— Por que a igreja? — Blue perguntou do banco do passageiro do Camaro. Ela nunca andara na frente antes, e, dali, a sensação de o carro ser alguns milhares de partes voando em uma formação agitada era ainda mais pronunciada.
Gansey, instalado confortavelmente atrás da direção, com óculos escuros caros e top siders, respondeu calmamente:
— Não sei. Porque ela está na linha, mas não é como... o que quer que Cabeswater seja. Preciso pensar mais sobre Cabeswater antes de voltarmos.
— Porque parece que a gente está entrando na casa de alguém — disse Blue, tentando não olhar para os mocassins de Gansey. Ela se sentia melhor a respeito dele como pessoa se fingisse que ele não os estava usando.
— Exatamente! É exatamente assim que parece — e apontou para ela como tinha apontado para Adam quando este fizera um comentário que ele aprovara. Então colocou a mão de volta na alavanca do câmbio para parar com o barulho.
Na realidade, Blue achava uma ideia excitante que as árvores fossem criaturas pensantes, que elas pudessem falar. Que elas a conhecessem.
— Vire aqui! — ordenou Blue, enquanto Gansey quase passava pela igreja arruinada. Com um largo sorriso, ele virou a direção e reduziu algumas marchas. Com apenas alguns ruídos de protesto da borracha, eles conseguiram chegar ao acesso tomado pela vegetação crescida, ao que o porta-luvas se abriu e atirou o que tinha dentro no colo de Blue.
— Aliás, por que você tem esse carro? — ela perguntou. Gansey desligou o motor, mas as pernas dela ainda vibravam com ele.
— Porque é um clássico — ele respondeu formalmente. — Porque é único.
— Mas é uma lata-velha. Eles não fazem clássicos únicos que não... — Blue demonstrou seu argumento tentando fechar sem sucesso o porta-luvas algumas vezes. Nesse instante, enquanto ela recolocava os objetos que estavam ali e batia a tampa, o porta-luvas ejetou novamente o conteúdo em suas pernas.
— Ah, fazem sim — disse Gansey, e ela sentiu uma ponta de irritação em sua voz. Não era raiva, realmente, mas ironia. Ele colocou uma folha de hortelã na boca e saiu do carro.
Blue recolocou os documentos do carro e um velho pacote de carne desidratada no porta-luvas, então inspecionou o outro objeto que havia caído em seu colo. Era um autoinjetor de adrenalina — uma seringa para ressuscitar o coração de uma pessoa no caso de uma reação alérgica grave. Diferentemente da carne, a data de validade ainda não tinha vencido.
— De quem é isso? — ela perguntou.
Gansey já estava fora do carro, segurando o frequencímetro e se alongando como se tivesse dirigido por horas no carro em vez de trinta minutos. Ela observou que ele tinha músculos impressionantes no braço, provavelmente relacionados ao adesivo da equipe de remo Aglionby que ela observara no porta-luvas. Gansey olhou sobre o ombro para ela e respondeu, encerrando a questão:
— Meu. Você tem que virar a tranca para a direita para fechar.
Blue guardou o autoinjetor de adrenalina e fechou o porta-luvas.
Do outro lado do carro, ele inclinou a cabeça para trás para dar uma olhada nas nuvens de tempestade: coisas vivas, torres em movimento. Bem ao longe, elas eram quase da mesma cor que o cume azul das montanhas. A estrada pela qual eles tinham vindo margeava um rio verde-azulado que serpenteava de volta na direção da cidade. A luz indireta do sol era peculiar: quase amarela, espessa com a umidade. Fora os pássaros e o rugido lento e distante dos trovões, não havia nenhum outro barulho.
— Espero que o tempo não vire — ele observou.
Gansey seguiu a passos largos para a igreja arruinada. Blue havia descoberto que era assim que ele chegava aos lugares — a passos largos. Caminhar era para pessoas comuns.
Parada ao lado dele, Blue achou a igreja mais sinistra à luz do dia, como sempre achava: crescendo entre paredes arruinadas, em meio a pedaços de telhado caído, com a relva na altura dos joelhos e árvores da altura de Blue, que lutavam pela luz do sol. Não havia provas que um dia haviam existido bancos de igreja, ou qualquer congregação. Havia algo triste e sem sentido a respeito do lugar: morte não seguida de vida.
Blue se lembrou de parar ali com Neeve, todas aquelas semanas atrás. Ela se perguntou se Neeve estava realmente procurando pelo seu pai, e, se estava, o que ela pretendia fazer quando o encontrasse. Blue pensou nos espíritos caminhando para dentro da igreja e se perguntou se Gansey...
Ele disse:
— Eu sinto que já estive aqui antes.
Blue não sabia o que responder. Ela já havia lhe contado uma meia verdade sobre a véspera do Dia de São Marcos, e não tinha certeza se era certo contar a ele a outra metade. Além disso, Blue não tinha certeza se isso parecia verdade. Parada ao lado dele naquele estado muito vivo, ela não conseguia imaginar que Gansey estaria morto em menos de um ano. Ele estava usando uma camisa polo azul-petróleo, e parecia impossível que alguém em uma camisa polo azul-petróleo pudesse morrer de qualquer outra coisa que não uma doença cardíaca aos oitenta e seis anos, possivelmente em uma partida de polo.
Blue perguntou:
— O que o seu medidor de mágica está fazendo agora?
Gansey se voltou para ela. Os nós de seus dedos estavam pálidos, os ossos pressionados através da pele. Luzes vermelhas brilharam ao longo da superfície do medidor.
Ele disse:
— Chegou ao máximo. Como na mata.
Blue examinou o entorno. Muito provavelmente, toda aquela propriedade era privada, mesmo o terreno onde se encontrava a igreja, mas a área atrás dela parecia mais remota.
— Se formos por ali, acho que tem uma probabilidade menor de atirarem na gente por invasão de propriedade. Não tem como não chamar atenção com a sua camisa.
— Ciano é uma cor maravilhosa, e você não vai me deixar constrangido por causa disso — retorquiu Gansey. Sua voz estava um pouco fina, e ele olhou de relance para a igreja mais uma vez. Naquele instante, ele pareceu mais jovem do que jamais antes, os olhos estreitados, o cabelo desarrumado, os traços relaxados. Jovem e, de maneira bastante estranha, temeroso.
Blue pensou: Eu não posso contar para ele. Eu nunca vou poder contar para ele. Só preciso tentar impedir que aconteça.
Então Gansey, subitamente charmoso de novo, acenou ligeiramente na direção do seu vestido-túnica roxo.
— Vá na frente, berinjela.
Blue encontrou um pedaço de pau para cutucar o chão a fim de protegê-los das cobras antes que avançassem pela relva. O vento cheirava a chuva, o chão ribombava com os trovões, mas o tempo se mantinha firme. A máquina nas mãos de Gansey piscava uma cor vermelha constantemente, apenas oscilando para o laranja quando eles pisavam longe demais da linha invisível.
— Obrigado por ter vindo, Jane — disse Gansey.
Blue lhe lançou um olhar fuzilante.
— De nada, Dick.
Ele pareceu chateado.
— Por favor, não.
Aquela expressão genuína roubou toda a alegria de usar o seu nome verdadeiro. Ela seguiu caminhando.
— Você é a única que não parece perturbada com essa busca — ele disse, após um momento. — Não é que eu esteja acostumado com isso, mas já vi algumas coisas tão incríveis antes, que acho que eu só... Mas o Ronan, o Adam e o Noah parecem todos... estupefatos.
Blue fingiu que sabia o que estupefatos queria dizer.
— Mas eu convivo com isso. Quer dizer, minha mãe é médium. Todas as amigas dela são paranormais. Isto é... bem, não é como se fosse normal. Mas é como eu sempre achei que seria ser como elas. Sabe, ver coisas que as outras pessoas não veem.
— Eu passei anos tentando dar um jeito nisso — admitiu Gansey. Havia algo a respeito do timbre da voz dele que surpreendia Blue. Só quando ele falou novamente que ela percebeu que ele estava usando o tom que ela o ouvira usar com Adam. — Passei dezoito meses tentando encontrar a linha de Henrietta.
— Era o que você esperava?
— Eu não sei o que eu esperava. Eu já tinha lido tudo sobre os efeitos da linha, mas nunca achei que eles fossem tão claros. Tão... Nunca esperei as árvores. Nunca esperei que acontecesse tão rápido também. Estou acostumado a conseguir uma pista por mês, então checar todas as possibilidades até que outra apareça. Não isso. — Gansey fez uma pausa e abriu um sorriso largo e generoso. — Isso é tudo por sua causa. Encontrar finalmente a linha. Eu poderia te dar um beijo.
Apesar de ele estar obviamente brincando, Blue se afastou para o lado.
— Por que você fez isso?
Ela perguntou:
— Você acredita em médiuns?
— Bom, eu fui a uma, não fui?
— Isso não quer dizer nada. Um monte de gente vai apenas para se divertir.
— Eu fui porque acredito. Bom, eu acredito naqueles que são bons no que fazem. Só acho que tem um monte de charlatões que se deve peneirar para chegar até eles. Por quê?
Blue cravou violentamente o chão com seu pedaço de pau para espantar cobras.
— Porque desde que eu nasci a minha mãe me diz que, se eu beijar meu verdadeiro amor, ele vai morrer.
Gansey riu.
— Não ria, seu... — Blue ia dizer canalha, mas pareceu uma palavra forte demais e ela perdeu a coragem.
— Bom, é só aquele tipo de coisa que soa alarmante demais, não é? Não saia com um garoto ou você vai ficar cega. Beije seu verdadeiro amor e ele vai te morder.
— Não foi só ela! — Blue protestou. — Toda médium ou paranormal que eu conheço me diz a mesma coisa. Além disso, minha mãe não é assim. Ela não brincaria com uma coisa dessas. Não é fingimento.
— Desculpe — disse Gansey, percebendo que ela estava realmente irritada com ele. — Eu estava sendo um idiota de novo. Você sabe como ele vai morrer, esse cara azarado?
Blue deu de ombros.
— Ah. O diabo está nos detalhes, imagino. Então você simplesmente não beija ninguém por precaução? — ele perguntou e a observou assentir com a cabeça. — Isso me parece cruel, Jane. Não vou mentir.
Ela deu de ombros de novo.
— Eu não conto para as pessoas normalmente. Não sei por que te contei. Não conte para o Adam.
As sobrancelhas de Gansey se espetaram no centro da testa.
— É assim com ele, então?
O rosto dela ficou instantaneamente quente.
— Não. Quer dizer... Não. Não. É só que, como não é... como eu não sei... eu prefiro não dar sopa pro azar.
Blue fantasiou que o tempo havia voltado e começado de novo com eles saindo do carro e, em vez de ter essa conversa, eles falavam sobre o clima e quais aulas ele estava fazendo. Parecia que seu rosto jamais pararia de queimar.
A voz de Gansey, quando ele respondeu, soou um pouco dura.
— Bom, se você matasse o Adam, eu ficaria bastante chateado.
— Vou fazer o meu melhor para isso não acontecer.
Por um momento, o silêncio foi desconfortável, então ele disse, com uma voz mais normal:
— Obrigado por me contar. Quer dizer, por me confiar algo assim.
Aliviada, Blue respondeu:
— Bom, você me contou como você se sentia em relação ao Ronan e ao Adam e aquela história de estupefatos. Tem só uma coisa que eu ainda quero saber... Por que você está procurando? O Glendower?
Ele sorriu pesarosamente, e por um momento Blue temeu que ele estivesse prestes a virar o Gansey petulante e metido, mas no fim ele apenas disse:
— É uma história difícil de resumir.
— Você está numa escola que vai te levar para as melhores universidades do país. Tente.
— Tudo bem. Por onde começar? Talvez... Você viu a seringa de adrenalina. É para picadas. Eu sou alérgico. Muito alérgico.
Blue parou onde estava, alarmada. Marimbondos faziam ninhos no chão, e aquele era um território primordial para eles: áreas sossegadas, próximas de árvores.
— Gansey! Estamos no campo. Onde as abelhas vivem!
Ele fez um gesto desdenhoso, como se estivesse ansioso para encerrar aquele assunto.
— Continue cutucando as coisas com seu pedaço de pau e não vai acontecer nada.
— Meu pedaço de pau! Nós caminhamos a semana inteira na mata! Isso é terrivelmente...
— Descuidado? — sugeriu Gansey. — A verdade é que não faz nem sentido ter uma seringa de adrenalina. A última que me contaram foi que ela funcionaria apenas se eu fosse picado uma vez, e mesmo assim eles não sabem. Eu tinha quatro anos a primeira vez que fui parar no hospital por causa de uma picada, e as reações só pioraram depois disso. A verdade é essa. É isso ou viver numa bolha.
Blue pensou na carta da Morte e como sua mãe não a havia interpretado realmente para Gansey. Era possível, ela pensou, que a carta não tivesse sido de maneira alguma sobre a tragédia prevista de Gansey, mas, em vez disso, sobre a vida dele, como ele caminhava lado a lado com a morte todos os dias.
Com o pedaço de pau, Blue dava pauladas no chão à frente deles.
— Ok, vá em frente.
Gansey apertou os lábios, então os soltou.
— Bom, sete anos atrás, eu estava em um jantar com meus pais. Não lembro o que era exatamente. Acho que um dos amigos do meu pai tinha sido indicado pelo partido.
— Para o... Congresso?
O chão debaixo dos pés deles ou o ar à sua volta vibrou com um trovão.
— Acho que sim. Não lembro. Sabe quando às vezes você não lembra de tudo direito? O Ronan diz que as memórias são como sonhos. Você nunca lembra como chegou até a sala de aula pelado. Enfim, a festa estava chata, eu tinha nove ou dez anos. Estavam todos de vestidinho preto e gravata vermelha, e tinha todas as comidas que você pudesse imaginar, desde que fosse camarão. Alguns meninos começaram a brincar de esconde-esconde. Lembro que eu me achava velho demais para brincar de esconde-esconde, mas não tinha mais nada para fazer.
Blue e ele entraram em um capão estreito de árvores, esparsas o suficiente para que a relva crescesse entre elas, em vez de arbustos. Aquele Gansey, aquele Gansey contador de histórias, era uma pessoa completamente diferente de qualquer uma das outras versões dele que ela havia encontrado. Ela não conseguia não ouvir.
— Estava quente como o Hades. Era primavera, mas parecia verão. Primavera na Virgínia, sabe como é. Pesada, de certa maneira. Não tinha sombra no quintal, mas tinha um grande bosque ali perto. Escuro, verde e azul. Era como mergulhar em um lago. Então eu entrei nele, e era incrível. Em apenas cinco minutos eu não conseguia mais ver a casa.
Blue parou de cutucar o chão.
— Você se perdeu?
Gansey balançou a cabeça um pouco.
— Eu pisei em um ninho. — Seus olhos estavam estreitados daquela maneira que as pessoas fazem quando estão se esforçando para parecer casuais, mas era óbvio que aquela história era qualquer coisa menos casual para ele. — Marimbondos, como você disse. Eles fazem ninhos no chão. Não preciso dizer isso para você. Mas eu não sabia na época. A primeira coisa que eu senti foi uma pequena alfinetada na meia. Achei que tinha pisado num espinho. Tinha uma tonelada deles, aqueles espinhos verdes em forma de chicote. Mas então senti mais uma. Eram umas pontadas tão pequenas, sabe?
Blue se sentiu um pouco enjoada.
Ele continuou:
— Mas então eu senti uma na mão, e quando saltei para longe eu vi os marimbondos. Eles enchiam meus dois braços.
De algum modo, ele a levara até ali, até aquele momento de descoberta. Blue sentia o coração pesado, atingido por uma seta envenenada.
— O que você fez? — ela perguntou.
— Eu sabia que estava morto. Eu sabia que estava morto antes de começar a sentir tudo dar errado no meu corpo. Porque eu tinha ido parar no hospital por causa de uma picada, e aquilo era, tipo, cem picadas. Eles estavam no meu cabelo, dentro dos meus ouvidos, Blue.
— Você ficou com medo?
Ele não precisou responder. Blue viu no vazio de seus olhos.
— O que aconteceu?
— Eu morri — ele disse. — Eu senti meu coração parar. Os marimbondos não se importaram. Eles continuavam me picando, mesmo eu já estando morto.
Gansey parou, depois disse:
— Agora vem a parte mais difícil.
— São as minhas favoritas — respondeu Blue. As árvores estavam em silêncio em volta deles; o único som eram os rugidos dos trovões. Após uma pausa, ela acrescentou, um pouco envergonhada: — Desculpe. Não era minha intenção ser... mas a minha vida inteira tem sido a “parte mais difícil”. Ninguém acredita no que a minha família faz. Não vou rir.
Ele soltou o ar lentamente.
— Eu ouvi uma voz, um sussurro. Não vou esquecer o que ela disse. Ela disse: “Você vai viver por causa de Glendower. Alguém na linha ley está morrendo quando não deveria, e assim você vai viver quando não deveria”.
Blue estava em absoluto silêncio. O ar os pressionava.
— Eu contei para a Helen. Ela disse que foi uma alucinação. — Gansey afastou do rosto uma trepadeira suspensa. O mato estava ficando mais fechado ali, as árvores mais próximas. Eles provavelmente deviam voltar. Sua voz era peculiar. Formal e determinada. — Não foi uma alucinação.
Aquele era o Gansey que havia escrito o diário. A verdade daquilo, a mágica daquilo, tomou conta dela.
Blue perguntou:
— E isso basta para fazer com que você passe a vida inteira procurando Glendower?
Gansey respondeu:
— Assim que Artur ficou sabendo que o Santo Graal existia, como ele poderia não procurar por ele?
Um trovão rosnou debaixo deles mais uma vez, o rosnar faminto de uma fera invisível.
Blue disse:
— Isso não é realmente uma resposta.
Ele não olhou para ela e respondeu com uma voz terrível:
— Eu preciso, Blue.
Todas as luzes no frequencímetro se apagaram.
Igualmente aliviada por estar de volta a um terreno seguro e desapontada por não espiar mais profundamente dentro do Gansey de verdade, Blue tocou a máquina.
— Nós saímos da linha?
Eles recuaram vários metros, mas a máquina não religou.
— A bateria está fraca? — ela sugeriu.
— Eu não sei como verificar. — Gansey a desligou e então a ligou de novo.
Blue estendeu a mão para o leitor. Assim que ela o tomou dele, as luzes irromperam num vermelho muito intenso. Ela o virou de um lado para o outro. Laranja para a esquerda. Vermelho para a direita.
Os dois trocaram um olhar.
— Pegue o leitor de volta — disse Blue.
Mas tão logo Gansey tocou o frequencímetro, as luzes se apagaram de novo. Quando o trovão veio dessa vez, sedutor e crepitante, ela sentiu que ele fazia algo dentro dela tremer, o que não parou após o som ter morrido.
— Eu fico achando que tem que ter uma explicação lógica — disse Gansey. — Mas não encontrei uma a semana inteira.
Blue pensou que provavelmente havia uma explicação lógica, e achou que era isto: Blue tornava as coisas mais perceptíveis. Só que ela não fazia ideia do que estava amplificando no momento.
O ar estremeceu de novo enquanto um trovão grunhiu. Não havia sinal do sol agora. Tudo que sobrara era o ar verde e pesado em volta deles.
Ele perguntou:
— Para onde ele está nos levando?
Deixando que a luz vermelha sólida os levasse, Blue avançou hesitantemente pelas árvores. Eles tinham caminhado apenas alguns metros quando a máquina apagou de novo. Dessa vez não adiantou trocar de mão e tentar mexer. O leitor não piscou mais.
Os dois pararam com a máquina entre eles, a cabeça baixa próxima uma da outra, olhando em silêncio para o visor escuro.
Blue perguntou:
— E agora?
Gansey olhou para o chão.
— Dê um passo para trás. Tem...
— Ai, meu Deus — exclamou Blue, distanciando-se com um pulo. Então, mais uma vez: — Ai, meu...
Mas ela não conseguiu terminar a frase, pois tinha acabado de tirar o pé de algo que parecia terrivelmente com o osso de um braço humano. Gansey foi o primeiro a se agachar, tirando as folhas do osso. Certamente, debaixo do primeiro osso havia um segundo. Um relógio sujo envolvia o osso do pulso. Tudo parecia irreal, um esqueleto na mata.
Isso não pode estar acontecendo.
— Ah, não — Blue sussurrou. — Não toque nele. Impressões digitais.
Mas o corpo já estava muito além de impressões digitais. Os ossos estavam limpos como peças de museu, a carne havia caído fazia tempo, restando apenas os farrapos do que quer que a pessoa estivesse vestindo. Tirando cuidadosamente as folhas, Gansey descobriu o esqueleto inteiro. Ele repousava contorcido, uma perna torta para cima, os braços esparramados de cada lado do crânio, o quadro congelado de uma tragédia. O tempo havia poupado determinados elementos e levado outros: o relógio estava ali, mas a mão não. A camisa tinha se consumido, mas a gravata permanecia, ondulada sobre os montes e vales dos ossos das costelas. Os sapatos estavam sujos, mas intactos. As meias também estavam preservadas dentro dos sapatos de couro, como sacos na altura dos tornozelos.
A maçã do rosto estava afundada. Blue se perguntou se fora assim que a pessoa havia morrido.
— Gansey — disse ela, com a voz inexpressiva. — Ele era um garoto. Ele era um garoto da Aglionby.
Ela apontou para a caixa torácica. Amarfanhada entre duas costelas nuas havia uma insígnia da Aglionby, as fibras sintéticas do ornamento impermeáveis ao tempo.
Eles se encararam sobre o corpo. Um raio iluminou o perfil de seus rostos. Blue estava absolutamente consciente do crânio por baixo da pele de Gansey, suas maçãs do rosto tão próximas da superfície, altas e angulosas como aquelas na carta da Morte.
— Precisamos ligar para a polícia — disse ela.
— Espere — ele respondeu. Gansey só precisou de um momento para encontrar uma carteira debaixo do osso do quadril. Era de um couro bom, enlameada e manchada, mas na maior parte inteira. Gansey a abriu, examinando as bordas multicoloridas dos cartões de crédito que se alinhavam de um lado. Ele viu a borda de cima de uma carteira de motorista e a puxou com o polegar.
Blue ouviu a respiração de Gansey presa pelo choque absoluto.
O rosto na carteira de motorista era de Noah.