A aparência presuntiva da titularidade de direitos imobiliários resulta ou do registro ou da posse − desta, enquanto é detenção real da coisa imóvel −, mas a da posse cede passo à existência de um status oposto inscrito no registro.
Esse limite à eficácia publicitária da possessão põe em evidência que a confiança social no registro − em derradeira análise, trata-se da fidúcia radicada no próprio registrador − supera, em linha de princípio e mesmo de fato (quod plerumque accidit), a expectativa de a posse ser algo além de indiciária.
O conflito de aparências, contudo, solve-se em favor do registro. Isso permite aferir que duas publicidades geram duas presunções que podem ser uníssonas, mas em que a segunda − a emergente da posse − supõe um condicionamento: o silêncio tabular. Esse quadro sugere que, seja por força da história, seja por indicação metafísica (o que é de todo admissível, se se pensar na ideia mais genérica de publicidade jurídica), deva reconhecer-se na instituição do registro de imóveis uma conaturalidade com a “palavra” do registrador. E, talvez, não menos, com seus silêncios. Trata-se de uma eficácia adjetiva preferente à segunda, vinculada à posse, da qual, com agregação (ao menos) do tempo, espera retirar-se uma eficácia substantiva, que é a usucapião.
A primeira, a da “palavra” do registrador, responde à natureza singular do registro imobiliário, embora seja própria de uma variação acidental de estatuto definido historicamente: é um dado personalíssimo de seu hábito profissional, e designa-se fé pública, conatural à finalidade assecuratória que se aguarda do registro.
Não se dera, com efeito, uma derradeira presunção de legitimidade dos atos registrais, ou seja, a resultante da fé pública, não teria sequer sentido a instituição registrária. Pode ainda agora recrutar-se um exemplo atualíssimo para meditar com proveito (digo-o, com perdão!): a pretendida hipóstase de um Registro eletrônico − todavia, nunca se terá chamado de Registro datilográfico ao que sucedeu o período da manuscrição − fala de um novo Registro (esse, eletrônico), ao modo (implícito, quando menos) de uma transformação de caráter substantivo: o Registro que era já não é ou não será. Substitui-se aí a descoberta prudencial da res certa pela confiança burocrática numa res machina, a esforçada invenção do agir concreto pela monótona falsa certeza de uma simples técnica.
A fé pública do registrador, entretanto, corresponde a um hábito do registrador, e o hábito do registrador é o próprio registrador em hábito. A admitir (o que não se queira!) o escambo da pessoalidade na atuação registral pelo recurso simplista ao tédio anônimo e formulário dos bits de um computador, chegar-se-ia a levar a fé pública do registrador não já e só a uma crise, mas a um estado agônico, de recusa da própria natureza da instituição registral (vem-me aqui à lembrança o étimo de “agonia”: agone? Quer dizer: devo agir?).
Se a fé pública do registrador é a chave adjetiva da propriedade imobiliária, a substantiva, já se disse, é a usucapião, que se sintetiza (impropriamente) como soma da posse com o tempo − quando, em verdade, congrega ainda o título, a boa-fé e a coisa juridicamente suscetível de adquirir-se: res habilis, titulus, fides, possessio, tempus... Esta era a enunciação que se havia de memorizar.
Pese embora o relevo jurídico e político da usucapião, sobretudo à vista de seu caráter de clave derradeira para o status de domínio − não passemos ao largo de que a função social da propriedade está firmada em demarcar o que é de um e o que é de outro −, não se conta entre seus requisitos clássicos a jurisdicionalidade. Deve pensar-se aqui em algo parecido com a irrelevância (ou mesmo inconveniência) da judiciaridade nos casos da in iure cessio e dos processos fingidos (concluídos com a confessio in iure e a confessio in iudicio). Assim, recupera-se a tradição não só de uma passagem histórica da jurisdição contenciosa à de caráter voluntário, mas ainda a seguinte, do passo da judiciaridade à fonte extrajudicial (exemplo marcante é a conversão do præceptum de solvendo que, de origem judicial, veio a permitir-se pela via notarial, por meio da escritura guarentigia).
É possível, aqui e ali, criticar-se o simplismo com que se alçam as hipóteses de desjudiciarização. E, muita vez, se não por seu objeto − suscetível de atrair-se por uma potestas non iudicialis −, muito e gravemente pelos fundamentos com que se propõe desjudiciarizar alguns casos. Nesse sentido, não parece bem que se adote o critério simplex da celeridade como regra de uma nova justiça: lógica da produtividade, discurso da brevidade, reino da quantidade: no direito pós-moderno, disse Ettore Gliozzi, “l’unica cosa socialmente importante è che i giudici decidano le controversie, non importa in che modo e con quali motivazione”. Ou seja, em vez das deusas Thêmis ou Diké, o novo deus do jurídico será então Hermes – o deus eólico −, dando-se, além disso, a prevalência dos interesses da economia de mercado (economicismo jurídico) sobre os da pessoa humana: o objeto do direito desloca-se do homem para o capital (isso é comum ao capitalismo e ao socialismo, note-se bem).
Mas, a despeito desses excessos, está bem admitir: reddite sunt Cæseris, Cæseri. E se há, como há ainda, uma exitosa Magistratura da paz jurídica − feliz expressão de Antonio Monasterio y Galí −, bem é que a ela acorram os casos e as situações não conflitivas, ainda as que contenham provável conflituosidade in mot¯o (é trivial, mas convém referir: o ato que está na potência, enquanto está em potência, não é ato… não haveria, pois, conflito atual). É bem para isso que, sob certo aspecto, devem existir as Notas e os Registros públicos: Magistratura da prevenção, Magistratura da conciliação, Magistratura da concórdia.
É de uma usucapião imobiliária desjuridiciarizada que trata mais este livro de Leonardo Brandelli, doutrinador já consagrado, embora jovem, pela marca de um pensamento rigorosamente articulado. Conheci-lhe primeiro por uma obra (seu valioso estudo sobre a ata notarial): mas a obra da pessoa é já a pessoa em obra (rectius: em ato). Festejei-lhe, depois, in pector¯e, a convocação para atuar no Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, porque avistei, esperançoso, uma nova retomada do status verdadeiramente científico que uma infeliz década nominalista desperdiçou para os bons estudiosos do Direito Registral Imobiliário brasileiro (e eles são muitos). Sobretudo, adiante, pude aferir o somatório de duas virtudes gratificantes nesse valoroso pensador. Isso muito o explica: reúne Leonardo Brandelli a sagacidade e a docilidade; é dizer que aprende meditando por si próprio, mas também trilhando os trilhos de quem já trilhou.
Quando ultrapasso as linhas de um estendido meridiano (por minha conta − e apesar das evidências em contrário − resolvi estendê-lo, decerto), contenta-me ver mais esta obra de Leonardo Brandelli, que alia seu saber prudencial de registrador ao de um articulador pensador da ciência do Direito Registral Imobiliário.
Ricardo Dip
Desembargador do TJSP