Às oito da noite, Gansey ligou para Adam na fábrica de trailers.
— Estou indo aí pegar você — disse e desligou.
Ele não disse que era importante, mas aquela foi a primeira vez que ele havia pedido que Adam deixasse o trabalho, então devia ser realmente importante.
Na rua, o Camaro rodava o motor em marcha lenta no estacionamento, com a vibração irregular ecoando pela escuridão. Adam entrou no carro.
— Eu explico quando chegarmos lá — disse Gansey.
Ele engatou a marcha e pisou fundo de tal maneira que os pneus de trás guincharam no asfalto quando eles partiram. Pela expressão de Gansey, Adam achou que algo havia acontecido a Ronan. Talvez, finalmente, Ronan houvesse acontecido a Ronan. Mas não foi para o hospital que eles se dirigiram. O Camaro disparou direto para o terreno do lado de fora da Indústria Monmouth. Juntos, eles subiram os degraus escuros e barulhentos que levavam para o segundo andar. Sob as mãos de Gansey, a porta se escancarou, batendo contra a parede.
— Noah! — ele gritou.
O quarto se estendia sem limite no escuro. Contra as janelas, a Henrietta em miniatura era uma linha falsa da cidade. O despertador de Gansey tocava continuamente, soando um alarme para uma hora que havia passado há muito tempo.
Os dedos de Adam procuraram sem sucesso pelo disjuntor da luz.
Gansey gritou mais uma vez:
— Nós precisamos conversar. Noah!
A porta para o quarto de Ronan se abriu, soltando um facho de luz. Ronan formava uma silhueta no vão da porta, uma mão fechada contra o peito, o filhote de corvo encolhido entre os dedos. Ele tirou um par de fones de ouvido macios e caros dos ouvidos e os enrolou em torno do pescoço.
— Cara, você voltou tarde. Parrish? Achei que você estivesse trabalhando.
Então Ronan não sabia mais do que Adam. Adam sentiu uma ponta de alívio com aquilo, que rapidamente se extinguiu.
— Eu estava — disse ele finalmente, encontrando o disjuntor de luz. O quarto tinha virado um planeta crepuscular, os cantos vivos com sombras de línguas afiadas.
— Onde está o Noah? — demandou Gansey, puxando o cabo de alimentação do despertador da parede para silenciá-lo.
Ronan avaliou o estado de Gansey e ergueu uma sobrancelha.
— Saiu.
— Não — disse Gansey, enfático —, ele não saiu. Noah!
Ele recuou até o centro do quarto, virando-se para olhar nos cantos, nas vigas, procurando em lugares em que ninguém jamais acharia um colega de quarto. Adam hesitou ao lado da porta. Ele não conseguia entender o que aquilo poderia ter a ver com Noah: Noah, que podia passar despercebido por horas, cujo quarto era intacto, cuja voz nunca se elevava.
Gansey parou de procurar e se virou para Adam.
— Adam — ele demandou —, qual é o sobrenome do Noah?
Antes de Gansey perguntar, Adam sentia como se certamente soubesse. Mas agora a resposta escapou de sua boca e de seus pensamentos inteiramente, deixando seus lábios entreabertos. Era como se perder a caminho da aula, se perder a caminho de casa, esquecer o número de telefone da Indústria Monmouth.
— Eu não sei — admitiu Adam.
Gansey apontou para o peito de Adam como se estivesse atirando com uma arma ou salientando um ponto.
— É Czerny. Zerny. Chér-ni. Qualquer que seja a pronúncia. Noah Czerny. — Jogando a cabeça para trás, ele gritou para o ar: — Eu sei que você está aqui, Noah.
— Cara — observou Ronan. — Você pirou.
— Abra a porta dele — ordenou Gansey. — Me conte o que tem ali.
Com um dar de ombros cortês, Ronan deslizou do vão da porta e virou a maçaneta da porta de Noah. Ela se abriu, revelando o canto de uma cama sempre arrumada.
— Como sempre, parece o quarto de uma freira — disse Ronan. — Ou de um hospício. O que eu estou procurando? Drogas? Garotas? Armas?
— Me diz — perguntou Gansey — que aulas você faz com o Noah.
Ronan bufou.
— Nenhuma.
— Eu também não — respondeu Gansey, olhando para Adam, que balançou a cabeça ligeiramente. — Nem o Adam. Como isso é possível? — Ele não esperou por uma resposta, no entanto. — Quando ele come? Vocês já o viram comer?
— Eu não me importo, na verdade — disse Ronan, acariciando a cabeça de Motosserra com um único dedo, que virou o bico para cima em resposta. Foi um momento estranho em uma noite estranha, e, se isso tivesse acontecido no dia anterior, teria chamado a atenção de Adam, pois ele raramente via uma bondade irrefletida como aquela vindo de Ronan.
Gansey disparou perguntas para os dois:
— Ele paga aluguel? Quando ele se mudou para cá? Vocês já se perguntaram sobre isso um dia?
Ronan balançou a cabeça.
— Cara, você realmente saiu da casinha. Qual é o problema?
— Eu passei a tarde com a polícia — disse Gansey. — Fui com a Blue até a igreja...
Agora o ciúme atingiu Adam como uma facada, profunda e inesperada, uma ferida que seguia ardendo, não menos dolorosa por ele não ter certeza do que, precisamente, o tinha atingido.
Gansey continuou:
— Não olhem para mim desse jeito, vocês dois. O fato é o seguinte: nós encontramos um corpo. Apodrecido até os ossos. Vocês sabem de quem era?
Ronan sustentou no seu o olhar firme de Gansey.
Adam sentiu como se tivesse sonhado a resposta para aquela questão.
Atrás deles, a porta para o apartamento subitamente se fechou com violência. Eles se viraram rapidamente para encará-la, mas não havia ninguém ali, apenas a vibração dos cantos dos mapas na parede para mostrar que ela havia se movido.
Os garotos olharam fixamente para o movimento sutil do papel e ouviram o eco da batida.
Não ventava, mas Adam sentiu um arrepio na pele.
— Meu — disse Noah.
Como se fossem um, eles giraram de volta.
Noah estava parado no vão da porta do quarto.
Sua pele era pálida como um pergaminho, e seus olhos, sombreados e fora de foco, como sempre ficavam de noite. Havia a onipresente mancha em seu rosto, só que agora parecia terra, sangue ou possivelmente com um buraco, os ossos esmigalhados por baixo da pele.
A postura de Ronan era rígida.
— Seu quarto estava vazio. Acabei de olhar.
— Eu disse para vocês — Noah falou. — Eu disse para todo mundo.
Adam teve de fechar os olhos por um longo momento.
Gansey parecia finalmente ter recuperado o controle. O que ele precisava da vida eram fatos, coisas que ele pudesse escrever em seu diário, coisas que pudesse citar duas vezes e sublinhar, não importava quão improváveis elas fossem. Adam percebeu que o tempo inteiro Gansey não sabia realmente o que encontraria quando o levara ali. Como ele poderia? Como alguém poderia realmente acreditar...
— Ele está morto — disse Gansey, com os braços cruzados firmemente sobre o peito. — Você está morto, não está?
A voz de Noah soou melancólica.
— Eu disse para vocês.
Eles olharam para ele, perto de Ronan. Realmente, ele era bem menos real do que Ronan, pensou Adam — aquilo deveria ter sido óbvio. Era absurdo que eles não tivessem notado. Ridículo que não tivessem pensado em seu sobrenome, de onde ele tinha vindo, nas aulas a que ele ia ou deixava de ir. Suas mãos pegajosas, seu quarto intacto, seu rosto manchado sempre igual. Ele estava morto desde que eles o conheciam.
A realidade era como uma ponte desmoronando debaixo de Adam.
— Que merda, cara — disse Ronan, por fim. E um pouco desesperado: — Todas essas noites que você me encheu sobre te deixar acordado, e você nem precisa dormir!
Adam perguntou com uma voz que mal se ouvia:
— Como você morreu?
Noah virou o rosto.
— Não — disse Gansey, a resolução cristalizada na palavra. — A questão não é essa, é? A questão é: quem matou você?
Agora Noah exibia a expressão reclusa que tinha quando algo o deixava desconfortável. O queixo virado, os olhos embaçados e alheios. Subitamente, Adam estava profundamente consciente de que Noah era uma coisa morta e ele não.
— Se você puder me contar — disse Gansey —, eu posso descobrir uma maneira de colocar a polícia no caminho certo.
O queixo de Noah havia encolhido ainda mais, e sua expressão era, de algum modo, negra, as órbitas dos olhos vazias, lembrando uma caveira. Eles estavam olhando para um garoto? Ou algo que parecia um garoto?
Adam queria dizer: Não o pressione, Gansey.
Nas mãos de Ronan, Motosserra começou a gritar. Guinchos desesperados que atravessavam o ar. Era como se não houvesse nada no mundo a não ser o ruído daqueles gritos frenéticos. Parecia impossível que um corpo tão pequeno pudesse fazer um ruído tão grande.
Noah ergueu a cabeça, com os olhos bem abertos e normais. Ele parecia assustado.
Ronan tapou a cabeça do pássaro com uma mão até que ele se acalmou.
Noah disse:
— Eu não quero falar sobre isso.
Seus ombros estavam encolhidos próximos às orelhas, e ele parecia, agora, com o Noah que eles sempre conheceram. O Noah que eles nunca questionaram se era um deles.
Um dos vivos.
— Tudo bem — disse Gansey. Então, novamente: — Tudo bem. O que você gostaria de fazer?
— Eu gostaria... — Noah começou, deixando a frase inacabada como ele sempre fazia, sumindo de volta em seu quarto. Isso era o que Noah fazia quando estava vivo, pensou Adam, ou seria um exercício de estar morto, de tentar manter uma conversa comum?
Ronan e Adam olharam ao mesmo tempo para Gansey. Parecia que não havia mais nada a ser feito ou dito. Até Ronan parecia vencido, com as farpas de sempre escondidas. Até eles terem certeza de quais eram as novas regras, ele também parecia relutante em descobrir como o Noah de outro mundo poderia ser quando provocado.
Desviando o olhar dos outros, Gansey chamou:
— Noah?
O espaço no vão da porta de Noah estava vazio.
Na soleira do quarto, Ronan empurrou a porta, abrindo-a completamente. O cômodo parecia sério e intocado, a cama visivelmente não utilizada.
O mundo zunia à volta de Adam, subitamente carregado de possibilidades, nem todas agradáveis. Ele sentiu como se estivesse sonâmbulo. Nada era verdade até que ele pudesse colocar as mãos nela.
Ronan começou a praguejar de maneira longa, suja e contínua, sem parar para respirar.
Preocupado, Gansey corria o polegar sobre o lábio inferior. Então perguntou a Adam:
— O que está acontecendo?
Adam respondeu:
— Estamos sendo assombrados.