1. Fundamento da desjudicialização da usucapião

Sempre se viu, no direito brasileiro, a usucapião ser judicial, e de tal maneira esse costume ficou incrustado no meio jurídico que ideia diversa pode soar estranha à primeira vista, muito mais pela conformidade com a forma que sempre existiu do que por uma impossibilidade jurídica bem argumentada em sentido contrário.

Todavia, apesar da surpresa que pode trazer ver certo instituto deslocar-se da esfera jurisdicional para a extrajudicial, e de eventual desconforto decorrente da necessidade de sair do lugar-comum, a desjudicialização de certos institutos, em casos em que não haja lide, tem sido bem recebida pela comunidade jurídica e pela sociedade. Veja-se, para ilustrar, os casos da retificação de registro, da regularização fundiária, do divórcio e do inventário e partilha.

Inicialmente, é importante que se diga que não há inconstitucionalidade alguma na desjudicialização da usucapião. Ver-se nela algo de inconstitucional seria apenas reflexo da “boca torta feita pelo cachimbo”, conforme diz o dito popular. Nada há na Constituição Federal a desautorizar tal medida.

Não há qualquer óbice constitucional em levar para outro órgão, que não o judicial, o reconhecimento da usucapião, desde que, obviamente, não se afronte o insculpido no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, isto é, que não se exclua a possibilidade da discussão judicial do tema, se de natureza não jurisdicional for o órgão que receber a incumbência.

Não representa nenhum risco para o aludido dispositivo constitucional a usucapião extrajudicial registral, a qual, conforme se verá, tem, por entendimento uníssono no Direito brasileiro, caráter administrativo, de modo que permite sempre, e a qualquer tempo, a revisão judicial.

Também não há ofensa alguma ao inciso XXI do mesmo art. 5º da Carta Magna, uma vez que não há lide instaurada na usucapião extrajudicial, havendo acordo, expresso ou tácito, dos potencialmente envolvidos, conforme lembra Venicio Salles1.

No caso da usucapião, salvo as hipóteses em que houver lide instaurada, a desjudicialização não só é constitucional e possível juridicamente, como é recomendável, como forma de tirar do Poder Judiciário matéria que não lhe é essencialmente afeta, colaborando assim para reduzir sua sobrecarga, logrando-se maior celeridade com igual nível de segurança jurídica.

E o profissional do direito que naturalmente tem as características necessárias para receber essa incumbência é o guardião da propriedade imobiliária e dos demais direitos reais, ou obrigacionais com eficácia real, imobiliários: o Oficial de Registro de Imóveis.

Não havendo litígio, não há ato jurisdicional necessário, de tal modo que a atuação do Estado-Juiz não é imprescindível.

Até mesmo quando haja litígio, a opção pela sua resolução por meio do Estado-Juiz é uma opção legislativa, e não algo que siga um caminho de cunho necessário, servindo como prova de tal assertiva a arbitragem2. Dessa forma, uma usucapião litigiosa poderia ser decidida pelo Oficial de Registro de Imóveis, se a legislação assim permitisse e se essa fosse a opção das partes, uma vez que se trata de direito patrimonial disponível; nada haveria de inconstitucional nessa opção, assim como não há na arbitragem. Haveria a transmissão de parte da jurisdição estatal.

Não havendo litígio, todavia, é até mais recomendável que a questio iuris não seja submetida ao Poder Judiciário, o que permite, a um, que o Juiz possa dedicar-se com mais tempo e afinco às tormentosas questões litigiosas que lhes são submetidas, e, a dois, que haja maior celeridade sem perda de segurança jurídica, ao ser a questão resolvida por outro profissional do Direito que, com mais liberdade de atuação, mas com certas características funcionais, como a fé pública, a independência e a imparcialidade, por exemplo, pode dar solução segura e rápida ao deslinde da questão.

No caso da usucapião, o Oficial de Registro de Imóveis, profissional do direito dotado de fé pública e com profunda expertise na matéria imobiliária, é o profissional adequado para analisar e decidir acerca das questões em que não haja lide estabelecida.

Os princípios3 que permeiam a função registral imobiliária, como o da legalidade, instância, especialidade, continuidade, presunção e atribuição territorial, por exemplo, dão os instrumentos e garantias necessários à assunção de tal mister.

O Registrador pode e deve presidir os processos de reconhecimento da aquisição da propriedade imobiliária pela usucapião em que não há lide, por ser atividade que lhe é mais afeta do que ao Juiz.

É o Oficial de Registro de Imóveis, dentre todos os profissionais do direito, aquele a quem a usucapião não litigiosa de bens imóveis é mais afeta pela própria natureza jurídica da função registral imobiliária.

Em matéria de direitos reais e obrigacionais imobiliários com eficácia real, na esfera não contenciosa, o Registrador é o melhor gatekeeper possível, se o Registro for de Direitos4, como é no Brasil.

Quer isto dizer que é o Oficial de Registro de Imóveis o profissional adequado, dotado das características certas, para bem fazer a depuração jurídica de tais direitos, qualificando-os juridicamente. Mais do que isto, é a quem cabe, de acordo com o ordenamento jurídico, fazer essa qualificação jurídica, razão pela qual o mesmo ordenamento dota-o das características necessárias a tal mister.

O Registrador Imobiliário é o profissional a quem cabe, na esfera de desenvolvimento voluntário do direito, a depuração jurídica dos direitos reais e obrigacionais com eficácia real, imobiliários, com o intuito de publicizá-los, com efeito constitutivo ou declarativo. Em um Registro de Direitos, que pretende garantir o direito inscrito, o Oficial deve qualificar juridicamente os direitos que serão publicizados, somente publicizando direitos conforme o ordenamento jurídico.

Tratando-se a usucapião extrajudicial de processo administrativo que pode levar à aquisição de um direito real imobiliário de modo originário, está ela afeta à atividade registral imobiliária.

Há a necessidade de um terceiro imparcial que presida e decida a quaestio iuris posta no processo administrativo, e em nosso ordenamento jurídico, como de resto nos países da tradição romano-germânica, o Oficial de Registro de Imóveis é o profissional jurídico dotado dessas características necessárias.

O Notário, que também é dotado de certas características que o Registrador tem, como a fé pública e a imparcialidade, atua na esfera obrigacional do Direito, ou autenticando fatos, por ata notarial, autenticação de cópias, reconhecimento de firmas etc., ou acolhendo e instrumentalizando manifestações de vontade destinadas a compor o suporte fático de algum ato jurídico (lato sensu), de modo que escapa do seu âmbito de atuação a condução de um processo administrativo voltado para a obtenção de um direito real originariamente.

Ao contrário do que ocorre com o divórcio extrajudicial, por exemplo, ou com a partilha extrajudicial por morte, em que há um ato jurídico sendo instrumentalizado, dadas as manifestações de vontade das partes, todas concordes, na usucapião extrajudicial, não é disto que se trata, mas sim de um processo administrativo no qual serão analisadas provas, e será deferido, ou não, fundamentadamente, um pedido de declaração de uma aquisição originária de direito real imobiliário a ser publicizado.

Ao Notário cabe acolher e instrumentalizar declarações de vontade, ou autenticar fatos. Não cabe presidir processos administrativos, analisando provas e deferindo ou não o pedido, publicizando o direito ou negando tal publicidade.

Ao Registrador é que cabe tal mister, de modo que é acertada, em nosso entender, a escolha do legislador brasileiro de submeter ao Registro Imobiliário o processo de usucapião extrajudicial.

Embora o Notário tenha um papel importante na lavratura da ata notarial que instruirá a peça inicial do processo, sua atuação é a de autenticar fatos ou instrumentalizar atos jurídicos e não a de conduzir processos administrativos ligados à aquisição de direitos reais; ademais, atua ele na esfera obrigacional do Direito.

O Notário é um gatekeeper de direitos obrigacionais; o Registrado Imobiliário é um gatekeeper de direitos reais ou obrigacionais com eficácia real.

É bem verdade que uma série de direitos reais são adquiridos pela via obrigacional, cujo instrumento, após publicizado no Registro Imobiliário, adquire eficácia real, de maneira que o Notário deve antecipar-se ao fenômeno publicitário, porém é o Registrador quem efetivamente fará a qualificação jurídica para a eficácia real a ser agregada ao negócio jurídico pela publicidade registral.

Não é o caso da usucapião, entretanto, cuja aquisição é originária, não passando pela via obrigacional. Sua via é, diretamente, a real. Não há ato jurídico prévio; não há instrumentalização de vontades. Há uma sucessão de atos, um processo, portanto, a fim de verificar se ocorreram, ou não, os requisitos da usucapião.

Assim, como se trata o processo de usucapião extrajudicial de um processo administrativo voltado para a análise de um conjunto probatório, com o fim de verificar se houve, ou não, a aquisição originária de um direito real imobiliário, não havendo ato jurídico a ser instrumentalizado, é o Registrador Imobiliário que está afeto pela lei, corretamente em nosso entender.

Mutatis mutandis, é o mesmo que se passa com o processo extrajudicial de retificação do registro imobiliário, previsto no art. 213 da LRP.

É de se anotar, por fim, que a desjudicialização da usucapião é medida que tem sido louvada pelo civilista pátrio5.

2. A usucapião extrajudicial no direito comparado

A usucapião extrajudicial não foi uma inovação do ordenamento jurídico brasileiro, embora o instituto em nosso direito tenha conotações próprias, mais acertadas em nosso entender.

O Direito peruano e o português, por exemplo, já continham previsão da possibilidade da usucapião reconhecida extrajudicialmente.

No Peru, dentro de uma visão de propulsão econômica pela formalização da propriedade fundiária, iniciada na década de 19906, o ordenamento jurídico incorporou a previsão da possibilidade do reconhecimento extrajudicial de usucapião pela via notarial7.

Também o Direito português reconheceu a possibilidade da declaração de usucapião pela via extrajudicial mediante o instituto da justificação de direitos8, que consiste em um expediente simplificado utilizado para solucionar o problema decorrente da falta de título comprobatório do direito adquirido a ser registrado9.

Tal instituto foi prestigiado em demasia com o advento do Decreto-Lei n. 273/2001, que implementou uma política de desjudicialização de matérias sobre as quais não havia litígio, tirando-as dos Tribunais e passando-as para as Conservatórias e para os Notários10.

Trata-se de procedimento administrativo que pode ser levado a cabo de duas formas: pela forma notarial, mediante uma escritura de justificação com um procedimento processual específico, ou diretamente nas conservatórias prediais, mediante um procedimento administrativo presidido e decidido pelo Conservador.

Cumpre à parte interessada escolher qual das vias pretende utilizar, estando as duas, igualmente, à sua disposição.

Tanto no exemplo do Peru quando no de Portugal, há a possibilidade de que a usucapião seja reconhecida extrajudicialmente pela via notarial, o que, como vimos acima, não é o tecnicamente mais adequado.

Melhor é a solução adotada em nosso ordenamento jurídico, que também foi reconhecida no ordenamento jurídico português no Decreto-Lei n. 273/2001, qual seja a de que o procedimento de reconhecimento da aquisição de um direito real imobiliário pela usucapião tenha trâmite no Registro Imobiliário.

3. Evolução histórica do instituto no direito brasileiro

A usucapião administrativa registral surgiu com a Lei n. 11.977/2009, muito embora, desde o ano de 2001, pela previsão na Medida Provisória n. 2.220/2001, já houvesse possibilidade de aquisição de direitos sobre imóveis públicos, de maneira administrativa, extrarregistral, mediante instituto que nos parece se tratar de hipótese de prescrição aquisitiva, como veremos adiante.

Antes disso, ja tinha havido um reconhecimento da importância do Registro Imobiliário para o instituto da usucapião, primeiro, quando o Código Civil reconheceu o registro do título como um dos requisitos para a redução do prazo da usucapião ordinária, no art. 1.242, parágrafo único, e, segundo, quando a LRP, no §5º do art. 214, determinou que não seria declarada a nulidade de ato registral por vício do procedimento quando fosse afetado terceiro de boa-fé que tivesse já preenchido os requisitos da aquisição pela usucapião.

Houve aí, talvez, o embrião de um movimento que se desenvolveu até chegar à usucapião extrajudicial.

A Lei n. 11.977/2009 tratou do tema da regularização fundiária, pretendendo dar vazão a certos princípios constitucionais e criar um regulamento que permitisse a formalização de uma importante parcela do solo brasileiro que se encontra parcelada irregularmente, mas de forma consolidada.

Dividiu as regularizações em: de interesse social, quando o interesse prevalente for o de população de baixa renda, e de interesse específico, para os demais casos, estabelecendo institutos privilegiados e facilitadores para as regularizações de interesse social.

Entre tais institutos, encontra-se o da outorga de título de legitimação de posse, a ser concedido pelo Poder Público ao ocupante do lote regularizado, título esse que pode ser registrado na matrícula do lote e que, então, poderá conduzir, administrativamente, à aquisição da propriedade, conforme será mais bem analisado abaixo.

Foi um importante passo para a desjudicialização da usucapião nos casos em que não envolvesse litígio, porém um passo ainda tímido, limitado somente ao reconhecimento da aquisição do direito real de propriedade, e nos casos de regularização fundiária de interesse social em que tivesse havido primeiro o registro do título de legitimação de posse concedido pelo Poder Público.

Com o NCPC deu-se, então, o grande salto para uma aplicação integral da usucapião extrajudicial, passando a tornar possível, e exigível, uma sistematização a respeito.

Foi inserido o art. 216-A da LRP, que institui o procedimento extrajudicial comum de usucapião, o qual pode ser utilizado, por opção da parte e nas hipóteses em que não haja lide presente, para o reconhecimento da aquisição por usucapião de qualquer direito real imobiliário que seja passível de ser usucapido por qualquer espécie de usucapião.

No estágio atual do ordenamento jurídico, com a inovação trazida pelo NCPC, não é mais possível tratar de processo de usucapião sem analisar o processo extrajudicial, conduzido diretamente no Registro Imobiliário, o qual passa a ser, ao lado do processo judicial, a forma possível de reconhecimento de uma aquisição originária de direitos reais imobiliários pela via da usucapião.

4. Natureza jurídica da usucapião extrajudicial imobiliária

Trata-se a usucapião extrajudicial imobiliária de um processo administrativo especial ou de um processo de jurisdição voluntária especial? Em outras palavras, a função registral imobiliária é função administrativa ou jurisdicional?

No direito brasileiro tem-se entendido que a função registral bem como a função notarial são funções administrativas, públicas, exercidas por um particular, por sua conta e risco, mediante delegação estatal.

Conforme leciona Luís Paulo Aliende Ribeiro, “os notários e registradores, embora exercentes de função pública, não são funcionários públicos, nem ocupam cargos públicos efetivos, tampouco se confundem com os servidores e funcionários públicos integrantes da estrutura administrativa estatal. Por desempenharem função que somente se justifica a partir da presença do Estado — o que afasta a ideia de atividade exclusivamente privada —, inserem-se na ampla categoria de agentes públicos, nos termos acolhidos de forma pacífica pela doutrina brasileira de direito administrativo”11.

Daí depreende-se tratar de atividade administrativa, e não jurisdicional.

Parece não haver voz alguma dissonante no entendimento nacional no sentido de que a atividade registral imobiliária tenha natureza administrativa, de modo que, segundo esse entendimento reinante em solo brasileiro, o processo de usucapião extrajudicial é processo de natureza administrativa, e não jurisdicional.

Sendo, pois, o processo administrativo, sua revisão jurisdicional é sempre possível, e a qualquer tempo. Durante o curso do processo administrativo, ou após seu término, mas antes do prazo prescricional, sempre será possível buscar a sua revisão judicial.

Pela mesma razão, não induz ele litispendência nem tampouco faz coisa julgada, que são qualidades da jurisdição12.

Trata-se o procedimento de usucapião extrajudicial de um processo administrativo, conduzido por uma autoridade administrativa, que o preside, analisa o conjunto probatório, e, ao final, defere ou denega o pedido feito.

Como procedimento administrativo que é, deve o Oficial de Registro ater-se à lei na sua condução, decidindo as questões procedimentais e de mérito pertinentes, mas não tendo atribuição para analisar questões jurídicas que ultrapassem a possibilidade de um processo administrativo, tal como a alegação de inconstitucionalidade do instituto, ou a necessidade de alguma medida de tutela provisória nos termos do art. 294 e seguintes do NCPC.

Apesar de, nos termos do entendimento pacífico hoje no Direito brasileiro, tratar-se a atividade registral imobiliária de uma atividade administrativa, sendo, desta forma, a usucapião extrajudicial registral também administrativa, a usucapião assim reconhecida continua sendo forma originária de aquisição, embora sujeita à discussão judicial durante o prazo prescricional de eventual pretensão contraposta.

O reconhecimento da aquisição será administrativo, mas a aquisição continua sendo originária, tal qual tivesse sido declarada pela via jurisdicional.

Embora o entendimento no Direito pátrio seja o de tratar-se a função registral de função administrativa, o que pode parecer-nos óbvio dado o pacifismo de tal entendimento entre nós, nunca é demais lembrar que há boa doutrina alienígena que conclui tratar-se a função registral de função jurisdicional, de ato de jurisdição voluntária, por razões que se poderiam também aplicar ao Direito brasileiro, o que permitiria levar ainda mais longe as possibilidades e a extensão da intervenção do Registrador de Imóveis nas questões que versem sobre direitos imobiliários13.

Não é demais lembrar que, embora outrora, no Direito brasileiro, a jurisdição tenha estado sempre vinculada ao Poder Judiciário, processualistas já admitem a quebra desta ilação, asseverando não ser exclusividade do Poder Judiciário o exercício da jurisdição, servido de prova científica de tal assertiva a arbitragem, o que, parece, é encampado pelo NCPC, de modo que aparenta haver um solo cada vez mais fértil à rediscussão do tema da natureza jurídica da atividade registral imobiliária, conferidora de direitos14.

Todavia, não é este o escopo do presente trabalho. Aqui, nos limitaremos a adotar a posição atual da doutrina nacional da natureza administrativa da função registral, e, como consequência, a natureza também administrativa do processo extrajudicial de usucapião.

5. Escopo material de abrangência da usucapião extrajudicial

O processo de usucapião extrajudicial, no seu procedimento comum, pode ser utilizado para qualquer espécie de usucapião imobiliária, na aquisição de qualquer direito real imobiliário passível de ser usucapido.

A usucapião do direito de propriedade decorrente do registro do título de legitimação de posse expedido pelo Poder Público em processo de regularização fundiária de interesse social tem procedimento extrajudicial específico. Para as demais hipóteses aplica-se o procedimento extrajudicial comum de usucapião.

Não há limitação no art 216-A da LRP quanto à espécie de usucapião que possa ser reconhecida pela usucapião extrajudicial, tampouco há alguma incompatibilidade por conta da natureza jurídica de alguma espécie, de modo que qualquer espécie de prescrição aquisitiva pode ser reconhecida extrajudicialmente se presentes os requisitos para tanto.

Qualquer aquisição de direito real imobiliário usucapível poderá ser reconhecida na via extrajudicial, se presentes a posse ad usucapionem pelo tempo adequado, aliada aos demais requisitos eventualmente exigidos, a depender da espécie de usucapião.

Assim, mister se faz analisar quais as espécies de usucapião imobiliário possíveis e quais os requisitos exigíveis para cada uma delas.

Importante lembrar que apesar da redação dos arts. 1.238 e seguintes do Código Civil, não apenas a propriedade pode ser adquirida pela usucapião, mas qualquer direito real suscetível de exercício continuado de posse ad usucapionem.

Para saber qual o direito real que foi usucapido, haverá que perquerir a respeito do animus do possuidor, a respeito da imagem do direito que a posse reflete.

5.1 Momento da aquisição pela usucapião

É pacífico, no Direito brasileiro, o entendimento de que a aquisição de um direito real pela usucapião se dá no momento em que há o implemento material dos requisitos para tanto, a depender da espécie de usucapião que incida sobre a hipótese fática15.

Implementados os requisitos da usucapião, adquirido estará o direito real usucapido.

A natureza jurídica da sentença que reconheça a aquisição é meramente declaratória do direito adquirido, e não constitutiva. Visa apenas possibilitar a aquisição de um título para o registro. Neste sentido é constitutiva, do título registrável.

O registro da usucapião declarada é igualmente declarativo, isto é, não constitui o direito real, como acontece com os direitos reais adquiridos negocialmente, por ato inter vivos.

O registro, embora não o constitua, lhe confere oponibilidade erga omnes, isto é, absolutividade, bem como disponibilidade enquanto um direito real.

Os efeitos da sentença retroagem à data do implemento material da usucapião, o qual foi declarado. No que toca ao registro, os seus efeitos de oponibilidade erga omnes não podem retroagir, passando a existir da data do registro.

Este é o entendimento uníssono no Direito brasileiro a respeito do momento em que se dá a aquisição do direito pela prescrição aquisitiva16.

Todavia, não é óbvia a conclusão, não apenas porque suscita questões intrigantes esta solução, mas também porque há ordenamentos jurídicos onde a solução é diversa.

No ordenamento jurídico português, por exemplo, a aquisição não se dá ipso iure, automaticamente com o implemento dos requisitos materiais da usucapião, devendo a aquisição ser invocada, judicial ou extrajudicialmente. O preenchimento dos elementos essenciais do suporte fático da usucapião, em solo português, apenas faculta a aquisição pela usucapião, a qual dependerá de uma atuação do usucapiente, judicial ou extrajudicial17.

Mesmo no Direito brasileiro, é de se questionar se a solução unanimemente adotada é realmente a mais adequada.

É ela pautada no entendimento de que assim é porque o Código Civil arrola a usucapião dentre as formas de aquisição da propriedade, daí depreendendo-se que ela, por si só, produz o efeito aquisitivo do direito real de propriedade.

Todavia, é de se perceber que nem sempre o labor hermenêutico é assim tão simples. Basta dizer, para comprovar tal assertiva, que o mesmo instituto encontra-se somente entre as causas de aquisição do direito de propriedade, quando é possível adquirir-se outros direitos reais, como, por exemplo, o usufruto.

Não servindo a posse como meio de publicidade em matéria de direitos imobiliários, e sendo necessário, para que haja os efeitos decorrentes da publicidade jurídica, o registro no Registro Imobiliário, pode haver a aquisição de um direito real imobiliário sem o registro?

Se a posse qualificada por certo tempo, com ou sem justo título e boa-fé, é o que basta para adquirir um direito real imobiliário, e se o registro no Registro Imobiliário é que conferirá a tal direito eficácia erga omnes, resta perquerir-se a respeito de que tipo de direito real é este que não produz efeito senão inter partes.

Que espécie de direito real é este que após nascer, pela usucapião, não produz eficácia ultrapartes? Que direito real é este que permanece relativo, quando uma das principais características dos direitos reais é a absolutividade?

Nascerá mesmo o direito real ipso iure com o implemento dos requisitos materiais de consecução da usucapião?

Parece tratar-se não ainda de um direito real, mas de um direito expectativo que precisa implementar-se pelo seu registro.

O direito real, para existir, deve ser absoluto, isto é, deve ser oponível contra todos. Sem esta característica não há direito real.

Não existe juridicamente um direito real se ele não é oponível erga omnes. Trata-se de direito de outra natureza, mas não de um direito real.

A oponibilidade erga omnes dependerá ou do conhecimento efetivo por parte de todos – o que é faticamente impossível –, ou da existência de um meio de publicidade que gere cognoscibilidade.

No caso dos direitos imobiliários, é o registro de imóveis o órgão publicitário apto a gerar tal cognoscibilidade18.

Neste ponto, é pertinente relembrar a lição ministrada por Charles Maynz, segundo o qual “pour qu’un droit existe et puisse agir vis-à-vis de tous les membres de la société, il faut que la société ait concouru à l’établissement du droit et en ait sanctionné l’existence”19.

Assim, sem um meio eficaz de publicidade imobiliária, não se terá um efetivo direito real sobre o imóvel, oponível a terceiros, uma vez que estes o desconhecerão; poder-se-á chamar de direito real, mas em verdade não o será, ou não o será em sua plenitude, por encontrar sérias restrições jurídicas decorrentes da ignorância de sua existência por terceiros20.

Criticava já Teixeira de Freitas, em lição que se aplica à presente análise a respeito da aquisição por usucapião, a tradição tradicional como meio de publicidade, asseverando que ela longe estava de ser um expediente satisfatório, mormente pelo fato de ter a posse sido separada da propriedade, firmando que os direitos reais exigiam publicidade mais eficaz para se fazerem notórios. Demonstrava que até mesmo o Direito francês, que passou a permitir a transmissão da propriedade como efeito do consentimento das partes21, precisou, por lei de 1855, instituir um sistema de publicidade imobiliária, para que os direitos reais sobre imóveis passassem a “valer perante terceiros”22.

E concluía o ilustre autor – em lição que se mantém mais atual do que nunca e que se aplica também à ora discutida aquisição pela usucapião – em relação à interpretação do art. 8º das leis hipotecárias brasileiras de 1864 e 1890:

E como concebe-se, que o direito real só possa existir para com um individuo? O dominio é por sua essencia um, e quando se lhe nega este caracter, certamente não existe domínio. Se o vendedor desde o momento do contracto tem perdido o dominio da cousa vendida, não se concebe tambem, que elle validamente a possa vender segunda vez a outra pessoa, só porque o primeiro comprador não foi diligente em fazer transcrever seu titulo nos registros hypothecarios.

O nosso Direito não luta com taes incoherencias [...]. Reina o salutar principio da tradição, a que estão igualmente sujeitas transmissões da propriedade movel, e immovel; os direitos pessoaes e os direitos reaes não se confundem, e não haverá innovação radical, se a tradição dos immoveis fôr feita por modo uniforme, solemne, e bem notório, qual o da inscripção, ou transcripção nos registros públicos23.

Diante do exposto, parece realmente questionável se no Direito brasileiro a aquisição de um direito real imobiliário pela usucapião se dá automaticamente pelo implemento dos seus requisitos materiais, sendo a sentença e o registro meramente declaratórios.

Todavia, para o escopo deste trabalho, aceitaremos o entendimento unânime existente, e assim trataremos do tema doravante.

É de anotar, finalmente, que, embora haja o entendimento pacífico no direito brasileiro de que a aquisição pela usucapião dá-se ipso iure, é indispensável que o postulante alegue seu direito, seja por via de ação, seja por via de exceção, não sendo possível o reconhecimento de ofício pelo Magistrado24.

5.2 Bens e direitos imobiliários que podem ser usucapidos

No que diz respeito aos bens imóveis que podem ser objeto de usucapião, tem-se que são todos, exceto os que, por sua natureza ou disposição legal, estiverem excluídos, isto é, o ordenamento jurídico não enumera as coisas que podem ser objeto de usucapião, sendo, em princípio, todas as coisas imóveis. A lei, a doutrina e a jurisprudência tratam de definir, ao contrário, aquelas coisas que, por sua natureza ou disposição expressa da norma jurídica, não são suscetíveis de serem usucapidas.

O Código Civil, em seus arts. 79 a 81, define quais são os bens imóveis. O primeiro ponto a desvelar é se qualquer bem imóvel lá definido pode ser objeto de usucapião, e a resposta é negativa.

Somente as coisas imóveis é que podem ser objeto de aquisição pela usucapião – e, da mesma forma, objeto de direitos reais imobiliários, salvo exceção legal.

Coisas imóveis são aqueles bens imóveis corpóreos, materiais, que sejam suscetíveis de apropriação pelo ser humano e tenham para este uma utilidade ou valor econômico, de modo que satisfaçam um interesse seu25.

Tem-se, assim, o primeiro requisito a respeito do bem imóvel usucapível: ele deve ser uma coisa. Uma ação real (art. 80, I, do Código Civil), assim, apesar de ser bem imóvel, não é coisa imóvel, e não é, portanto, passível de ser usucapida.

Além de ser coisa, deve ser coisa hábil, isto é, coisa apta a ser usucapida porque passível de incidir sobre ela os elementos essenciais do suporte fático caracterizador da usucapião.

São inábeis para serem usucapidos, nesse sentido, as coisas imóveis que estejam fora do comércio, bem como as que sejam públicas.

Estão fora do comércio, por exemplo, os bens instituídos como bem de família26 ou os bens inalienáveis27.

No que diz respeito aos bens inalienáveis, não são aptos a serem usucapidos, em princípio, apenas os que assim o forem por disposição legal ou decisão judicial28, não ocorrendo o mesmo com os que sejam inalienáveis por decorrência da vontade humana.

Não podem ser usucapidos, nesse senso, por exemplo, os bens penhorados em execução de dívida ativa da União, suas autarquias e fundações públicas (art. 53 da Lei n. 8.212/91), ou aqueles tornados inalienáveis por decisão judicial, como decorrência do poder geral de cautela de que é dotado o Juiz.

Quanto aos bens gravados de inalienabilidade decorrente de vontade humana exarada em testamento ou doação, a sorte é outra.

A inalienabilidade voluntária somente tem o condão de impedir a alienação também voluntária, derivada, não tendo força para impedir a prescrição aquisitiva, originária que é29, salvo se o usucapiente for o proprietário do bem inalienável, cujo efeito da aquisição originária poderia ser o de fraudar dita cláusula. Neste sentido decidiu o STJ30.

Entendeu o STJ que um imóvel que esteja com sua matrícula bloqueada administrativamente, em decorrência de existência de um vício do processo registral nos termos do art. 214 da LRP, e cujo bloqueio tenha a intenção de congelar a fim de permitir a sanação do vício, não está impedido de ser usucapido, se durante o prazo prescricional aquisitivo nada for feito para que o vício que levou ao bloqueio seja sanado31.

Os bens imóveis públicos também não podem ser objeto de usucapião, nos termos do art. 102 do Código Civil e dos arts. 183 e 191 da Constituição Federal. Nesse sentido, aliás, pacificou já o tema o STF, através de sua Súmula 34032.

Sejam de que espécie forem, os bens públicos, segundo entendimento atual, não podem ser objeto de usucapião, ainda que se trate de bens dominicais ou de terras devolutas33.

O fato de imóvel estar situado em faixa de fronteira não tem, por si só, o condão de torná-lo público, de maneira que tal fato não impede a aquisição pela usucapião34. Da mesma forma, a inexistência de matrícula do bem imóvel e de registro acerca da sua propriedade, no Registro de Imóveis com atribuição para tal, não gera presunção em favor do Estado de que se trata de imóvel público (terras devolutas), de modo que não há impedimento ao reconhecimento da aquisição pela usucapião, salvo se o Estado provar ser propriedade pública35.

Apesar de não serem passíveis de usucapião os bens públicos, nenhum óbice há para a usucapião do domínio útil em aforamento já constituído sobre bem público, na medida em que a situação do bem público não se altera, havendo apenas uma substituição do enfiteuta, não trazendo, assim, qualquer prejuízo ao Estado, conforme já decidiu o STJ36.

Convém anotar que nesta hipótese, por se tratar de aquisição originária do domínio útil, não será devido laudêmio.

Não há óbice à usucapião de bens pertencentes a sociedades de economia mista, consoante assentou o STJ37.

Não podem ser usucapidas as coisas acessórias sem que seja usucapida também a principal, de modo que não pode ser usucapida a construção (acessão artificial) sem que seja usucapido também o terreno sobre o qual repousa, salvo, evidentemente, se o direito espelhado pela posse for de uma propriedade superficiária, caso em que a acessão passará a ser a coisa principal deste direito, e não mais acessória.

Na hipótese de coisa imóvel comum, seja em relação ao condomínio comum, seja em relação às partes comuns do condomínio edilício, em que há tolerância de uso por todos os condôminos, somente é possível falar-se em possibilidade de usucapião quando a mutação deste exercício de um ato de tolerância em uma posse própria for excludente dos demais condôminos38.

Como se trata de aquisição originária, preenchidos os requisitos para a aquisição do direito real pela usucapião, e sendo a coisa hábil, não incidirão certas limitações incidentes sobre as transmissões derivadas.

Nesse senso, tratando-se de imóvel rural, nada impede que seja usucapido, por exemplo, imóvel com área inferior à fração mínima de parcelamento. Por ser aquisição originária, decorrente da posse qualificada, por certo tempo, não incide a vedação decorrente do art. 65 da Lei n. 4.504/64.

O mesmo ocorre com a aquisição pela usucapião de um lote em um parcelamento do solo clandestino, isto é, que não existe juridicamente, ou de uma unidade autônoma de um condomínio horizontal também juridicamente inexistente, porque não registrada a sua instituição no Registro Imobiliário.

Em todos esses casos, nenhum óbice haverá para o reconhecimento judicial da aquisição pela usucapião e, nos dois primeiros exemplos – da área rural inferior ao módulo mínimo de fracionamento, e do lote de um loteamento/desmembramento juridicamente inexistente –, nenhum óbice haverá para o registro, eis que a questão é meramente material, de possibilidade material da ocorrência da usucapião, não havendo óbice formal para o registro.

Desta forma, há a possibilidade, nestes casos, de reconhecimento da usucapião na esfera extrajudicial, na medida em que o acolhimento do pedido implicará a prática do ato registral consequente, e nenhum óbice haverá para tanto.

Diferente é o caso da usucapião da unidade autônoma juridicamente inexistente. Enquanto o lote inexistente pode ser usucapido, não como um lote de loteamento inexistente, mas como uma porção de solo, a unidade autônoma não pode existir sozinha, sem a instituição do condomínio, porque cada unidade autônoma só pode existir como tal quando coexistente com as demais, cada qual com sua fração ideal no solo e nas coisas de uso comum.

Neste caso, é possível o reconhecimento judicial da aquisição, mas não é possível o seu registro enquanto não houver o registro de instituição do condomínio edilício, e, desta forma, fica impossibilitado o seu reconhecimento extrajudicialmente.

Na lição de Pontes de Miranda, o objeto da usucapião é o objeto da posse, e tratando-se de usucapião extraordinária o objeto da posse o é até onde corresponda o título39.

Apesar da redação dos arts. 1. 238 a 1.241 do Código Civil, que podem induzir em erro o intérprete, não apenas o direito de propriedade pode ser objeto da aquisição por usucapião.

“Todos os direitos reais que tenham por seu pressuposto o direito à posse com função de fruição são passíveis de usucapião”40.

Assim, as servidões aparentes, o usufruto, o uso, a habitação e o domínio útil também poderão ser objeto de usucapião. Haverá que se perquirir a respeito de que direito real é refletido na posse daquele que adquire pela usucapião, porque será este direito adquirido.

O direito real de hipoteca, por exemplo, ao contrário, não pode ser usucapido, porque nele não há direito à posse do bem hipotecado.

A intenção objetivamente apreendida do possuidor é que caracterizará o direito real adquirido originariamente pela usucapião.

“O que caracteriza a possibilidade de haver usucapião não é o fato de se estar em uma situação análoga à do proprietário em relação ao bem, mas o fato de haver uma específica intenção exercida no ânimo do sujeito. A intenção de possuir como titular do direito real referido é que caracteriza, de modo claro e objetivo a situação de qual direito real se está a usucapir”41.

Eis porque parece inadequado falar-se em animus domini como um dos elementos essenciais caracterizadores da usucapião.

5.3 Usucapião ordinária

5.3.1 Tradicional

A usucapião ordinária é a forma de aquisição originária da propriedade decorrente da prescrição aquisitiva prevista no art. 1.242 do Código Civil.

Para que se configure a aquisição da propriedade pela usucapião ordinária, deve haver a ocorrência de quatro elementos essenciais: (1) posse mansa, pacífica e ininterrupta, com ânimo de titular do direito real usucapido, pelo (2) prazo legal; (3) justo título; e (4) boa-fé.

O primeiro dos elementos é a posse.

Na usucapião, o fato principal que leva à aquisição do direito é a posse, “suficiente para originàriamente se adquirir; não, para se adquirir de alguém”, conforme ensina Pontes de Miranda42.

A posse é questão fática, que não se confunde com a crença no justo título ou na causa de adquirir, nem com o próprio justo título. “Podem existir o justo título e a crença, sem existir a posse própria, ou qualquer posse. Podem existir a posse e o título, sem existir crença. Podem existir a crença e a posse, sem existir o título. Pode existir o título, sem existirem a crença e a posse; ou a posse sem existirem o título e a crença; ou a crença, sem existirem posse e título”43.

Sendo a usucapião uma aquisição da propriedade ou de outro direito real usucapível em decorrência da posse, há que se distinguir esta da mera detenção, que não conduz à usucapião.

Sendo a mera detenção um exercício em nome de outrem, o possuidor direto, na medida em que o detentor atua em nome alheio, como ocorre, por exemplo, na hipótese de caseiro, não há possibilidade de isso conduzir à usucapião, salvo se houver alguma alteração nas circunstâncias fáticas, e a detenção transformar-se em posse, com exclusão do possuidor direto44.

Não é qualquer posse que dá direito à usucapião, mas tão somente aquela posse que contém certas características específicas, a chamada posse ad usucapionem.

A posse ad interdicta, isto é, aquela posse despida das características que marcam a posse ad usucapionem, confere direito à utilização da coisa bem como à proteção possessória, mas não confere a possibilidade da aquisição pela usucapião.

A posse ad usucapionem é uma posse qualificada.

As características que definem a posse como ad usucapionem, isto é, como aquela posse apta a conduzir à aquisição da propriedade pela usucapião, são as de ser uma posse justa, com ânimo de titular do direito real, que seja mansa e pacífica, e contínua.

A posse deve, em primeiro lugar, ser justa, isto é, não decorrer de violência – física ou moral, ou esbulho –, clandestinidade – obtida às escondidas, de maneira oculta – ou precariedade – obtida com abuso de confiança ou de direito.

A posse injusta não produz efeitos para fins de usucapião.

Nos termos do art. 1.208 do Código Civil não induzem posse os atos violentos ou clandestinos, somente depois de cessar a violência ou a clandestinidade.

A posse injusta por violência ou clandestinidade podem, assim, ser convalidadas, após a cessação da violência ou da clandestinidade, quando, então, alterada sua natureza, passarão a produzir efeitos para fins de usucapião.

O mesmo não ocorre com a posse injusta por precariedade, a qual não pode ser convalidada, mantendo seu caráter injusto e não produzindo efeitos para fins de usucapião.

Deve a posse ser exercida sem oposição do titular do direito real que se pretende adquirir, de modo que não pode dito titular ter tomado providência judicial ou extrajudicial45 contra a posse exercida pelo usucapiente.

A oposição, judicial ou extrajudicial, que não surtiu efeito, como, por exemplo, alguma ação possessória julgada improcedente, não terá o condão de tirar o caráter de mansa e pacífica da posse, nem de interromper o prazo prescricional, conforme entendimento do STJ46.

Nesse sentido, alerta Marco Aurélio Bezerra de Melo, que se “houver uma oposição, por meio da autotutela que tenha sido ineficaz em razão da resistência do alegado esbulhador ou de tutela judicial julgada improcedente, não se configurou a oposição apta a afastar a usucapião”47.

Deve ainda a posse ser contínua, ininterrupta, isto é, deve o possuidor ter possuído a coisa a usucapir durante todo o lapso temporal exigido pela lei, sem solução de continuidade.

Não é possível somar-se lapsos temporais possessórios para o fim de alcançar o prazo legal. O prazo deve ter sido atingido de uma só vez, ininterruptamente. Se foi interrompido, recomeçará um novo prazo prescricional caso reinicie a posse.

Não quer isto dizer que o possuidor deva ter sempre a apreensão física direta da coisa, que deva ter domicílio ou residência no imóvel. Se a pessoa não mora nem trabalha no local, ou mudou-se, pode ainda assim manter a posse ininterrupta, desde que continue a exercer atos possessórios, desde que continue a dar à coisa a sua destinação econômica, desde que continue, enfim, sendo possuidor.

No caso de esbulho, para evitar a interrupção, deverá promover esforços para recuperar a posse, seja pela força (art. 1.210, § 1º, do Código Civil), seja pela ação de reintegração de posse.

A ação possessória exitosa interposta dentro de ano e dia pelo possuidor ad usucapionem esbulhado tem o condão de fazer com que não haja interrupção da posse e com que o período do esbulho seja computado no prazo possessório.

Para a continuidade da posse permite-se que haja a sucessão possessória, sem que isto importe em solução de continuidade. Para tanto, mister se faz que tanto a posse do antecessor quanto a do sucessor sejam ad usucapionem, e que ambos tenham justo título e boa-fé.

Para que possa haver sucessão na posse, faz-se necessário que o possuidor sucedido, bem como aquele que sucedeu, tenha posse de mesma natureza, contendo os elementos exigidos para a espécie de usucapião.

Fosse outra a espécie de usucapião, que não a ordinária, ora analisada, e que exigisse alguma posse qualificada pelo trabalho, por exemplo, para que fosse possível a sucessão, a título singular ou universal, ambos, sucessor e sucedido, deveriam ter posse de mesma qualidade.

A sucessão pode ser a título singular, nos termos dos arts. 1.207 e 1.243 do Código Civil. É a accessio possessionis, a qual não é solene, podendo ser escrita, pela forma pública ou particular, ou verbal.

A accessio possessionis não é automática, tampouco obrigatória. Trata-se de faculdade que cabe ao sucessor na aquisição a título singular.

A sucessão possessória pode ser também a título universal, quando então se chamará successio possessionis, prevista no art. 1.207 do Código Civil. É o caso do herdeiro, por exemplo, que continua a posse do falecido.

Aqui não há opção: a continuação da posse é uma decorrência legal, para a qual não importa a vontade do sucessor. O sucessor, por certo, recebe a posse que tinha o sucedido.

O herdeiro passa a ter a posse que o de cujus tinha. Só não a tem se a tomaram depois da morte do de cujus.O herdeiro não necessita saber da sucessão ou mesmo da posse que tinha o de cujus, podendo até mesmo usucapir sem o saber48.

Costuma-se indicar na doutrina e na jurisprudência que a posse, para ser ad usucapionem, deve ser exercida com animus domini, isto é, com ânimo de proprietário, o que se trata de cacoete que permanece entre nós e que decorre da má redação do texto civil, que leva ao possível e equivocado entendimento de que somente o direito de propriedade pode ser usucapido, o que não corresponde à verdade.

Qualquer direito real que esteja sujeito à uma posse pública e contínua pode ser usucapido, exceto os direitos reais de garantia.

Assim, podem, por exemplo, ser usucapidas outras formas de propriedade que não a plena, como, por exemplo, a nua propriedade ou a propriedade superficiária, o usufruto, as servidões aparentes, o uso, o domínio direto etc.

Desta forma, parece mais correto falar em ânimo de titular do direito usucapido, isto é, a posse deve ser exercida de modo a que o possuidor a exerça como se fosse o titular do direito que pretende usucapir, o que será evidenciado pelos sinais externos da posse, e deverá ser analisado caso a caso. É o animo suo, a que se refere, tecnicamente com mais acerto, Luciano de Camargo Penteado49.

Mais feliz e adequada nesse sentido é a expressão portuguesa, de que a posse deve ser à imagem do direito real a ser usucapido50.

Estão excluídas, por este critério, todas aquelas posses que decorrem de uma relação obrigacional subjacente, como a locação ou o comodato, por exemplo51, salvo se houver a modificação do caráter possessório no decorrer da relação jurídica, de modo a evidenciar que passou a haver uma posse com ânimo, não mais de locador ou comodatário, mas de titular de um direito real52.

O possuidor ad usucapionem deve ter capacidade para adquirir, diz parte da doutrina53. Parece, todavia, que não se faz necessária tal capacidade pois não se trata de aquisição decorrente de negócio jurídico, mas sim decorrente de posse por certo lapso de tempo. Na medida em que a posse é ato real, ato-fato, portanto, não há nela qualificação da vontade, de modo que o possuidor a adquire uma vez preenchidos os requisitos, tenha ou não capacidade aquisitiva negocial.

Melhor andou Lenine Nequete, ao asseverar que também podem adquirir por usucapião os incapazes, por intermédio de seus representantes54.

A falta de capacidade de adquirir do possuidor, quando muito, desqualifica o justo título por nulidade.

Não basta que haja uma posse ad usucapionem, sendo necessário que ela perdure pelo prazo legal exigido para a espécie de usucapião invocada.

O lapso temporal, pelo qual a posse deve desenvolver-se para conduzir à aquisição pela usucapião, na espécie ordinária tradicional é o de 10 anos, nos termos do art. 1.242, caput, do Código Civil.

Nada obsta que o prazo se complete no curso do processo, judicial ou administrativo, ressalvada a hipótese de ma-fé processual do autor, conforme ficou assentado no enunciado n. 497 da V Jornada de Direito Civil, e que nos parece correto.

Tendo havido, por ocasião da entrada em vigor do atual Código Civil, redução de prazo prescricional aquisitivo em relação ao Código Civil anterior, e tendo transcorrido menos da metade do tempo estabelecido no Código de 1.916, o termo inicial da prescrição aquisitiva será o da data da entrada em vigor do Código de 200255.

O art. 1.244 do Código Civil determina que se aplique à usucapião as causas que obstam, interrompem ou suspendem o prazo da prescrição extintiva, as quais estão previstas nos arts. 197 a 202 do Código Civil.

Na obstação ou impedimento o prazo prescricional sequer começa a correr, como acontece, por exemplo, entre ascendentes e descendentes durante o poder familiar (art. 197, II, do Código Civil), de modo que não haverá início de prazo para usucapião durante tal período.

A suspensão implica parar o prazo que está correndo, para, depois, continuá-lo de onde parou.

Na interrupção, o prazo é parado para então recomeçar do início, servindo de exemplo o despacho do Juiz, mesmo que incompetente, determinar a citação em ação contra o possuidor que tenha o condão de elidir o caráter manso e pacífico da posse (art. 202, I, do Código Civil)56.

O terceiro elemento exigido para a declaração da usucapião ordinária é o do justo título.

Trata-se o justo título de instrumento hábil para transmitir o domínio ou outro direito real passível de ser usucapido, e que esteja formalmente em ordem, isto é, que esteja intrinsecamente apto a transmitir o direito real pretendido, embora padeça de um vício extrínseco.

São justo título os instrumentos de atos jurídicos cujo adimplemento tenha o condão de transmitir ou constituir um direito real prescritível, tais como a escritura de compra e venda, a escritura de permuta, a carta de arrematação, a carta de adjudicação, o compromisso de compra e venda quitado57 etc.

Tem-se entendido que é justo título todo ato jurídico hábil, abstratamente considerado, a transferir ou constituir um direito real passível de usucapião, esteja registrado ou não58, incluindo-se o compromisso de compra e venda quitado59.

Decidiu o STJ que: “Por justo título, para efeito da usucapião ordinária, deve-se compreender o ato ou fato jurídico que, em tese, possa transmitir a propriedade, mas que, por lhe faltar algum requisito formal ou intrínseco (como a venda a ‘non domino’), não produz tal efeito jurídico. Tal ato ou fato jurídico, por ser juridicamente aceito pelo ordenamento jurídico, confere ao possuidor, em seu consciente, a legitimidade de direito à posse, como se dono do bem transmitido fosse (cum animo domini)”60.

Não pode ser verbal, portanto, o título justo, da mesma forma que não pode ser inválido por nulidade, o que afastaria sua justeza. Pode ser anulável61.

Nesse sentido, decidiu o STJ não ser justo título uma venda fraudulenta de ascendente para descendente, sem o consentimento dos demais descendentes, a qual por ser anulável não poderia ser considerada justo título para fins de usucapião ordinária62.

O título putativo não basta, pois se não existe não pode ser justo63.

Por fim, a boa-fé faz-se necessária para o implemento da usucapião ordinária.

Trata-se de boa-fé subjetiva, consistente no estado de ignorância, derivado de um erro escusável, em que se encontra o usucapiente a respeito do vício que lhe impede a aquisição do direito real pretendido64.

Tem a boa-fé íntima ligação com o justo título, mas com ele não se confunde.

A crença subjetiva de que se adquiriu o direito, ou, melhor, a ignorância a respeito do vício que impede a aquisição do direito, geralmente deriva do justo título que se tem, porém não se confundem.

Pode haver justo título sem boa-fé, porque a pessoa não ignora o vício extrínseco existente no título, assim como pode haver boa-fé sem haver justo título, porque há um vício de nulidade, por exemplo.

O Código Civil, em seu art. 1.201, parágrafo único, faz presumir a boa-fé daquele que tem justo título, no seguintes termos: “O possuidor com justo título tem por si a presunção de boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite esta presunção”.

5.3.2 Usucapião ordinária com prazo reduzido

Segundo dispõe o parágrafo único do art. 1.242, do Código Civil, o lapso temporal de posse ad usucapionem na usucapião ordinária fica reduzido para 5 anos se “o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico”.

Trata-se de prescrição aquisitiva cujo foco principal situa-se na confiança depositada em registro cancelado aliada a uma posse para moradia ou da qual tenha decorrido investimentos de interesse social ou econômico.

Conforme anota Melhim Namrm Chalhub, trata-se de seguir uma tendência de reforço da posição do adquirente registral de boa-fé e da segurança jurídica, apresentando-se tal usucapião como forma de proteger o adquirente que confiou no registro65.

Exige-se, para que o prazo da usucapião ordinária seja reduzido para 5 anos, os mesmos requisitos da usucapião ordinária tradicional, quais sejam, a posse ad usucapionem, o justo título e a boa-fé, além dos requisitos especiais exigidos pelo dispositivo legal especial.

Na medida em que há aqui a necessidade de que a aquisição do direito tenha se dado mediante registro posteriormente cancelado, os requisitos do justo título e da boa-fé restam bastante tranquilos, eis que, o título, se foi registrado, será justo, e do registro será presumida também a boa-fé.

Se alguém adquire certo bem mediante registro de determinada escritura de compra e venda, e depois o registro é cancelado, obviamente que tal título é justo, e por certo que a boa-fé será presumida, senão de maneira absoluta, de maneira juris tantum bastante robusta, tudo como decorrência das próprias qualidades do Registro Imobiliário, de depurador jurídico dos direitos publicizados, de fiscal jurídico das situações jurídicas submetidas a registro.

O título registrado será justo ainda que se trate de compromisso de compra e venda, desde que esteja o preço quitado66.

Apesar de presumida a boa-fé, pode ser provada a má-fé diante de uma análise da conduta do adquirente.

O prazo da usucapião ordinária será, desta forma, reduzido pela metade se o usucapiente tiver adquirido o imóvel com base em registro constante no Registro Imobiliário, cancelado posteriormente à aquisição, como forma de prestigiar aquele que confiou na informação oficial ofertada pelo Estado por meio de um agente delegado seu.

O cancelamento do registro, para fins da redução do prazo da aquisição pela usucapião ordinária, como bem anota Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento Filho67, pode ser tanto com fundamento no art. 214 quanto no art. 216 da LRP, isto é, pode ser com fundamento em vício do próprio procedimento de registro, ou por vício na causa do registro, reconhecido na esfera administrativa ou na jurisdicional. Pouco importa qual o fundamento do cancelamento. O que importa é que haja cancelamento do registro que gerou a aquisição do direito, o que levaria, em tese, à perda do direito, uma vez que nosso sistema é relativamente causal.

Pouco importa também que o registro cancelado seja, diretamente, o do próprio adquirente, bastando que o cancelamento direto leve também ao cancelamento do registro do usucapiente.

O cancelamento de um ato de registro leva ao cancelamento de toda a cadeia registral posterior, calcada no ato registral cancelado.

O ato de registro a ser cancelado é o ato que gerou a aquisição do direito, ato registral lato sensu, pouco importando se se trata, na espécie, de ato de averbação ou de ato de registro stricto sensu68.

Para a redução, será exigido também um elemento adicional da posse, o de que tenha ela sido utilizada para moradia do possuidor, ou que tenha ele realizado investimentos no imóvel de interesse social ou econômico.

Basta que o usucapiente more no imóvel usucapiendo, ou que o explore economicamente, seja para fins urbanos, seja para rurais, não se lhe exigindo que o investimento social ou econômico seja de grande monta. Bastará, por exemplo, que alugue ou arrende o imóvel69.

Havendo os requisitos exigidos, o prazo da usucapião ordinária será reduzido para 5 anos.

Será necessário, neste caso, que haja 5 anos de posse ad usucapionem especial, qualificada pela moradia ou pelo investimento de interesse social ou econômico, que deve coincidir com 5 anos de registro do título, isto é, deve haver 5 anos de posse ad usucapionem qualificada70 com registro.

Este prazo será aumentado em 2 anos em prazos de prescrição completados até 2 anos depois da entrada em vigor do atual Código Civil, por força do disposto no art. 2.02971.

Leciona Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento Filho, no que nos parece acertar, que, ao contrário do que leva a crer a redação do dispositivo legal ora em comento, não há necessidade de se esperar que o registro seja cancelado para que se possa ver reconhecida a aquisição pela usucapião.

É que o § 5º, do art. 214, da LRP, reconhece o direito daquele que preencheu os requisitos para a usucapião de vê-lo reconhecido, de modo a impedir a anulação do registro72.

Não faria sentido exigir-se o prévio cancelamento do registro para admitir que aquele que usucapiu pudesse pleitear o reconhecimento da aquisição, quando, embora ainda não tendo havido o cancelamento, verificou-se já haver algum vício que pode levar a tal cancelamento. É de se admitir, em tal caso, a atuação cautelar.

Solução contrária seria antijurídica e antieconômica.

5.4 Usucapião extraordinária

5.4.1 Usucapião extraordinária tradicional

O caput do art. 1.238 do Código Civil reconhece a usucapião extraordinária em sua forma tradicional.

Trata-se de espécie de usucapião em que há a aquisição do direito real imobiliário sem que haja necessidade de que se façam presentes o justo título e a boa-fé. Podem até existir, mas são despiciendos para a aquisição pela usucapião.

Basta, para esta espécie, que haja a posse ad usucapionem pelo prazo de 15 anos, valendo a respeito da posse tudo o que foi acima dito quando da análise da usucapião ordinária tradicional.

5.4.2 Usucapião extraordinária com prazo reduzido

O mesmo art. 1.238 do Código Civil, em seu parágrafo único, estabelece que o “prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo”.

Havendo posse ad usucapionem qualificada pela utilização do imóvel para moradia, ou pela realização de obras ou serviços de caráter produtivo – razão pela qual costuma ser conhecida por posse trabalho73 –, haverá redução do prazo prescricional de 15 para 10 anos.

Também aqui o prazo é aumentado em 2 anos para prazos prescricionais aquisitivos encerrados em até 2 anos da entrada em vigor do atual Código Civil, nos termos do disposto no art. 2.029.

5.5 Usucapião especial urbana

5.5.1 Usucapião especial urbana individual

A usucapião especial urbana individual, também conhecida por usucapião constitucional urbana ou usucapião pro misero, encontra-se positivada em nosso ordenamento jurídico no art. 183 da Constituição Federal74, no art. 1.240 do Código Civil75 e no art. 9º da Lei n. 10.257/200176.

O primeiro requisito para esta espécie de ususcapião é o de se tratar de adquirir direito de propriedade sobre imóvel urbano de até 250 metros quadrados.

Embora haja limite máximo para a área a ser por esta espécie usucapida, não há limite mínimo. Desde que a área permita o implemento dos requisitos materiais da espécie de usucapião em questão, possível será a aquisição de área inclusive inferior ao limite mínimo para parcelamento urbano, definido infraconstitucionalmente77.

O imóvel urbano pode consistir em terreno nu ou edificado, inclusive em unidade autônoma de condomínio edilício78, desde que atenda aos requisitos necessários à espécie de prescrição aquisitiva, em especial, o de que sirva para moradia do usucapiente ou de sua família.

Se um terreno não edificado atender aos requisitos necessários, porque, por exemplo, o possuidor nele mora com sua família em uma barraca, embora não tenha o terreno uma acessão, será o terreno nu também passível de submeter-se a esta espécie prescritiva positiva.

Em se tratando de condomínio edilício, a área a ser levada em consideração será a área total da unidade, que engloba a sua área privativa somada à área proporcional de uso comum, e não apenas a área privativa. É que não é possível desvincular a unidade autônoma da sua fração ideal no terreno e nas demais coisas de uso comum do condomínio, de modo que aquele que adquire uma unidade autônoma não adquire apenas a área privativa de dita unidade, mas também a área de uso comum correspondente (garagens, armários, piscina, gramado etc.), a qual integra a área de uso da unidade para fins de moradia79.

Não sendo urbano o imóvel, ou sendo, mas tendo área superior a 250 metros quadrados80, afastada estará de plano a possibilidade da usucapião constitucional urbana.

Ao limitar a área do imóvel a ser usucapido por esta forma a 250 metros quadrados, aparece claramente a conotação social que se pretendeu dar aos casos em que se pudesse utilizar esta via dotada de certas facilidades materiais.

Decorre desta mesma conotação social a exigência de uma posse ad usucapionem qualificada, eis que, além dos seus caracteres regulares, deverão estar presentes também a utilização para moradia do possuidor ou de sua família.

Pretende-se, com esta usucapião de cunho social, conceder mais facilmente moradia àquelas pessoas menos afortunadas, que possuírem para moradia sua ou de sua família imóveis urbanos com áreas mais modestas.

Disso decorre a exigência de que o possuidor não seja proprietário de outro imóvel, urbano ou rural, bem como que não tenha já sido contemplado com aquisição de direito de propriedade por esta via.

Ademais, decorre ainda a exigência de que haja verdadeiro animus domini, uma vez que somente a propriedade poderá ser adquirida por esta via de prescrição aquisitiva, conforme decorre não apenas da natureza jurídica do instituto, mas da própria dicção legal.

Todavia, não é apenas a propriedade plena que pode ser adquirida, mas também a propriedade superficiária de edificação, consoante decorre da autorização contida no caput do art. 9º da Lei n. 10.257/2001.

Sendo usucapida a propriedade superficiária de edificação, esta não poderá ter área superior a 250 metros quadrados, incidindo na mesma limitação aplicável ao terreno assim usucapido81.

Presentes todos os elementos acima colhidos, o prazo para aquisição é bastante reduzido, adquirindo-se a propriedade em 5 anos.

5.5.2 Usucapião coletiva

A usucapião coletiva, espécie de usucapião especial urbana, é instituto tratado no art. 10 da Lei n. 10.257/200182, e, consoante adverte Francisco Eduardo Loureiro, é instituto que não pode ser analisado sob o prisma exclusivo do direito civil, porque seu propósito não é o de apenas criar uma nova forma de aquisição da propriedade, mas, especialmente, de criar uma nova forma de regularização fundiária, de ordenação urbana83.

Trata-se de forma originária de aquisição de propriedade coletiva, em regime de copropriedade.

É espécie de usucapião constitucional, de modo que as áreas individuais de posse (das frações ideais de cada um) não podem superar a área de 250m², embora a soma delas deva superar tal área para que se possa aplicar a espécie aquisitiva em análise.

Nos casos em que população de baixa renda tenha composse de certo imóvel com área superior a 250 metros quadrados, nas mesmas condições da posse exigida na usucapião especial urbana, em que não seja possível individualizar a área possuída por cada um, haverá a possibilidade de ser reconhecida a aquisição da propriedade, na verdade a copropriedade, pela usucapião coletiva, cujo prazo de posse é também o mesmo prazo de 5 anos da usucapião constitucional urbana.

Sendo possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, a hipótese será de usucapião constitucional individual, e não coletiva.

Nesta espécie de prescrição aquisitiva exige-se que os possuidores sejam de baixa renda, o que na usucapião constitucional individual é presumido quando houver o preenchimento dos demais requisitos exigidos, não havendo necessidade de ser provado.

O produto desta usucapião é a formação de um condomínio, no qual cada usucapiente receberá a propriedade de uma fração ideal de terreno de igual tamanho, salvo hipótese de acordo escrito entre os condôminos estabelecendo frações ideais diferenciadas84, sendo o condomínio formado, em princípio, indivisível do ponto de vista do direito de propriedade, embora possa ser pro diviso do ponto de vista possessório.

Entretanto, sendo a coisa física e juridicamente divisível, podem os coproprietários dividirem-na, mediante aprovação de, no mínimo, 2/3. Ordinariamente, a extinção de condomínio exige a unanimidade dos condôminos, todavia, nesta hipótese, a lei permitiu a extinção mediante quorum de 2/3.

5.5.3 Usucapião familiar

O art. 1.240-A do Código Civil, inserido pela Lei n. 12.424/2011, criou uma nova espécie de usucapião especial urbana: a usucapião familiar, ou usucapião especial urbana por abandono de lar.

Tem o escopo de proteção do cônjuge abandonado ou privado “de assistência material e do sustento da moradia, mantém-se no imóvel e se responsabiliza pelos respectivos encargos”85.

Trata-se da espécie de usucapião com o menor prazo de posse exigido para a aquisição do direito: 2 anos, o qual deve ser contado por inteiro a partir da alteração legislativa que inseriu esta espécie de usucapião no ordenamento jurídico, qual seja a Lei n. 12.424/201186.

Assim como ocorre com as demais espécies de usucapião especial urbana, também nesta o direito usucapido será o da propriedade, uma vez que trata-se de espécie também facilitada de usucapião, com o intuito de moradia.

Da mesma forma, aplica-se a imóveis urbanos com área de até 250 metros quadrados.

Podem dela valer-se aqueles que viviam em uma relação familiar, seja de casamento, seja de união estável, homo ou heteroafetiva, na qual o outro cônjuge/companheiro abandonou o lar, e o cônjuge/companheiro remanescente continuou a utilizá-lo para sua moradia ou de sua família.

Como a lei exige que o bem esteja sendo utilizado para moradia do (ex)cônjuge ou (ex)companheiro ou de sua família, há necessidade de que haja posse direta87 dos moradores, isto é, há necessidade de que haja poder fático sobre a coisa, o que exige a moradia, e que, aliás, está expresso no dispositivo legal regulamentador do instituto, embora nem houvesse necessidade de disposição expressa nesse sentido.

Vê-se que não basta a posse ad usucapionem comum, exigindo-se-lhe a utilização para moradia sua ou de sua família, portanto, com posse direta (poder de fato) de tais pessoas, de modo que não é possível, por exemplo, que o bem esteja locado a terceiro.

Havendo “disputa, judicial ou extrajudicial, relativa ao imóvel, não ficará caracterizada a posse ad usucapionem”. “Eventualmente, o cônjuge ou companheiro que abandonou o lar pode notificar o ex-consorte anualmente, para demonstrar o impasse relativo ao bem, afastando o cômputo do prazo”88.

Aludido dispositivo legal assevera que, para que haja a incidência dessa espécie de prescrição aquisitiva, há a necessidade de tratar-se da “propriedade dividida com o ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar”.

O dispositivo é atécnico e reclama esclarecimentos.

A palavra propriedade está aí no sentido de coisa imóvel.

A exigência de que a coisa fosse dividida deve ser entendida em sentido leigo, querendo significar que há necessidade de que os cônjuges/companheiros nela vivessem.

As expressões ex-cônjuge e ex-companheiro também devem ser bem compreendidas, na medida em que não devem ser entendidas necessariamente em seu sentido técnico, de pós-divórcio ou pós-extinção da união estável.

Parece-nos que essa hipótese de usucapião tem cabimento também em relação àquelas situações de separação de fato por abandono do lar, seja em casamento, seja em união estável, em que ainda não há extinção formal do casamento/união estável.

Deve haver um entendimento fático das expressões, no sentido de separação de fato, como, aliás, entendeu o enunciado n. 501 do CJF/STJ da V Jornada de Direito Civil.

Por fim, a expressão abandonou o lar também merece atenção.

Poderia induzir em erro vinculando a situação aos casos de dissolução culposa do vínculo familiar, o que não é o caso. Ela também está mais para um sentido leigo de abandono do que em um sentido técnico de saída do lar conjugal, de modo que o (ex)cônjuge ou (ex)companheiro abandona o lar, antes ou depois da extinção do casamento ou da união estável, quando deixa de dar ao imóvel sua destinação econômica, deixando-o entregue à sorte daquele outro (ex)cônjuge ou (ex)companheiro que permaneceu no imóvel, usando-o como moradia sua ou de sua família, arcando totalmente com as despesas do imóvel, e sem que tenha qualquer relação com a outra parte, como, por exemplo, por meio de um contrato de mútuo ou de locação.

Não se inclui, certamente, no conceito de abandono do lar os casos de expulsão do lar.

Para que possa haver a usucapião, obviamente, mister se faz que a coisa imóvel integrasse um regime de comunhão – decorrente, por exemplo, de um casamento pelo regime da comunhão universal de bens –, ou de condomínio – em um casamento pelo regime da separação convencional de bens, por exemplo, em que ambos os cônjuges adquirem em condomínio comum –, ou pertencesse integralmente ao outro cônjuge/companheiro.

Também, para que possa ser reconhecida esta aquisição, não poderá ter havido já algum prévio reconhecimento deste mesmo direito, ademais de não poder o usucapiente ser proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

5.6 Usucapião especial rural

A usucapião especial rural, também chamada de usucapião constitucional rural ou usucapião pro labore, encontra-se prevista no art. 1.239 do Código Civil89, e no art. 191 da Carta Magna90.

Trata-se de espécie de usucapião aplicável a imóveis rurais cuja área não exceda a 50 hectares, isto é, a 50.000 metros quadrados.

Embora haja limite máximo para a área a ser usucapida pela usucapião especial rural, não há limite mínimo, desde que implementados os seus requisitos implementadores, de modo que é possível reconhecer-se tal espécie de usucapião ainda que a área usucapida seja inferior ao módulo mínimo de parcelamento definido na legislação agrária para a região em que se localize, conforme decidiu o STJ91.

O enunciado n. 313 do Conselho da Justiça Federal/STJ, exarado nas Jornadas de Direito Civil, assevera que quando “a posse ocorre sobre área superior aos limites legais, não é possível a aquisição pela via da usucapião especial, ainda que o pedido restrinja a dimensão do que se quer usucapir”, sob o argumento de que haveria um venire contra factum proprium, na medida em que a pessoa, de maneira inesperada, alteraria sua posse para diminuir o prazo prescricional, surpreendendo o proprietário do imóvel contrariamente à boa-fé objetiva.

Parece-nos adequado tal enunciado92.

Trata-se de um benefício aquisitivo para aquele que dá ao imóvel rural a sua função econômica, sendo o prazo para usucapir de 5 anos, bastante reduzido portanto.

Por esta razão, o ordenamento jurídico neste caso não aceita também a simples posse ad usucapionem, exigindo que seja ela qualificada por elementos suplementares, quais sejam, o de que a posse exercida seja para fins de moradia e de tornar o imóvel produtivo, mediante atividades agropecuárias sua ou de sua família.

A posse para conduzir a esta espécie de usucapião precisa ser desenvolvida no sentido de dar ao imóvel rural destinação de moradia do usucapiente ou de sua família, aliada ao desenvolvimento de atividade agrícola, pecuária ou extrativista, tornando produtiva a terra por força do seu trabalho, isto é, dando-lhe a sua destinação econômica.

Também nesta hipótese de usucapião somente o direito de propriedade pode ser adquirido, exigindo-se o animus domini.

5.7 Usucapião especial indígena

Trata-se de espécie de usucapião regulada pelo Estatuto do Índio, Lei n. 6.001/73.

O art. 33 do citado diploma legal assim dispõe: “O índio, integrado ou não, que ocupe como próprio, por dez anos consecutivos, trecho de terra inferior a cinquenta hectares, adquirir-lhe-á a propriedade plena. Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica às terras do domínio da União, ocupadas por grupos tribais, às áreas reservadas de que trata esta Lei, nem às terras de propriedade coletiva de grupo tribal”.

Trata-se de hipótese de aquisição da propriedade plena, tão somente, de modo que deve haver aqui o animus domini.

Não se exige para que seja reconhecida esta usucapião que o índio não seja integrado à sociedade, já que a lei prescreve que o índio, integrado ou não, terá direito a esta prescrição aquisitiva.

O art. 4º do Estatuto do Índio define quem se qualifica como indígena, conceituando-os.

5.8 Usucapio libertatis

A usucapião libertadora, ou usucapio libertatis, é aquela prescrição aquisitiva através da qual adquire-se certo direito real livre de quaisquer outros direitos preexistentes. Trata-se de hipótese em que a usucapião faz com que o possuidor adquira a coisa imóvel livre de quaisquer direitos ou encargos porventura existentes.

O direito usucapido é adquirido liberto de quaisquer outros direitos que incidissem já sobre o imóvel em que recai o direito adquirido. A usucapião teria o efeito de eliminar tais direitos.

Os direitos constituídos sobre o imóvel anteriormente ao implemento da prescrição aquisitiva ou de sua publicidade estarão fadados ao desaparecimento em virtude da aquisição originária?

Esse efeito libertador nada tem a ver com a aquisição originária ou derivada. A aquisição pode ser originária, por não estabelecer qualquer relação jurídica de continuidade com o titular anterior do direito, mas não extinguir os demais direitos que porventura existam.

Ser a aquisição originária significa que o direito adquirido não se apoia em um direito antecessor, analisando-se tal característica no momento da aquisição, não decorrendo daí a conclusão necessária de que haja a extinção de qualquer outro direito existente sobre o bem adquirido originariamente, mas apenas daqueles que não couberem no mesmo espaço jurídico do direito adquirido.

Leciona Von Tuhr que “o usucapiente fundamenta sua aquisição na posse de muito anos, e na boa-fé ou na inscrição no registro de bens de raiz […]; não tem nenhuma relação com o proprietário anterior”, razão pela qual, trata-se de aquisição originária. Daí decorre a substituição de um direito anterior por um posterior, de igual conteúdo, razão pela qual o direito adquirido extingue o que existia, já que não podem existir conjuntamente sobre a mesma coisa93. Tal não ocorre, porém, quando é possível a coexistência do direito adquirido originariamente com eventual direito que já existia, fosse ele adquirido originariamente ou derivadamente.

A usucapião é espécie de aquisição originária, como já foi aqui dito, porém, a indagação que se deve fazer neste momento é se tal característica da prescrição aquisitiva tem o condão de fazer com que todos os direitos que existam sobre o imóvel usucapido serão sempre extintos pela usucapião, isto é, se o usucapiente adquirirá sempre a coisa livre de quaisquer ônus.

A resposta, parece-nos, deve ser negativa. A solução não comporta uma única resposta, e deve ser encontrada com base nas nuanças do caso concreto94.

Assim, a questão que se coloca é a de se, por exemplo, adquirindo alguém, pela usucapião, a propriedade de certo bem, há, ou não, a extinção de hipoteca que sobre ele pesava antes da aquisição.

No direito português, demonstra Durval Ferreira que a usucapio libertatis consiste na posse, por certo tempo, do direito real maior, que acabará por englobar e aniquilar o direito real menor, alertanto, entretanto, que jamais se poderá dar a extinção “daqueles direitos que não pressupõem um domínio de facto (por exemplo, a hipoteca)”95.

No direito italiano, Nicola Stolfi defendeu a impossibilidade da usucapião libertadora, asseverando que a usucapião tem eficácia somente aquisitiva, e não extintiva, salvo em relação ao próprio direito real usucapido96.

Há quem entenda não haver no Direito brasileiro a usucapio libertatis97, e, ao contrário, há aqueles que entendem que a usucapião, no Direito brasileiro, é sempre libertadora98.

Em nosso sentir, pode ser, ou não, no caso concreto, libertadora a usucapião, a depender da posse exercida pelo usucapiente, do justo título, se houver, da publicidade registral existente, bem como do direito que se pretende libertar pela usucapião.

Em primeiro lugar, há que se perceber o caráter da posse exercida, ou melhor, que direito real é por ela refletido, a fim de verificar qual será o direito usucapido, para, então, verificar se ele é incompatível com o direito preexistente.

Se a usucapião for de um direito real de servidão de passagem, por exemplo, não há que se falar em extinção do direito de propriedade existente. A servidão usucapida passará a onerar a propriedade, que continuará existindo para o seu proprietário.

O mesmo ocorre se a usucapião trouxer à tona um direito real de usufruto, por exemplo. O seu nascimento, originário, não terá o condão de extinguir a propriedade. Apenas a onerará, sem que seja relevante a vontade do proprietário.

Havendo usucapião fundada em justo título, a posse será exercida nos limites do título. Imagine-se, assim, que o título seja uma compra e venda na qual consta a existência de um direito real de hipoteca registrado. Tal usucapião não teria o condão de aniquilar o direito real de hipoteca.

Elucidativa neste ponto a lição de Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento Filho, para quem na usucapião ordinária com prazo reduzido pode haver ou não o efeito libertador da usucapião, a depender do título registrado, uma vez que a posse deve ser exercida nos limites do título, de modo que “não se pode, por exemplo, desrespeitar uma servidão instituída em favor da propriedade vizinha”99.

No que diz respeito ao direito de hipoteca, bem como qualquer outro direito real que não implique direito à posse, Luciano de Camargo Penteado vai mais longe, asseverando que se não é possível haver prescrição aquisitiva, também não o é extingui-los pela prescrição aquisitiva100.

Parece-nos importantíssimo, por fim, analisar a publicidade a respeito dos direitos que incidem sobre o imóvel101.

Em matéria de direitos reais ou obrigacionais com eficácia real, imobiliários, não há eficácia erga omnes sem que haja publicidade no Registro de Imóveis que tenha atribuição territorial para tanto.

Desta feita, alguém que pretenda tornar oponível seu direito usucapido, deverá dar a conhecer a terceiros seu direito, seja através do registro da citação da ação de usucapião, seja através da averbação da existência da ação, seja através da averbação de alguma medida acautelatória deferida pelo Juiz etc.

Sem que haja a publicidade de sua pretensão em ver reconhecida a aquisição por usucapião de certo direito real, tal situação jurídica não é oponível a terceiros, de modo que, se houver a transmissão do direito inscrito, porventura incompatível com o direito usucapido, a um terceiro de boa-fé (subjetiva), não será a este oponível a aquisição pela usucapião.

A rigor, nem se trata de não haver usucapio libertatis, mas sim de não haver aquisição do direito pela usucapião, uma vez que prevalecerá o direito publicizado do terceiro de boa-fé.

É nota corrente no direito brasileiro que adquire-se o direito real pela usucapião ipso iure, isto é, havendo o implemento material dos requisitos da usucapião, adquirido estará o direito. A sentença será declaratória, tendo apenas condão de produzir título apto ao Registro, e o registro será igualmente declaratório, cujo intuito será, não o de constituir o direito já adquirido, mas torná-lo oponível erga omnes e disponível como direito real.

Sem a publicidade, o direito adquirido pela via da usucapião não é oponível contra terceiros, de modo que estes não podem ser por ele afetados.

O Direito brasileiro contempla o princípio da proteção da aparência jurídica como um princípio tácito, extraído de uma cadeia principiológica anterior que lhe serve de amparo lógico-jurídico, e tem o escopo de proteger as pessoas que confiaram legitimamente em situações que aparentavam ser juridicamente quando em verdade não eram, permanecendo oculta a real situação102.

Assim, no Direito brasileiro, aquele que adquire um direito publicizado no registro imobiliário, confiando na situação jurídica publicizada, pelo Estado, e com fé pública, diga-se, será protegido em tal direito – melhor dizendo, terá direito à aplicação do princípio da tutela da aparência jurídica, o que lhe garantirá o direito adquirido, salvo se, no caso concreto, houver colisão com algum outro princípio ou regra, cuja ponderação atribua um peso maior.

Não se mostra razoável imaginar as seguintes situações: (1) que haja para as pessoas o ônus de publicizar as situações jurídicas concernentes a imóveis que tenham a potencialidade de afetar terceiros, sejam elas reais ou obrigacionais com eficácia real (art. 167 da Lei n. 6.015/1973); (2) que essa publicização seja precedida de uma depuração da situação jurídica publicizada, de modo a somente publicizar o que seja juridicamente hígido (arts. 195 e 198, dentre outros, da Lei n. 6.015/1973)103; (3) que o conteúdo da publicidade registral imobiliária seja facilmente acessível a todos, em razão da territorialidade registral e da publicidade (arts. 16, 17 e 169 da Lei n. 6.015/1973); (4) que uma vez publicizado o título, essa publicização será levada a efeito por um agente delegado, que atua por conta própria mas em nome do Estado, e com fé pública, isto é, com presunção juris tantum de ser verdadeiro o que tal agente publiciza; e, ao mesmo tempo, (5) que o terceiro que pretenda negociar o direito decorrente da situação subjetiva publicizada não possa confiar nessa informação, devendo reanalisar a cadeia negocial já analisada pelo Registrador, não sendo protegido se a informação registral não for correta.

O Registro de Imóveis brasileiro publiciza todas as situações jurídicas reais e obrigacionais com efeitos reais em relação a bens imóveis e as publiciza com a característica da fé pública104 e com a eficácia mínima declarativa, isto é, com a eficácia mínima de tornar oponível erga omnes a situação jurídica publicizada. Não há oponibilidade a terceiros, de direitos imobiliários, sem a sua publicidade registral, a qual tem eficácia relativa105.

Há no direito registral imobiliário brasileiro, a obrigatoriedade – o ônus legal – de que sejam levados ao Registro Imobiliário todos os atos jurídicos que devam ser publicizados, conditio sine qua non para que se alcance o efeito que tenha o registro para a situação (constitutivo ou declarativo, conforme o caso).

Sem o devido registro, ou o direito não nascerá, ou ele não será oponível erga omnes. É o que preconiza o princípio registral106 imobiliário da inscrição, decorrente dos arts. 1.227 e 1.245 do Código Civil, bem como dos arts. 167, 169 e 172 da Lei n. 6.015/1973.

De acordo com referido princípio, os atos previstos em lei como registráveis devem ser, obrigatoriamente, registrados, sob pena de não produção dos efeitos que seriam alcançados com o registro.

Assim, um direito de propriedade imobiliário adquirido por sucessão não será oponível a terceiros que não os envolvidos no processo sucessório (meeiro, herdeiros e legatários), bem como não será disponível como direito de propriedade oponível erga omnes.

Embora o art. 172 da Lei n. 6.015/1973 refira-se tão somente aos direitos reais imobiliários, a norma contida no princípio da inscrição aplica-se também aos direitos obrigacionais com eficácia real, para sua oponibilidade a terceiros. Veja-se, para confirmar o asseverado, exemplificativamente, o caso do direito de preempção do locatário em locação de imóvel urbano (art. 167, II, 16, da Lei n. 6.015/1973, e art. 33 da Lei n. 8.245/1991107).

Todas as situações jurídicas que devam ser oponíveis a terceiros contêm previsão legal para sua publicidade registral no álbum imobiliário, vale dizer, todas as situações jurídicas que devam ser oponíveis a terceiros devem ser publicizadas no registro imobiliário, sem o que não atingirão referida oponibilidade, permanecendo na esfera meramente obrigacional, com eficácia inter partes.

Assim, alguém que tenha cumprido os requisitos materiais da usucapião, e, desta forma, adquirido certo direito, deverá publicizar de alguma forma sua pretensão (registro da citação da ação, averbação da existência da ação, registro da própria usucapião etc.), de modo a torná-la oponível contra todos os terceiros, o que somente ocorre com a publicidade registral.

Sem esta providência, o terceiro adquirente de boa-fé poderá confiar na publicidade registral, afastando a possibilidade de reconhecimento da aquisição pela usucapião daquele que não tomou as cautelas publicitárias devidas.

Nos casos apontados, não basta outra forma de publicidade, como, v.g., a processual, ou a notarial108. Ou há conhecimento efetivo, no caso concreto, o qual deve ser provado por aquele que alega, ou a cognoscibilidade foi gerada pela publicidade registral imobiliária, não servindo outra forma de publicidade.

Os atos jurídicos que versam sobre direitos reais ou direitos obrigacionais com eficácia real imobiliários, seja constituindo-os, transmitindo-os ou extinguindo-os, seja acautelando-os, e sejam eles instrumentalizados (conforme a solenidade exigida por lei) pela forma pública (quaisquer que sejam – tanto notarial como judicial ou administrativa) ou particular, devem ser publicizados no registro imobiliário, sob pena de permanecerem na esfera puramente obrigacional.

Mesmo os atos judiciais, relativos a imóveis, que devam ser oponíveis a terceiros que não participaram, de alguma forma, do processo, somente o serão se publicizados no registro imobiliário, não tendo a publicidade processual o condão de tornar os atos praticados no processo oponíveis a terceiros, pois a relação processual é uma relação jurídica e, apesar de pública, é pública no mesmo sentido da publicidade notarial, no sentido negativo, de ser acessível a quem queira tomar conhecimento de seu conteúdo, mas não gera cognoscibilidade, não é uma publicidade ativa. Se o ato processual, que diga respeito a imóveis, pretender tornar-se oponível erga omnes, deverá ser publicizado no registro imobiliário, conditio sine qua non para que alcance a aludida eficácia, salvo, excepcionalmente, quando provar-se, no caso concreto, que houve efetivo conhecimento da situação.

A penhora de bem imóvel, v.g., efetivar-se-á no processo, porém somente poderá ser oposta a algum terceiro de boa-fé, que tenha adquirido o imóvel, se tiver sido averbada na matrícula registral. Caso não tenha sido levado a efeito o ato registral, para publicizar a penhora e torná-la cognoscível e, portanto, oponível a quem não tenha participado do processo, eventual terceiro de boa-fé – isto é, que não tenha participado do processo e que não tenha tomado conhecimento da penhora; que confiou na publicidade registral, onde nenhuma penhora constava – que adquirir o imóvel não será considerado adquirente fraudulento, seja em fraude a credores, seja em fraude à execução.

Veja-se a esse respeito a Súmula n. 375 do STJ, a qual reza que “o reconhecimento de fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou de prova de má-fé do terceiro adquirente”, isto é, assevera que, para que a penhora seja oponível a um terceiro que não participa da relação processual, deverá haver a publicidade do ato processual da penhora no registro imobiliário, ou a prova do efetivo conhecimento da penhora, apesar da ausência da publicidade registral.

A Súmula do STJ em referência, ou outras decisões judiciais que a aplicam por analogia a outros atos processuais confirmam o fato de que somente com a publicidade registral imobiliária é que os direitos reais ou obrigacionais com eficácia real, imobiliários, serão oponíveis a terceiros, tenham eles origem em instrumentos públicos, ainda que judiciais, ou em instrumentos particulares. Aludidas decisões, no entanto, nada dizem a respeito da eficácia material do registro – se relativa ou absoluta. Para ilustrar, cita-se como exemplo de decisão analógica a proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, cuja ementa é colacionada a seguir: “EMBARGOS DE TERCEIRO. BEM IMÓVEL ALIENADO PELO DEVEDOR QUANDO JÁ FORA DECLARADO INSOLVENTE. ALIENAÇÃO DO IMÓVEL AO EMBARGANTE APÓS SEQUÊNCIA DE ALIENAÇÕES. SÚMULA N. 375, STJ. Merece proteção o embargante, adquirente de boa-fé, de quem, diante da ausência de averbação da declaração de insolvência do antigo proprietário na matrícula do imóvel, não se exigia que averiguasse a pendência de processos em relação à longa cadeia de aquisições. Aplicação, por analogia, da Súmula n. 375 do STJ. APELAÇÃO IMPROVIDA” (Apelação Cível n. 70051458800, Décima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Roberto Imperatore de Assis Brasil, julgado em 27-2-2013).

A mesma regra vale em relação à usucapião. Ou o direito de aquisição derivado do implemento material da usucapião é publicizado, ainda que cautelarmente, durante o seu processo de reconhecimento, ou ele não será oponível a terceiros de boa-fé.

O fato de exigir-se a publicidade dos direitos com origem judicial, para que se tornem direitos absolutos, com eficácia erga omnes, não guarda nenhuma relação com o tipo de presunção gerada por essa publicidade em face de terceiros de boa-fé, quando houver dissonância entre publicidade e realidade; não se refere a haver a proteção, ou não, do terceiro de boa-fé que confiou, v.g., em um mandado de usucapião falso registrado. O princípio da tutela da aparência jurídica, sim, é que diz respeito ao tema em questão.

As hipotecas judiciais (art. 167, I, 2); as penhoras, arrestos e sequestros (art. 167, I, 5); as citações de ações reais ou pessoais reipersecutórias (art. 167, I, 21); os julgados que dividirem imóveis ou os demarcarem (art. 167, I, 23); as sentenças que adjudicarem imóveis em pagamento das dívidas da herança (art. 167, I, 24); os atos de entrega de legados, de partilha e de adjudicação (art. 167, I, 25, e II, 14); a arrematação ou adjudicação em hasta pública, ou a remissão (art. 167, I, 26); as sentenças declaratórias de usucapião (art. 167, I, 28); a desapropriação (art. 167, I, 34); a imissão provisória da posse109 em ação de desapropriação, quando o poder público desapropriante estiver executando parcelamento popular calcado em dita posse (art. 167, I, 36); as sentenças declaratórias da concessão de uso especial para fins de moradia (art. 167, I, 37); as decisões judiciais, recursos e seus efeitos, que tenham por objeto atos ou títulos registrados ou averbados (art. 167, II, 12)110; os atos judiciais que impliquem constituição, alteração, ou extinção de direitos registráveis, sejam reais, sejam pessoais com eficácia real (como, v.g., uma sentença que declare a extinção de um direito real de servidão com fundamento no art. 1.389, III, do Código Civil)111; todos os demais atos judiciais que não tenham previsão legal expressa para registro, mas que de alguma forma imponham algum limite112 ao exercício de referido direito real imobiliário ou direito obrigacional com eficácia real imobiliário, registrável, ou que altere a situação jurídica desse direito (art. 246 da Lei n. 6.015/1973)113; devem ser publicizados no Registro Imobiliário114 com efeito mínimo declarativo, isto é, para, minimamente, valerem contra terceiros. Em alguns casos, como o da hipoteca judicial, v.g., o registro será, mais do que declarativo, constitutivo.

Todos os atos judiciais, enfim, que versarem sobre, e de alguma forma afetarem, direitos reais ou obrigacionais com efeito real imobiliários deverão ser publicizados no Registro de Imóveis para terem efeito contra terceiros. Antes disso, o efeito será somente inter partes115.

Os arts. 54, 55, e 56 da Lei n. 13.097/2015 fortemente ratificaram e amplificaram o acima dito, de modo que não mais parece haver dúvidas a respeito116.

Por fim, consoante lembra Pontes de Miranda, os “direitos reais, por desmembramento do domínio, ou em garantia, não se extinguem com a transferência ou com a aquisição a título originário”117.

5.9 Usucapião tabular?

Tem-se dito, por vezes, que foi instituído no direito brasileiro a usucapião tabular, no art. 1.242, parágrafo único, do Código Civil, e no art. 214, § 5º, da LRP118.

Reza o parágrafo único do art. 1.242 do Código Civil que o prazo da usucapião ordinária será de cinco anos “se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico”.

O § 5º, do art. 214 da LRP, por seu turno, assevera que a nulidade de registro por vício do procedimento registral “não será decretada se atingir terceiro de boa-fé que já tiver preenchido as condições de usucapião do imóvel”.

Com o devido respeito às opiniões contrárias, não nos parece haver no direito brasileiro a usucapião tabular, de modo que, em nosso entender, tais casos que tem por vezes sido apontados como hipóteses de usucapião tabular, não o são.

A usucapião tabular é aquela que decorre tão somente da existência do registro, sem que seja exigido algum outro requisito. Havendo o registro por certo tempo, haverá a aquisição pela usucapião, neste caso tabular, não sendo necessária a posse, ou boa-fé, ou outro requisito que seja. Basta o registro, e dele decorre a aquisição do direito real se houvesse algum vício na sua causa.

Nesse sentido, lecionam Jose Luis Lacruz Berdejo e Francisco de Asis Sancho Rebullida, com base no entendimento dos Tribunais espanhóis, que a usucapião tabular não se confunde com a usucapião secundum tabulas, porquanto na primeira basta o registro, ao passo que na segunda, há a necessidade de algum requisito a mais, como a posse efetiva119, que é exigida no ordenamento jurídico espanhol e também no nosso.

No mesmo sentido, Manuel Albaladejo ensina que não há no ordenamento jurídico espanhol a usucapião tabular, a qual consiste em usucapir pelo só fato de ter inscrito um direito durante certo tempo, na medida em que é exigida, no direito espanhol, a posse e a boa-fé, as quais são presumidas por conta do registro120. No mesmo sentido Luis Díez-Picazo121.

Nem o parágrafo único do art. 1.242 do Código Civil, nem o § 5º do art. 214, da LRP, estabelecem hipótese de usucapião decorrente tão só do fato do registro por certo tempo. em ambos os casos exige-se, além do registro, a posse, no mais das vezes qualificada, além de outros requisitos, a depender da espécie de prescrição aquisitiva, no caso do art. 214 da LRP.

Dessa forma, em verdade, nenhuma das duas hipóteses é caso de usucapião tabular, o qual não existe em nosso direito.

São, sim, casos de usucapião secundum tabulas – embora a hipótese do art. 1.242 nem sempre será, pois pode ter havido já o cancelamento do registro daquele que usucapiu –, isto é, usucapião de acordo com o registrado, o que é coisa diversa da usucapião tabular, bem como da usucapião contra tabulas, que é admitida em nosso direito.

O caso do art. 1.242 é caso de usucapião ordinária com prazo reduzido em razão do registro, em que a existência do registro é elemento importante, mas não é o único.

A hipótese do art. 214 é de possibilidade de utilização da usucapião como matéria de defesa em processos administrativos em que se busca o cancelamento de registro em razão de vício do procedimento registral, de modo a evitar o cancelamento caso seja provada a aquisição do direito inscrito em razão do implemento de alguma espécie de usucapião.

Em ambos os casos a existência do registro exerce um papel fundamental, determinante para a solução da questão posta. Há uma elevação do registro em matéria de usucapião. Todavia, não chega a haver a configuração da usucapião tabular.