderno, também pressupunha um feedback negativo. O comércio externo constituía o verdadeiro ponto de apoio seja para a manutenção seja para a ampliação de um esquema de exportação e de importação que iria servir de eixo para a preservação, o desdobramento e a revitalização de estruturas econômicas, sociais e políticas de origem colonial.
É preciso cotejar esses quatro movimentos de estabilidade e de mudanças sociais, convergentes em certos aspectos e divergentes em outros, para se avaliar corretamente o resíduo realmente inovador e construtivo dos influxos internos e externos de transformação econômica, sociocultural e política. Os movimentos que promoviam a preservação e o fortalecimento de relações, instituições e estruturas coloniais não eram, pura e simplesmente, antagônicos à modernização, ao crescimento do “setor novo”, e à expansão interna do capitalismo comercial. Bem analisados, eles constituíam antes uma precondição para que tudo isso fosse possível, dadas as vinculações existentes entre a grande lavoura, a continuidade da incorporação direta ao mercado mundial e o desenvolvimento capitalista no setor novo, urbano-comercial (e, mais tarde, urbano industrial). O antagonismo à mudança, portanto, tem de ser interpretado com muito cuidado, porque ele faz parte da autodefesa do setor arcaico, que funcionava como fonte de alimentação indireta das transformações em curso e se beneficiava delas no nível menos visível da reorganização e concentração do poder. Doutro lado, os interesses investidos na modernização ou na expansão interna de um mercado capitalista moderno e do setor urbano-comercial, estratégico para tais fins, não lutavam, pelo controle do espaço ecológico, econômico, sociocultural e político incorporado às estruturas econômicas, socioculturais e políticas de origem colonial. Na verdade, eles se superpunham e se agregavam, aos níveis estrutural e histórico, aos interesses investidos neste setor de origem colonial, produzindo-se uma articulação dinâmica entre ambos. Por isso, não só as relações de produção coloniais podiam subsistir: elas se convertiam, de imediato, em fonte do excedente econômico que iria financiar tanto a incorporação direta ao mercado mundial, com seus desdobramentos econômicos e culturais, quanto a eclosão de um mercado capitalista moderno e a subsequente revolução urbano-comercial. Por aí se verifica quão complexo era o quadro global. E, o que tem maior importância interpretativa, de que natureza era o fluxo de mudança social descrito. Ele não surgia insopitavelmente, como uma torrente volumosa e impetuosa, que abria seu caminho de modo inexorável. Mas uma espécie de afluente, que desaguava em um rio velho, sinuoso e lerdo. À medida que se formassem novos afluentes e, em particular, à medida que os homens drenassem o velho rio e o retificassem, é que a contribuição da massa de água adquirida iria revelar todo o seu potencial. Essa imagem não é meramente retórica. Lembremo-nos de que da vinda da família real, em 1808, da abertura dos portos e da Independência, à Abolição, em 1888, à Proclamação da República e à “revolução liberal”, em 1930, decorrem 122 anos, um processo de longa duração, que atesta claramente como as coisas se passaram.
Esse quadro sugere, desde logo, a resposta à pergunta: “a quem beneficia a mudança social?”. Embora transformações tão profundas quanto as que ocorreram graças à desagregação do sistema colonial e à expansão interna do capitalismo comercial afetassem o presente e o futuro de toda a sociedade brasileira, de fato os proventos imediatos dessas transformações convergiram para pequenos grupos de agentes humanos, localizados em posições estratégicas no exterior ou no interior do país. Limitando-nos a estes últimos: os benefícios e os efeitos construtivos a largo prazo da mudança social foram monopolizados pelos estamentos médios e altos, os únicos que se incorporavam à ordem civil com meios e qualificações para impor sua vontade. A questão não é só, portanto, de “nível de vida” ou de “estilo de vida”, como querem crer muitos historiadores e antropólogos. Ela é, também, de “organização da vida”. O fluxo de mudança social trazia em seu bojo novas formas de organização institucional das atividades econômicas, socioculturais e políticas, as quais foram amplamente absorvidas e controladas pelos setores senhoriais ou quase senhoriais que compunham a referida ordem civil (no campo e nas cidades). Os dois núcleos mais importantes de fixação dessas mudanças localizavam-se no Estado emergente e nas firmas comerciais. Como a emancipação nacional constituía uma revolução especificamente política, é em torno dessa área que ocorrem as principais transformações. A saturação histórica dos papéis políticos dos senhores deu uma nova importância à sua participação das atividades políticas, em escala provincial e nacional. As famílias senhoriais têm de enfrentar, assim, maiores investimentos humanos e financeiros nos centros de poder político, precisando deslocar do campo para a cidade, de maneira crescente, sua esfera de atuação burocrática e política crucial. O mesmo processo provoca uma reativação das atividades político-burocráticas dos elementos dos estamentos médios e altos localizados nas cidades, com uma intensificação da solidariedade política estamental acima dos laços de família ou de nobreza (o que constituía um requisito da formação da ordem civil como um sistema de poder “fechado” e do seu funcionamento como um mecanismo de monopolização do poder pelos estamentos altos e médios da “raça dominante”). No outro plano, encontravam-se as novas firmas comerciais, na maioria estrangeiras ou associadas, em torno das quais iria gravitar, inicialmente, o crescimento do mercado moderno e do próprio capitalismo. Malgrado o controle externo direto ou indireto, esse avanço pressupunha o início da desagregação gradual do padrão colonial de mercado (que continuava a existir, a funcionar e a dominar as economias locais), uma nova relação com a economia mundial e as bases necessárias para a organização institucional das atividades econômicas internas segundo padrões especificamente capitalistas. Tal progresso não era de somenos, já que permitia absorver, de imediato, as cotas do excedente econômico que eram abocanhadas pela Coroa e pelas companhias comerciais metropolitanas; e, de outro lado, criava um ponto de partida para o novo funcionamento do esquema exportação-importação, que passou a gravitar também para dentro, fomentando o aparecimento de um polo dinâmico para o crescimento do mercado interno e, com o tempo, do modo de produção capitalista. Aí estavam os germes de uma ordem social competitiva, que abria seus flancos dentro do “antigo regime” em reelaboração e iria se alimentar de sua destruição paulatina.
No que concerne à monopolização dos efeitos construtivos da mudança social pelos estamentos dominantes da ordem social escravocrata e senhorial há pouco a acrescentar. O “cidadão”, na emergente sociedade nacional brasileira, não era apenas um componente da ordem civil: era o “nobre” ou o “burguês” com condição senhorial – gente que desfrutava das garantias civis, do direito de representação e que dispunha de voz nos mecanismos seletivos da “opinião pública”, que comandava a democracia restrita imperial. A mudança social não se fazia para a sociedade brasileira, mas para essa gente, ou seja, para o pequeno universo estamental que continha os “homens válidos” da nação emergente. Esse monopólio não iria desaparecer juntamente com a desagregação da ordem escravocrata e senhorial: a Abolição, a Proclamação da República e a “revolução liberal” de 1930 apenas assinalam que ele entra em crise. A destruição do modo de produção escravista leva, pela primeira vez, a descolonização ao âmago do sistema econômico, revolucionando as bases da ordem social e do sistema de poder. Ela exige que se elimine, gradualmente, a articulação dinâmica entre estruturas socioeconômicas arcaicas e modernas. Todavia, a persistência do esquema de exportação-importação e o fato de que a expansão do mercado interno iria revitalizar a grande lavoura tiveram efeitos especiais. Mantêm-se o trabalho servil disfarçado e várias formas de trabalho semilivre muito tempo depois da universalização do trabalho livre. Portanto, a ordem social competitiva atinge um clímax evolutivo excluindo tanto os brancos pobres quanto os remanescentes do trabalho escravo, os negros e os mulatos que não lograram proletarizar-se ou classificar-se nos estratos sociais médios e altos. O que surge, muito forte, não é o fim do processo que nos preocupa. Mas a pressão de baixo para cima, que visa impor a “presença” e as “necessidades” da nação como um todo na esfera da mudança social, visando acabar com o esmagamento e a sufocação elitista da mudança social. Este salto não se dá mais sob compulsão da modernização (inclusive, quando suas potencialidades de conflito se tornam claras, os interesses externos se compõem com a chamada “consciência conservadora” da oligarquia e com as técnicas repressivas que esta adota). Ele se processa sob a pressão das estruturas nacionais de integração da economia, da sociedade e da cultura. Emerge, assim, uma ideologia reformista que empalma, com moderação, os ideais burgueses de uma revolução nacional-democrática. A relação de autodefesa dos setores que defendiam o monopólio elitista dos efeit os construtivos da mudança social tomou vários rumos, que traduzem a desorientação criada nas classes médias e altas por essa primeira irrupção histórica dramática das contradições que operam dentro da ordem social competitiva. Contudo, a consciência conservadora prevaleceu, porque ela reunia os principais trunfos das estruturas de poder: a “velha” e a “nova” oligarquias coincidiam, em seus propósitos de “desenvolvimento com segurança”, com os setores ascendentes das classes médias e os parceiros estrangeiros. Há mais de um século e meio depois da Independência e há mais de três quartos de século da universalização do trabalho livre e da Proclamação da República, a mudança social ainda não se dá para a sociedade brasileira como um todo, mas para uma minoria privilegiada, a qual pode ser estimada, para efeitos de classificação social efetiva “no sistema”, no máximo em 40%, mas que não passa, na realidade, de 10%, em termos de concentração de renda ou de poder e de renda média compatível com o “padrão de vida decente” das elites.17
Os mesmos estratos sociais que monopolizam os benefícios da mudança social tendem a submetê-la a controles mais ou menos seletivos e coercitivos. Isso ocorreu no Brasil e continua a ocorrer no presente (nem poderia ser de outra maneira). Os controles visavam garantir a transferência de recurso da comunidade nacional para esses estratos, mediante o subterfúgio de alocá-los à solução dos “problemas de mudança” que são estratégicos ou vitais para eles. Desse modo, a nação como um todo financiou ou financia vários desenvolvimentos técnicos, econômicos, culturais e políticos que deviam servir, de modo direto ou indireto, a propósitos ou a interesses privados (internos e externos). Muitas “políticas” foram montadas, no passado remoto ou recente e no presente, para dotar o país de uma infraestrutura econômica, de comunicações, de transportes e de serviços estreitamente moldadas por objetivos privados imediatistas. Nos vários momentos, a questão invariável premente sempre foi a de criar espaço ecológico, econômico, social, cultural e político para a “iniciativa privada” (ou seja, para expandir a rede de negócios e de poder dos estratos sociais dominantes). Essa prática não é peculiar ao Brasil e aos países de capitalismo dependente. Contudo, ela assume nestes países um caráter típico. O passado colonial converte a separação entre “minoria privilegiada” e a “grande massa excluída” numa realidade pungente, que não chegou a existir mesmo nas sociedades de classes mais rígidas da Europa, que foram descritas como se fossem “duas nações”. A minoria privilegiada encara a si própria e a seus interesses como se a nação real começasse e terminasse nela. Por isso, seus interesses particularistas são confundidos com os “interesses da nação” e resolvidos desse modo. Enquanto os interesses da grande massa excluída são simplesmente esquecidos, ignorados ou subestimados. Os assuntos de mudança social entram, assim, na esfera do controle social e da dominação de classe, com uma ótica enviezada, que identifica a nação com os “donos do poder”.
Duas consequências negativas advêm de tal distorção. A primeira diz respeito à unilateralidade com que “as exigências da situação” se elevam à esfera da consciência social, do comportamento social inteligente e da atuação política. Os “problemas” que ganham prioridade são os problemas que afetam os interesses, a segurança ou a rede de poder da minoria privilegiada, insensível aos dramas humanos ou desumanos das massas e pouco sensível às “questões de ordem nacional” que não a ponham em risco visível. A segunda diz respeito à propensão dessa minoria, instalada nos principais centros estratégicos de decisão e de dominação, a graduar ou a adulterar as mudanças assim “filtradas” de acordo com seu código de conveniências. Um Estado “nacional” e “democrático”, por exemplo, pode ser montado para servir aos interesses econômicos e às necessidades de dominação de proprietários de escravos. Ou todo um aparelho policial ou policial-militar, em outros exemplos, pode ser posto a serviço da repressão de greves operárias ou do sufocamento da inquietação popular. Olhando-se tais exemplos pelo reverso da medalha, pode-se constatar que o controle coercitivo da mudança social visa a compatibilizar a ordem social competitiva com privilégios econômicos, sociais e políticos herdados do sistema colonial. É como se, na França, se pretendesse justapor, durante a “grande revolução”, os móveis da dominação feudal aos móveis da dominação burguesa. Isso traz à baila mais uma evidência de que a ordem social competitiva, sob o capitalismo dependente, não produz, por si mesma, as impulsões para a mudança e as impulsões para concomitantes para o “controle democrático” da mudança, que são requeridas pelas grandes transformações estruturais e históricas que ela mesma acarreta. Institucionaliza-se a adulteração dessa ordem, o que, por sua vez, engendra a adulteração sistemática do próprio padrão de estabilidade e de mudança da sociedade competitiva sob o capitalismo.
Contudo, existem mudanças espontâneas que têm origem estrutural: elas se originam do próprio padrão organizatório da sociedade de classes e não podem ser facilmente adiadas, sufocadas ou reprimidas. Elas nascem dos dinamismos do mercado e do sistema de produção sob o capitalismo, das relações e conflitos de classes, ou das impulsões à igualdade civil desencadeadas pelas estruturas de poder de uma sociedade nacional. Tais tipos de mudança constituem o bicho-papão das burguesias das sociedades capitalistas dependentes e subdesenvolvidas (e, também, do que se poderia designar, eufemisticamente, como burguesia internacional). Elas ameaçam (ou parecem ameaçar) as posições de poder e as bases de dominação política das classes dominantes, que podem perder facilmente, através delas, o “controle da situação”. Como as classes que se identificam com tais mudanças nem sempre possuem o que alguns cientistas políticos designam como poder de barganha, acaba sendo uma tentação sedutora e fácil resistir a tais tipos de mudança, já que as retaliações previstas podem ser comodamente contornadas ou reprimidas. Aqui, entra-se no capítulo da resistência sociopática à mudança, através da qual as classes sociais dominantes e suas elites desfrutam a ordem social competitiva, mas a convertem em uma “ordem fechada” às necessidades e às aspirações das demais classes. É lugar-comum na interpretação sociológica que esse comportamento político das classes dominantes e de suas elites decorre da falta de socialização adequada e da inexistência ou debilidade com que elas compartilham alvos coletivos “nacionais” e “democráticos”. Por conservantismo, por oportunismo ou por uma combinação de ambos, essas classes e suas elites seriam compelidas a enfrentar os “problemas da mudança” sem a disposição de resolvê-los segundo critérios efetivamente “nacionais” e “democráticos”, isto é, de acordo com as exigências estruturais e dinâmicas da ordem social competitiva em dada fase de seu desenvolvimento histórico. Essa interpretação é, sem dúvida, correta. Mas implica em um lugar-comum, que além do mais ignora que, na raiz do comportamento das classes dominantes e de suas elites, se acha outro componente de maior influência condicionante e determinante. Não é só a cegueira, que conta, mas também a certeza (ou quase certeza) de que se pode manipular uma ordem social como a competitiva de modo relativamente fácil e impune. Pois uma ordem social que se alicerça sobre uma estrutura de poder econômico, social e político desigual tende a conferir peso diverso às diferentes classes. Isso introduz uma vantagem estratégica permanente em benefício das classes “mais iguais”, que dispõem de maior poder econômico, social e político, bem como de meios para empregá-los a favor de seus objetivos coletivos específicos (sejam eles particularistas ou não).
A situação global, portanto, permite compreender a resistência sociopática à mudança como algo possível (e por vezes possível de modo recorrente) em uma ordem social que confere a certas classes a probabilidade de desencadear “pressões de cima para baixo” e, ao mesmo tempo, de perverter ou impedir as manifestações compensatórias de “baixo para cima”. Isso sugere que não é só a “falta de solidariedade na base” que explica a inexistência ou a debilidade dos controles sociais reativos (ou contrarreativos), por parte das classes sociais prejudicadas pela resistência sociopática à mudança. É preciso não perder de vista todo este quadro, porque, na verdade, os conflitos entre as classes privilegiadas e as classes destituídas se agravam ainda mais quando entram em jogo opções que envolvem a persistência ou a substituição do padrão vigente de civilização (o que é o caso, quando a alternativa se torna “capitalismo” ou “socialismo”). Nesse contexto, as classes privilegiadas e suas elites agravam, por medo histórico, as propensões porventura atuantes de resistência sociopática à mudança, enxergando em qualquer “abertura da ordem” o início de um cataclismo social. Esse pânico, com frequência também manipulado e exagerado, desloca os conservadores e os liberais de suas posições, polarizando-os no centro ou na direita da reação.
Doutro lado, na situação cultural da sociedade de classes dependente e subdesenvolvida existe outro elemento dinâmico a considerar. As classes dominantes e suas elites, pouco propensas a assimilar e a pôr em prática técnicas, valores e instituições sociais que poderiam redundar em “maior abertura” e “maior fluidez” da ordem social competitiva, aproveitam com avidez as vantagens de sua incorporação às fronteiras culturais das nações capitalistas hegemônicas, para modernizarem sua tecnologia de controle repressivo e violento dos conflitos sociais, aumentando, com isso, a eficácia dos mecanismos de segurança da ordem ou de opressão policial-militar. Com o que prevalece nas nações capitalistas hegemônicas é o empenho em “preservar o equilíbrio lá em baixo”, mantendo-se a periferia como uma reserva de caça, formam-se nesses países programas de “assistência” e de “ajuda” que facilitam ainda mais a absorção de tal tecnologia e do seu emprego sistemático na adulteração dos dinamismos de funcionamento ou de desenvolvimento da ordem social competitiva. O que importa ressaltar é que o confronto entre classes destituídas e classes privilegiadas torna-se ainda mais desigual, já que, na realidade, as primeiras terão de enfrentar as últimas com um acréscimo de poder a que elas nunca poderão ter acesso. Ou se “conformam”, submergindo na apatia e nas dúbias vantagens do “desenvolvimento com segurança”, ou se preparam para movimentos de rebelião altamente complexos e de longa duração. É que o esforço necessário para “abrir” ou “reabrir” a ordem social competitiva é tão alto, que se torna mais fácil e racional substituir a “revolução dentro da ordem” pela “revolução contra a ordem”. Nesse sentido, as orientações egoísticas e particularistas das classes dominantes e das suas elites concorrem, a longo termo, não para “conter” ou “congelar” a história, mas para simplificá-la e acelerá-la. Sua feroz e obstinada resistência às mudanças compatíveis com a democracia burguesa e com o capitalismo acaba engendrando seja um agravamento fatal das tensões sociais, seja orientações de comportamento reativas segundo as quais a única saída tem de passar pela destruição da ordem existente.
Há relações entre o controle de mudança e o poder político?
Os processos de mudança são, com frequência, fenômenos de poder, na evolução das sociedades. E o controle da mudança, por sua vez, quase sempre aparece como fenômeno político (ele não diz respeito, somente, ao poder em geral, como poder econômico, social ou cultural, indiretamente político; mas, também, ao poder especificamente político). Se isso é verdadeiro em teoria, a regra aplica-se melhor a tipos de sociedades nas quais a continuidade depende largamente do equilíbrio dinâmico da ordem social, como sucede com a sociedade de classes. Com referência a este tipo de sociedade, é impossível conceber-se sociologicamente a continuidade da ordem social competitiva independentemente de várias formas de mudanças, simultâneas ou sucessivas e convergentes ou divergentes, através das quais o sistema societário global reajusta-se, continuamente, às condições externas da vida socioeconômica, bem como à composição e as relações das classes sociais, tudo em perpétua transformação. Nesse caso, o controle social da mudança assume importância equivalente à que possui o controle da estabilidade em sociedades cujo padrão de equilíbrio é estático.
Nas condições peculiares da sociedade de classes dependente e subdesenvolvida, a mudança e o controle da mudança são, com maior razão, fenômenos especificamente políticos. Da mudança e do controle da mudança não depende, apenas, a continuidade do sistema de produção capitalista e da dominação burguesa, mas, em especial, a probabilidade de impedir-se a regressão da dependência propriamente dita à heteronomia colonial ou neocolonial. Na verdade, sob o capitalismo dependente a dominação burguesa não deve, apenas, consolidar a continuidade da ordem contra as “pressões internas”, que se tornam perigosas e até mortais para a burguesia, quando são pressões do proletariado em aliança com os setores rebeldes das classes médias e das classes destituídas. Ela deve, também, consolidar a continuidade da ordem contra as “pressões externas”, das burguesias das nações capitalistas hegemônicas, de seus governos e de suas associações internacionais. Para garantir-se neste nível, a burguesia dos países capitalistas dependentes e subdesenvolvidos tende para coalizações oligárquicas e composições autocráticas, o meio mais acessível, ao seu alcance, para forjar e controlar o espaço político necessário a seus ajustamentos com o “sócio maior”, a burguesia das nações capitalistas hegemônicas e seus padrões de dominação imperialista. Tudo isso faz com que a dominação burguesa se converta, muito mais clara e duramente que nas nações capitalistas hegemônicas, em ditadura de classe. E, de outro lado, tudo isso faz com que o fenômeno central da mudança seja a permanente revitalização da dominação burguesa através do fortalecimento do Estado e de seus mecanismos de atuação direta sobre os dinamismos econômicos, socioculturais e políticos da sociedade de classes.
Essa situação não encontra paralelos nas evoluções das nações capitalistas hegemônicas – nem mesmo quando se consideram as ligações da emergência e da expansão do capitalismo monopolista com o aparecimento do “Estado intervencionista” e com o fascismo.18 Trata-se de uma forma de dominação burguesa e de articulação da dominação burguesa com o uso sistemático do Estado e do poder político estatal que é determinada e só pode ser compreendida através dos requisitos políticos do capitalismo dependente.19 O padrão de desenvolvimento capitalista dependente é incapaz de superar certas realidades, que se reconstituem e revitalizam de modo permanente, como: a forte dominação externa; a apropriação dual ou associada do excedente econômico; a extrema desigualdade na distribuição da riqueza, do prestígio social e do poder; a coexistência do crescimento capitalista interno com o subdesenvolvimento “absoluto” ou “relativo”, forçando constantes rearticulações de setores “arcaicos”, “modernos” e “ultramodernos”; intensa exclusão institucional das classes destituídas etc. A razão disso já foi indicada anteriormente. O padrão de desenvolvimento capitalista dependente resulta de combinações de dinamismos econômicos, socioculturais e políticos internos e externos que sempre se revelam, aos níveis estrutural-funcional e histórico, insuficientes para transformar a modernização dependente em modernização autônoma. Em outras palavras, eles não são suficientemente fortes para promover “a revolução dentro da ordem” em termos capitalistas, criando quer a independência em relação à dominação externa e ao imperialismo, quer real fluidez no funcionamento da ordem social competitiva, com o desencadeamento de uma torrente democrático-burguesa e nacionalista nas relações de acomodação e de conflito entre as classes. Por paradoxal que pareça, semelhante situação oculta a existência e o constante agravamento de contradições que não chegam a se resolver, tanto nas relações com as nações capitalistas hegemônicas e com o capitalismo internacional quanto nas relações das classes sociais dominantes com as classes trabalhadoras e destituídas. Isso congestiona e enrijece as exigências políticas do desenvolvimento capitalista. Para que ele se converta em algo viável e em constante aceleração – apesar das realidades permanentes apontadas – e para que possa existir continuidade seja na absorção das variações em intensidade ou de qualidade dos dinamismos socioeconômicos e culturais externos, seja na seleção e controle dos dinamismos econômicos, socioculturais e políticos internos, impõe-se uma espécie de gigantismo político normal das três áreas típicas em que se desdobra a revolução burguesa: 1º) uma forte polarização política da própria dominação burguesa; 2º) a formação e a expansão de um Estado de “democracia restrita”, que tem como base material a extrema concentração social da riqueza e do poder nas mãos das classes dominantes e “dirigentes”, e, como fonte de legitimidade legal e política, a quase total liberdade dessas mesmas classes; 3º) a transferência e a institucionalização de formas autocráticas de dominação econômica, social e política da esfera privada para a órbita do Estado.
O congestionamento e a rigidez dos componentes políticos do desenvolvimento capitalista dependente variam, porém, de acordo com as fases da revolução burguesa. Na fase inicial, de eclosão do capitalismo como realidade histórica, através da emergência e da expansão do mercado capitalista moderno em centros urbano-comerciais mais importantes, os riscos decorrentes das pressões externas e internas contra a ordem foram, de fato, pequenos e fracos. A modernização dependente nunca desencadeou ameaças verdadeiramente sérias à ordem econômica, social e política emergente. E, de outro lado, o principal efeito desse processo, a modernização institucional do Estado, coincidia com a renovação e o reforçamento das técnicas oligárquicas e autocráticas de dominação patrimonialista, elevadas da esfera privada à órbita da ação político-burocrática do Estado. Nesse contexto, as “pressões de baixo para cima” não tinham como transformar-se em processos políticos consistentes, em escala regional ou nacional. Eles se esgotavam, historicamente, no âmbito local e de categorias sociais limitadas ou serviam de suporte de massa a manifestações ambíguas do radicalismo de facções dos estamentos social e racialmente dominantes. A transição para o capitalismo competitivo, do último quartel do século XIX à terceira década do século XX, começou nos mesmos moldes e segundo os mesmos rumos. No entanto, o envolvimento externo no seio das transformações internas atingiu certa profundidade econômica e cultural, chegando a afetar as bases políticas do poder burguês. A proclamada aliança da “oligarquia tradicional” com os “interesses financeiros externos” não nos deve fazer ignorar os conflitos desses interesses na economia mundial, suas repercussões nos padrões de solidariedade econômica ou política das classes dominantes e, em particular, a oscilação dessas repercussões em termos da eficácia setorial da dominação burguesa.20 O fenômeno político profundo, neste período, foi a articulação de interesses econômicos internos e externos no mesmo padrão histórico de dominação burguesa, o qual se evidencia tanto na emergência de uma “oligarquia moderna” (extensamente vinculada aos interesses comerciais, industriais e financeiros de “parceiros externos”) quanto no acordo do café (que só se tornou viável e eficiente graças a essa articulação) e na frequente associação da emergente “burguesia industrial” com interesses externos, principalmente financeiros. Embora os dinamismos do regime de classes fossem inicialmente muito fracos, a universalização do trabalho livre e o aparecimento de um proletariado urbano-industrial introduziram o conflito de classes em bases especificamente políticas na sociedade brasileira. Isto deu maior ressonância às pressões “reformistas”, de conteúdo democrático-nacionalista, das classes médias, e serviu como elemento de precipitação da primeira recomposição histórica importante da dominação burguesa. A “velha” e a “nova” oligarquia articulam-se com os “interesses novos” dos industriais e das classes médias, contendo seus antagonismos dentro das opções burguesas e convertendo o Estado numa verdadeira arena de conciliação dos interesses convergentes ou divergentes das classes possuidoras e “dirigentes”. O que entrava em jogo, portanto, não era a natureza da transformação política almejada, mas o estilo que essa transformação deveria assumir (segundo uma linha autocrática-burguesa, que vinha das oligarquias; ou a linha alternativa democrático-burguesa e nacionalista, sustentada pelos setores “liberais” da burguesia, pelas classes médias vinculadas ao setor urbano-industrial e ao Estado, a qual contava com maior suporte popular). O desfecho desse pseudodrama histórico foi interrompido pela irrupção dos dinamismos econômicos e culturais externos, que impuseram, com extrema rapidez e a inesperada vitalidade, uma nova “idade histórica” ao poder burguês, acelerando de fora para dentro a transição para o capitalismo monopolista. Isso acarretou a “necessidade de ir mais longe” na segunda recomposição histórica importante da dominação burguesa: a aglutinação, dentro dela, de todos os agentes ou categorias de agentes internos e externos; e a limitação, através do Estado, da esfera de iniciativas e do âmbito de poder político das várias categorias de parceiros e do próprio Estado. Essa segunda recomposição pôs a revolução burguesa sobre seus eixos reais e dentro de sua rota histórica sob o capitalismo dependente (se ele se mostra suficientemente dúctil e forte para enfrentar a transição inerente à revolução urbana e industrial sob a tecnologia atual do “capitalismo avançado”), deixando patente que a modernização intensiva e o crescimento econômico acelerado contêm exigências políticas que convertem a “democracia burguesa” e o “nacionalismo burguês” em relíquias do folclore capitalista. A dominação burguesa não só avançou até o controle total e autocrático do Estado. Ela passou a irradiar-se, de “dentro para fora” e de “cima para baixo”, através de mecanismos estatais de autoproteção e de autorrealização que conferem ao Estado de democracia restrita o caráter de um instrumento de autocracia de classe, com funções específicas na esfera da estabilização forçada das condições políticas do desenvolvimento econômico e de repressão sistemática às forças políticas divergentes (mesmo quando refletem alternativas e interesses de classes pró-burgueses). Nesse sentido, ocorre uma efetiva “revolução dentro da ordem”, em termos capitalistas: só que ela transcorre como um aprofundamento e um salto dentro do capitalismo dependente. Pura e simplesmente, deixam de existir nas condições históricas dessa transição, quer a viabilidade de uma “revolução dentro da ordem” na direção do desenvolvimento capitalista autônomo, quer espaço político para o “nacionalismo revolucionário” e a “democracia burguesa”.
Essa sequência sugere como os desdobramentos da revolução burguesa se refletem na esfera do poder político e de organização do Estado, quando ela é extensa e profundamente dinamizada de “fora para dentro”, através dos ritmos e das oscilações do capitalismo mundial. Ela permite constatar que as burguesias “nacionais” das sociedades de classes dependentes e subdesenvolvidas não socializam para fora todo o seu poder político e, especialmente, que elas não cedem à dominação externa e à imperialização as posições que são estratégicas para o controle político do desenvolvimento capitalista dependente. Elas aceitam e até incentivam a articulação de interesses burgueses internos e externos, que pareçam refundir o poder burguês ao nível econômico, aumentando, em consequência, a sua flexibilidade e eficácia como fonte de dinamização da dominação burguesa em geral. Entretanto, elas procuram resguardar a base estatal de sua dominação de classe, impedindo com o mesmo afã que tanto a articulação com os interesses capitalistas externos quanto a democratização do poder ou a integração das estruturas nacionais de poder, internamente, funcionem como focos de erosão do seu poder real. Assim, elas levantam um dique que as protegem contra a internacionalização ou a imperialização do seu poder político estatal. Ainda se conhecem mal os processos que explicam, sociologicamente, esse comportamento político reativo. Contudo, parece que eles se prendem à necessidade que essas burguesias sentem de manter sob controle as fases e os efeitos do desenvolvimento capitalista induzido, que poderiam anular qualquer autonomia política relativa e destruir a eficácia do Estado como base do poder político burguês sob o capitalismo dependente. Como elas também não podem “criar a partir de dentro” um desenvolvimento capitalista autônomo, elas necessitam desse espaço político relativamente seguro, através do qual se podem lançar nas transições impostas ou resultantes da incorporação aos ritmos e às oscilações do capitalismo mundial.
Portanto, a capacidade de iniciativa assim adquirida reponta como o verdadeiro eixo político da própria revolução burguesa sob o capitalismo dependente. Uma burguesia que não pode desencadear, a partir de si mesma, nem a revolução agrícola, nem a revolução urbano-industrial, nem revolução nacional, percorre, não obstante, todas as etapas desses processos, como se, na realidade, eles fossem produtos de sua atividade histórica. De um lado, ela ganha recursos para manter e intensificar o fluxo de crescimento do capitalismo dependente, continuamente acelerado e por vezes subvertido “a partir de fora”. De outro, ela pode aparecer, no panorama interno da “sociedade nacional”, como a suposta protagonista final de todas as transformações. O crescimento econômico, o aumento de empregos, a modernização tecnológica, a elevação progressiva da renda ou dos padrões de consumo etc. só se tornam visíveis através de símbolos internos, que são, além disso, manipulados para ofuscar a consciência crítica das classes oprimidas e ganhar a adesão das classes médias. Ela projeta, desse modo, a condição burguesa para fora da burguesia e implanta, no coração mesmo de seus inimigos de classe, identificações e lealdades mais ou menos profundas para com o consumismo, a ordem social competitiva e o Estado “democrático” e “nacional”.
Aqui não interessa fazer a análise sociológica de tais evoluções do poder burguês sob o capitalismo dependente. O que interessa é assinalar as duas conexões que são vitais à compreensão sociológica do presente. Primeiro, a conexão positiva. Mantendo ou aumentando sua capacidade de iniciativa política, apesar dos efeitos limitativos do padrão dependente e subdesenvolvido de desenvolvimento capitalista, o poder burguês logra atingir o ponto ótimo possível de controle da mudança nas condições reais de estruturação, de funcionamento e de crescimento da ordem social competitiva sob o capitalismo dependente. Segundo, a conexão negativa. Ao atingir esse ponto, e para manter-se dentro dele, preservando sua capacidade relativa de iniciativa, o poder burguês procura impedir que o fluxo da mudança, a partir de pressões internas ou/e externas, transborde aquela ordem social, provocando o deslocamento do poder real ou para as classes oprimidas ou para fora. Isso quer dizer que, ao lado dos requisitos políticos do desenvolvimento capitalista dependente, deve-se considerar atentamente a esfera na qual o poder burguês se realiza plenamente sob o capitalismo dependente, como um poder político de classe que se impõe tanto “de cima para baixo” quanto “de dentro para fora”.
Tem-se dado pouca atenção a essa esfera do poder burguês, mesmo na literatura socialista concernente à sociedade de classes dependente e subdesenvolvida. A razão evidente dessa negligência vem do menosprezo com que é encarada essa “burguesia impotente”, ou “frustrada”, com frequência vista como uma burguesia de “segunda ordem” ou, mesmo, como “lumpen-burguesia”.21 Segundo penso, constitui um erro subestimar-se politicamente essa burguesia, que logrou manter e fortalecer o poder burguês em condições tão adversas, embora o tenha feito através de artifícios cruéis e mesquinhos. Ela não possui uma estatura heroica. Todavia, qual é a diferença, se a compararmos com as “burguesias conquistadoras” das sociedades capitalistas hegemônicas e imperiais? Elas apenas percorrem o mesmo caminho em sentido inverso, e o seu mérito não estaria em grandes alvos históricos; mas, em compatibilizar desenvolvimento capitalista, dependência e subdesenvolvimento de tal modo que mesmo o proletariado mais explorado e as classes destituídas mais excluídas ou marginalizadas se identifiquem, de alguma maneira, com a condição burguesa. Os que procuram uma alternativa revolucionária para o capitalismo dependente e o subdesenvolvimento não podem ignorar tais fatos, se quiserem, na verdade, lutar com êxito pela reconstrução socialista do homem, da economia e da sociedade na América Latina.
7 A terceira parte do livro, “Aspectos da interação com o índio e com o negro” continha cinco ensaios, que foram absorvidos por dois outros livros (O negro no mundo dos brancos, publicado no ano passado pela Difusão Europeia do Livro; e outro sobre o índio e a etnologia brasileira, a ser publicado pela mesma editora).
8 Esses problemas foram retomados, de modo global, em dois ensaios posteriores do problemas de mudança social no Brasil” (A sociologia numa era de revolução social, São Paulo, Companhia Ed. Nacional, 1963, p. 201-242); e “A dinâmica da mudança sociocultural no Brasil” (Sociedade de classes e subdesenvolvimento, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1968, p. 107-133). No entanto, todos os trabalhos escritos pelo autor, depois de 1960, propõem-se como objeto a interpretação de fenômenos da mudança social na sociedade brasileira, considerada isoladamente ou no contexto latino-americano.
9 A problemática teórica da dependência e do subdesenvolvimento ganha, em meus escritos posteriores, uma importância que ela ainda não adquirira no ensaio que servia de introdução global a Mudanças sociais no Brasil. Como ela define a tônica desta nova introdução, conviria indicar pelo menos algumas contribuições mais importantes para a discussão dessa problemática com referência à América Latina: F. Henrique Cardoso e E. Faletto, Dependencia y desarrollo en América Latina, México, Siglo Veintiuno Editores, 1969 (trad. Portuguesa: Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1970; versão preliminar: F. H. Cardoso, Santiago, ILPES, novembro de 1965); F. H. Cardoso: Mudanças sociais na América Latina, São Paulo, Difusão Europeia do Livro, 1969, e Política e desenvolvimento em sociedades dependentes, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1971; P. Gonzáles Casanova, Sociología de la explotación, México, Siglo Veintiuno editores, 1969; O. Ianni, Imperialismo y cultura de la violencia en América Latina, trad. C. Colombani e J. T. Cintra, México, Siglo Veintiuno Editores, 1970; L. Pereira: Estudos sobre o Brasil contemporâneo, São Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1971 (esp. Caps. 1 a 4), Ensaios de sociologia do desenvolvimento, São Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1970 (Esp. Caps. 2 e 4); A. Gunder Frank; Capitalism and underdevelopment in Latin America, Nova York e Londres, Modern Reader, 2. ed., 1969, e Latin America: Underdevelopment or Revolution, Nova York e Londres, Modern Reader, 1969; T. dos Santos; El nuevo caráter de la dependencia, Santiago, CESO, 1968, e Dependencia y cambio social, Santiago, CESO, 1970; R. Mauro Marini, Sous-Developpement et revolution en Amérique Latine, Paras, François Maspero, 1972; D. Ribeiro, El dilema de América Latina. Estructuras de poder e fuerzas insurgentes, México, Siglo Veintiuno Editores, 1971: A. Córdova, América Latina; integración económica para el desarrolo o subdesarrolo integrado? ed. mimeo. da Universidade de Rheda, 1970; C. Delgado, A revolução peruana, trad. de M. Urbano Rodrigues, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1974; J. L. Cecenã, México en la órbita imperial, México, Ediciones “El Casallito”, 1970. A essa bibliografia cumpre acrescentar pelo menos dois livros, que levam em conta outra problemática, mas são fundamentais para a compreensão sociológica do padrão dependente e subdesenvolvido de capitalismo; R. N. Adams, The Second Sowing. Power and secondary development in Latin America, San Francisco, Chandler Publishing Co., 1967; A. García, La estructura del atraso en América Latina, Buenos Aires, Editorial Pleamar, 1969; e o pequeno ensaio de O. Sunkel, “Política Nacional de Desarrollo y Dependencia Externa” (ed. mimeo., de uma conferência pronunciada em 17 de novembro de 1966 para o Ciclo de Conferências Inaugurais no Instituto de Estudos Internacionais da Universidade do Chile), o qual exerceu profundo impacto sobre estudiosos do assunto (reimpresso: Estudios internacionales, vol. 1, Santiago, abril de 1967; e in A. Bianchi et al., América Latina: ensaios de interpretación económica, Santiago, Editorial Universitaire, 1969, p. 245-78).
10 Os estudiosos costumam citar a Alemanha e o Japão como casos típicos nessa evolução do capitalismo (ver especialmente: B. Moore Jr., Social origins of dictatorship and democracy, Boston, Beacom Press, 1970; R. Bendix, Nation building and citizenship, Nova York, Anchor Book, 1969; N. Poulantzas, Poder político y classes sociales en el estado capitalista, Trad. F. M. Torner, México, Silo Veintiuno Editores, 1969). Veja-se também: F. Fernandes, “Revolução burguesa e capitalismo dependente” (Debate e Crítica, São Paulo, jul.-dez. de 1973, no 1, p. 48-66).
11 É o caso das hipóteses sugeridas por W. Lloyd Warner e L. Srole (veja-se: The social systems of american ethnic groups, New Haven, Yale University Press, 1960, esp. Cap. X).
12 Sobre esse conceito, cf. F. Fernandes, Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1973, p. 71 e ss.
13 Quanto ao contraste entre “modernização dependente” e “modernização autônoma”, cf. op. cit., cap. III.
14 Para uma descrição sintética desses modelos, de acordo com a orientação interpretativa do autor, cf. F. Fernandes (org.), Comunidade e sociedade no Brasil, São Paulo, Companhia Ed. Nacional/Editora da Universidade de São Paulo, 1972, p. 273-83, 309-15, 399-07 e 506-11.
15 O melhor exemplo, a respeito, é do Oeste paulista, onde a inovação aparece em conexão com os dois efeitos mencionados (cf. S. Buarque de Holanda, prefácio a Thomaz Davatz, Memórias de um colono no Brasil (1850), São Paulo, Livraria Martins, 1941, p. 13-14; F. Fernandes, “O negro em São Paulo” O negro no mundo dos brancos, São Paulo, Difusão Europeia do Livro, 1972, cap. VI, esp. p. 142-46.
16 Cf. especialmente: E. Dias, História das lutas sociais no Brasil, São Paulo, Editora Edaglit, 1962; e, para fins de interpretação sociológica: L. Martins Rodrigues, Conflito industrial e sindicalismo no Brasil, São Paulo, Difusão Europeia do Livro, 1966; A. Simão, Sindicato e estado, São Paulo, Dominus Editora/Editora da Universidade de São Paulo, 1966; J. Albertino Rodrigues, Sindicato e desenvolvimento no Brasil, São Paulo, Difusão Europeia do Livro, 1966, f. c. Weffort, Sindicato e política, São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, ed. mimeo, 1972; J. R. Brandão Lopes, Crise do Brasil arcaico, São Paulo, Difusão Europeia do Livro, 1967; F. C. Weffort, Participação e conflito industrial; Contagem e Osasco, 1968, São Paulo, Cebrap, 1972.
17 Há muita controvérsia quanto às implicações da distribuição da renda. Mas essa é a melhor referência de que dispomos para avaliar a desigualdade econômica, social e cultural na sociedade brasileira. Langoni indica que os 10% do tope dispõem de uma renda média mensal de Cr$ 1.309,87 (em cruzeiros de 1970) e que a eles correspondem 46,47% de toda a renda. Pode-se estimar o que isso representa quando se considera que os 50% de renda mais baixa só contam com 15% de toda a renda; e que são precisos 80% de toda a população que percebe alguma renda para atingir-se 38,38% de toda a renda! A renda média mensal nos últimos cinco decís oscilava entre Cr$ 32,69 e CR$ 141,54. Enquanto o 1% de maior renda contava com 14,11% de toda a renda e uma renda média mensal de Cr$ 3.976,11; e os 5% de maior renda contavam com 34,06% de toda a renda e uma renda média mensal de Cr$ 1.920,17 (cf. C. Geraldo Langoni, Distribuição da renda e desenvolvimento econômico do Brasil, Rio de Janeiro, Editora Expressão e Cultura, 1973, tabela 1.1, p. 21). Para uma análise global crítica do tema, cf. Paul Singer, “Desenvolvimento e repartição da renda no Brasil”, (Debate e Crítica, nº 1, jul.-dez. de 1973, p. 67-94). São as seguintes as contribuições mais importantes na recente discussão dos problemas de distribuição de renda: M. C. Tavares e J. Serra, Mas Alla del estacamiento: una discussion sobre el estilo del desarrolo reciente de Brasil, Santiago, Escuela Latinoamericana de Sociología, 1971; C. Furtado, Análise do “modelo” brasileiro, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1972, cap. 1; R. Hoffmann, Contribuição à análise da distribuição de renda e da posse da terra no Brasil, Piracicaba, Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, ed. mimeo., 1971; J. C. Duarte, Aspectos da distribuição da renda no Brasil em 1970, Piracicaba, ed. mimeo., 1971; L. C. Guedes Pinto, Contribuição ao estudo da distribuição de renda no Brasil, Piracicaba, Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, ed. mimeo., 1972; R. Hoffmann, Tendências da distribuição da renda no Brasil e suas relações com o desenvolvimento econômico, Piracicaba, Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, ed. mimeo., 1972; R. Hoffmann e J. C. Duarte, “A distribuição da renda no Brasil”, Revista de Administração de Empresas, Rio de Janeiro, V: 12 nº 2, abr./jun. de 1972, p. 46-66; J. Serra, “A reconcentração da renda” (Estudos Cebrap, São Paulo, nº 5 jul. ago./set. de 1973, p. 131-55). A defesa mais flexível da “posição oficial”, quanto à presente política de desenvolvimento econômico, aparece no livro acima citado, de C. G. Langoni, e nas seguintes matérias de imprensa: “Renda cresce irregular e população também” (M. H. Simonsen; O Estado de S. Paulo, 30/6/72); “Renda melhora com transição do desenvolvimento” (C. G. Langoni; O Estado de S. Paulo, 28/11/1972). A defesa dessa política econômica, quaisquer que sejam os argumentos empregados, implica aceitar que a “saída brasileira” para o desenvolvimento capitalista acelerado encontra-se em práticas de acumulação capitalista que intensificam a concentração da renda no tope e aprofundam as margens de expropriação capitalista dos assalariados, deixando-se para o futuro indeterminado a correção indireta dos mais brutais efeitos da extrema desigualdade na distribuição da renda.
18 Para uma análise sociológica, que toma em conta as várias formas de intervencionismo estatal e a especificidade do fascismo, cf. N. Poulantzas, Fascismo e ditadura: a III Internacional face ao fascismo, Porto, Trad. de J. G. P. Quintela e M. Fernanda S. Granado, Portucalense Editora, 1972, 2 vols.
19 Cf. a respeito, do autor: Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina, op. cit., 102 e ss., e, para uma ilustração, “The meaning of military dictatorship in present day Latin America” (in The Latin American in Residence Lectures, Toronto, Universidade de Toronto, 1969-70, cap. 2). Com vista à situação brasileira, especialmente, cf. F. H. Cardoso, O modelo político brasileiro, São Paulo, Difusão Europeia do Livro, 1972 (onde são citados outros estudos de ciência política); O. Ianni, O colapso do populismo no Brasil, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968, e Estado e planejamento econômico no Brasil (1930 e 1970), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1971; H. Jaguaribe, Desenvolvimento econômico e desenvolvimento político, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2. ed., 1969; L. C. Bresser Pereira, Desenvolvimento e crise no Brasil entre 1930 e 1967, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1968; C. Mendes, “Sistema político e modelos de poder no Brasil”, (Dados, Rio de Janeiro, nº 1, 1966, p. 7-41). Doutro lado, para se ter em conta a repercussão política da pressão popular, cf. se esp. F. C. Weffort, Classes populares e política (Contribuição ao Estudo do “Populismo”), São Paulo, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, ed. mimeo., 1968.
20 Cf., especialmente, B. Fausto: Pequenos ensaios de história da República, 1889-1945, São Paulo, Cebrap, 1972, e “A revolução de 1930”, in C. G. Mota (org.), Brasil em perspectiva, São Paulo, Difusão Europeia do Livro, 1968, cap. 7; W. Dean, A industrialização de São Paulo, trad. de O. M. Cajado, São Paulo, Difusão Europeia do Livro, 1971; J. de Souza Martins, Conde Matarazzo: o empresário e a empresa, São Paulo, Hucitec, 2. ed., 1973.
21 É assim que A. Gunder Frank qualifica a burguesia das sociedades capitalistas dependentes e subdesenvolvidas (cf. Lumpen-Burguesia, Porto, Portucalense Editora, 1971).