Em busca do esqueleto

[06/02/1999]

Dentro de alguns dias, os calouros da medicina, aprovados nos vestibulares de todo o país, estarão começando seu curso. E o começarão por aquela disciplina básica, que introduz ao conhecimento do corpo humano: a anatomia. Ou seja, terão de dissecar cadáveres. É lógico, mas é perturbador. Florencio Escardó, famoso pediatra uruguaio, apontava a ironia que é iniciar a formação médica por aquilo que representa justamente o fracasso da medicina, o corpo morto.

Bem, mas antes do cadáver vem o esqueleto. Que não é tão sinistro assim. Esqueletos frequentemente aparecem em comédias de televisão, por exemplo. E as caveiras que os norte-americanos usam no Halloween, e os mexicanos nos Finados (as “calaveras”), fazem parte de clássicas celebrações em que, assobiando no escuro, brincamos com a ideia da morte.

 

 

Durante muito tempo, a anatomia humana, o esqueleto aí incluído, foi uma abstração para os doutores. Galeno, por exemplo, um grande médico da Antiguidade, não sabia quantos ossos teria o corpo: “mais de duzentos”, escreveu, à guisa de palpite. A tradição judaico-cristã proibia a dissecção, o que só começou a acontecer na modernidade. E aí surgiu uma espécie de fascínio com o esqueleto. Todas as escolas médicas tinham de ter um. Não: todos os colégios tinham de ter um. E aí surgiram curiosas histórias envolvendo esqueletos. Como aquela envolvendo John Hunter e o gigante irlandês.

Hunter, famoso médico escocês do século xviii, era o protótipo do maluco genial: grande cirurgião, grande investigador — e um obcecado pela anatomia: na sua mansão em Londres, havia um verdadeiro zoo de animais selvagens que ele estudava e dissecava depois de mortos (uma vez dois leopardos fugiram dali, causando pânico na vizinhança). Naquela época, fazia sensação na capital inglesa um gigante irlandês (cerca de dois metros e meio) chamado Charles Byrne e que, como era hábito então, era exibido ao público. Em pouco tempo, contudo, Byrne contraiu tuberculose e logo estava agonizando.

 

 

Quando Hunter soube disto, uma ideia lhe ocorreu: apossar-se do esqueleto do infeliz. Byrne soube disto e, aterrorizado, pediu a seus amigos que seu corpo fosse atirado ao mar, mas não entregue ao cirurgião. Confiante de que seu desejo seria atendido, faleceu.

O esperto Hunter, contudo, subornou o agente funerário. O féretro seguiu até o cais, mas lá os caixões foram trocados. Hunter recebeu o corpo, do qual rapidamente extraiu o esqueleto, que ficou em exibição em seu consultório. O caixão que foi jogado ao mar continha pedras.

Para a família não fez muita diferença. Mas para o progresso médico também não. Se a história prova alguma coisa é que os doutores, como todo o mundo, têm suas obsessões. E, às vezes, farão qualquer coisa para satisfazê-las.