As manhãs na Rua Fox, 300, eram eventos temíveis e confusos. Atropelos, filas para o banheiro e discussões abruptas sobre saquinhos de chá colocados em xícaras que já tinham saquinhos de chá. Havia a escola para Blue e o trabalho para algumas das tias mais produtivas (ou menos intuitivas). As torradas queimavam, o cereal amolecia, a porta da geladeira ficava constantemente aberta. Chaves tilintavam enquanto se decidiam caronas apressadamente.
Durante o café, o telefone começava a tocar e Maura dizia:
— É o universo ligando para você na linha dois, Orla — ou algo assim, e Jimi ou Orla ou uma das outras tias ou meias-tias ou amigas brigavam para decidir quem deveria atender o telefone no andar de cima. Dois anos antes, a prima de Blue, Orla, havia decidido que um número de atendimento paranormal seria uma aquisição lucrativa e, após algumas breves discussões com Maura sobre imagem pública, Orla venceu. “Vencer” significa que Orla esperou até que Maura fosse a uma conferência em um fim de semana para então instalar a linha em segredo, e isso era mais a lembrança de um fato desagradável do que um fato desagradável em si. As chamadas começavam a chegar aproximadamente às sete da manhã, e em alguns dias um dólar por minuto parecia valer mais a pena do que em outros.
As manhãs eram um esporte. Um esporte que Blue gostava de pensar que estava jogando melhor.
No dia seguinte à vigília na igreja, contudo, ela não teve de se preocupar em disputar um lugar no banheiro ou tentar preparar um lanche para o almoço enquanto Orla deixava cair uma torrada com a manteiga para baixo. Quando ela acordou, seu quarto, normalmente iluminado pela luz da manhã, tinha a luz suave da tarde. No quarto ao lado, Orla estava falando com o namorado ou com um dos clientes da linha de atendimento paranormal. Com Orla, era difícil dizer a diferença entre os dois tipos de chamada. Ambas deixavam Blue pensando que ela devia tomar uma ducha depois.
Blue assumiu o banheiro tranquilamente, dando atenção especial para o cabelo, escuro e cortado em estilo chanel, longo o suficiente para ser preso de modo plausível, mas curto o suficiente para precisar de uma série de grampos para fazer isso com sucesso. O resultado era um rabo de cavalo espetado, irregular e cheio de mechas fugitivas e grampos desiguais, de aparência excêntrica e revolta. Blue tinha trabalhado duro para conseguir aquele resultado.
— Mãe — disse ela, enquanto descia apressadamente a escada gasta. Maura estava no balcão da cozinha fazendo uma bagunça com folhas de algum tipo de chá. O cheiro era terrível.
Sua mãe não se virou. No balcão, por todos os lados, havia correntes oceânicas e verdes de ervas soltas.
— Você não precisa estar sempre correndo.
— Você precisa — replicou Blue. — Por que você não me chamou para a escola?
— Eu chamei — disse Maura. — Duas vezes. — Então resmungou para si: — Droga.
Da mesa, a voz suave de Neeve ecoou:
— Precisa da minha ajuda com isso, Maura?
Ela estava sentada à mesa com uma xícara de chá, gorducha e angelical como sempre, sem apresentar nenhum sinal de ter perdido o sono na noite anterior. Neeve encarou Blue, que tentou evitar o contato visual.
— Sou perfeitamente capaz de fazer um maldito chá de meditação, obrigada — disse Maura. Para Blue, acrescentou: — Eu disse para a escola que você estava gripada. Enfatizei que estava vomitando. Lembre-se de parecer cansada amanhã.
Blue pressionou a palma das mãos sobre os olhos. Ela nunca faltara às aulas no dia seguinte à vigília na igreja. Talvez se sentisse sonolenta, mas nunca debilitada como na noite passada.
— Foi porque eu vi aquele garoto? — ela perguntou a Neeve, baixando as mãos. Ela gostaria de não se lembrar do garoto tão claramente. Ou melhor, da ideia dele, sua mão aberta sobre o chão. Ela gostaria de poder desvê-lo. — É por isso que eu dormi por tanto tempo?
— É porque você deixou quinze espíritos passarem através do seu corpo enquanto você conversava com um menino morto — respondeu Maura concisamente, antes que Neeve pudesse falar. — Pelo menos foi isso que eu ouvi. Meu Deus, esse é o cheiro que essas folhas deveriam ter?
Blue se virou para Neeve, que continuou a bebericar o chá com um ar confiante.
— É verdade? É porque os espíritos passaram através de mim?
— Você deixou que eles tirassem energia de você — respondeu Neeve. — Você tem bastante energia, mas não tanto.
Blue teve dois pensamentos imediatos sobre isso. Um foi: Eu tenho bastante energia? E o outro: Acho que essa história está me irritando. Não era que ela tivesse intencionalmente permitido que os espíritos extraíssem energia dela.
— Você devia ensiná-la a se proteger — disse Neeve para Maura.
— Eu ensinei algumas coisas a ela. Eu não sou uma mãe tão incapaz assim — disse Maura, passando à filha uma xícara de chá.
Blue disse:
— Não vou beber isso. O cheiro é horrível. — E retirou um pote de iogurte da geladeira. Então, em solidariedade à mãe, disse a Neeve: — Eu nunca precisei me proteger na vigília da igreja antes.
Neeve refletiu.
— É espantoso. Você amplifica tanto os campos de energia que estou surpresa que eles não a encontrem mesmo aqui.
— Ah, pare — disse Maura, soando irritada. — Não há nada de aterrorizante em relação a pessoas mortas.
Blue ainda estava vendo a imagem fantasmagórica de Gansey, derrotado e confuso. E disse:
— Mãe, os espíritos da vigília da igreja... Você consegue evitar a morte deles? Avisando-os?
Nesse instante, o telefone tocou. Estrilou duas vezes e continuou tocando, o que significava que Orla ainda estava na linha com a outra pessoa que ligara.
— Que droga, Orla! — disse Maura, apesar de ela não estar perto para ouvi-la.
— Eu atendo — disse Neeve.
— Mas... — Maura não terminou o que iria dizer, e Blue se perguntou se ela estava pensando que Neeve normalmente trabalhava por muito mais do que um dólar por minuto.
— Eu sei o que você está pensando — disse-lhe a mãe, após Neeve ter deixado a cozinha. — A maioria morre de ataque cardíaco, câncer ou outras coisas inevitáveis. Aquele garoto vai morrer.
Blue estava começando a sentir um fantasma da sensação que tivera antes, aquele estranho pesar.
— Não acho que um garoto da Aglionby vai morrer de ataque cardíaco. Por que você faz questão de contar para os seus clientes?
— Para que eles possam colocar as coisas em ordem e fazer tudo que precisam fazer antes de morrer.
Então sua mãe se virou, fixando em Blue um olhar de quem sabe de algo. Ela parecia tão impressionante quanto poderia parecer uma pessoa parada, descalça e de calça jeans, segurando uma xícara de chá exalando um cheiro de terra em decomposição.
— Eu não vou tentar evitar que você o avise, Blue. Mas você precisa saber que ele não vai acreditar, mesmo se você encontrá-lo, e isso provavelmente não vai salvá-lo, mesmo se ele ficar sabendo. Talvez você evite que ele faça algo estúpido. Ou talvez você simplesmente estrague os últimos meses de vida dele.
— Você é uma Poliana — disparou Blue. Mas ela sabia que Maura estava certa, pelo menos sobre a primeira parte. A maioria das pessoas que ela conhecia achava que sua mãe fazia truques de salão para sobreviver. O que Blue achava que ia fazer: rastrear um estudante da Aglionby, bater na janela de seu Land Rover ou de seu Lexus e avisá-lo para checar os freios e atualizar o seguro de vida?
— Eu provavelmente não posso evitar que você o encontre de qualquer maneira — disse Maura. — Quer dizer, se a Neeve estiver certa sobre o motivo de você ter visto esse garoto. Seu destino é encontrá-lo.
— Destino — respondeu Blue, olhando furiosa para a mãe — é uma palavra muito pesada para se dizer antes do café da manhã.
— O resto do pessoal já tomou café há muito tempo — disse Maura.
A escada rangeu enquanto Neeve retornava.
— Número errado — disse do seu jeito sem afetação. — Você recebe muitas ligações por engano?
— Nosso número parece o de uma empresa de acompanhantes para cavalheiros — respondeu Maura.
— Ah — disse Neeve. — Isso explica a ligação. Blue — ela acrescentou, enquanto se ajeitava na mesa novamente —, se você quiser, posso tentar ver o que o matou.
Isso chamou imediatamente a atenção tanto de Maura quanto de Blue.
— Sim — disse Blue.
Maura ia responder, então pressionou os lábios.
Neeve perguntou:
— Temos suco de uva?
Confusa, Blue foi até a geladeira e ergueu uma jarra interrogativamente.
— Uva e cranberry?
— Está ótimo.
Com o semblante ainda fechado, Maura abriu o armário, tirou uma tigela escura e a colocou na frente de Neeve de maneira pouco delicada.
— Não vou me responsabilizar por nada que você vir — disse Maura.
Blue perguntou:
— O quê? O que isso quer dizer?
Nenhuma delas respondeu.
Com um sorriso fofo no rosto fofo, Neeve derramou o suco na tigela até a borda. Maura apagou a luz. O lado de fora subitamente parecia vívido em comparação à cozinha sombria. As árvores claras de abril pressionavam as janelas da copa, folha sobre folha sobre vidro, e Blue subitamente estava muito consciente de estar cercada por árvores, com a sensação de estar no meio de uma mata fechada.
— Se vocês forem observar, por favor fiquem em silêncio — disse Neeve, sem olhar para ninguém em particular. Blue puxou uma cadeira e se sentou. Maura se recostou no balcão e cruzou os braços. Era raro ver Maura incomodada sem fazer nada a respeito.
Neeve perguntou:
— Como era mesmo o nome dele?
— Ele só disse Gansey. — E Blue se sentiu envergonhada dizendo seu nome. De alguma maneira, a ideia de que ela teria alguma influência em sua vida ou em sua morte tornava sua existência nominal naquela cozinha responsabilidade dela.
— Já é o suficiente.
Neeve se inclinou sobre a tigela, com os lábios se mexendo e o reflexo escuro se movendo lentamente sobre o líquido. Blue seguia pensando no que sua mãe havia dito: Não vou me responsabilizar por nada que você vir.
Aquela declaração fazia aquilo parecer maior do que sempre parecera. Mais distante de um truque da natureza e mais próximo de uma religião.
Finalmente, Neeve murmurou. Apesar de Blue não poder ouvir nenhum significado em particular no som sem palavras, Maura pareceu abruptamente triunfante.
— Bem — disse Neeve. — Isso é algo.
Com aquela frase, Blue já sabia como a coisa terminaria.
— O que você viu? — ela perguntou. — Como ele morreu?
Neeve não tirou os olhos de Maura. Ela estava fazendo uma pergunta ao mesmo tempo em que respondia.
— Eu o vi. E então ele desapareceu. Entrou no nada absoluto.
Maura ergueu a palma das mãos em um gesto de trégua. Blue conhecia bem o gesto. Sua mãe o havia usado para terminar muitas discussões após ter dito uma frase arrebatadora. Só que dessa vez a frase arrebatadora havia sido dita por uma tigela cheia de suco de uva e cranberry, e Blue não fazia ideia do que ela queria dizer.
Neeve disse:
— Num instante ele estava aqui, no seguinte não existia.
— Isso acontece — disse Maura. — Aqui em Henrietta. Às vezes tem um lugar, ou lugares, que eu não consigo ver. Outras vezes eu vejo — e nesse momento ela deixou de olhar para Blue, de um jeito que a filha notou que a mãe se esforçava para evitar o contato visual — coisas que eu não esperaria.
Agora Blue estava se lembrando das incontáveis vezes em que sua mãe havia insistido que ficassem em Henrietta, mesmo quando se tornou mais caro viver ali, mesmo quando as oportunidades para ir para outras cidades se abriram. Blue interceptara uma vez uma série de e-mails no computador de sua mãe; um dos clientes de Maura havia suplicado ardentemente que ela levasse Blue “e o que mais você não consiga viver sem” para o casarão dele em Baltimore. Na resposta, Maura o havia informado duramente que aquilo não era possível por muitas razões; primeiro, porque ela não deixaria Henrietta e, segundo, porque ela não sabia se ele era um assassino psicopata. Ele respondera apenas com o desenho de uma carinha triste. Blue sempre se perguntava o que havia acontecido com ele.
— Eu gostaria de saber o que você viu — disse Blue. — O que é “nada”?
Neeve disse:
— Eu estava seguindo o garoto que vimos na noite passada até a morte dele. Eu senti que estava próxima cronologicamente, mas então ele desapareceu para dentro de algum lugar que eu não podia ver. Não sei como explicar. Achei que o problema fosse comigo.
— Não é — disse Maura. E, quando viu que Blue ainda estava curiosa, ela explicou: — É como quando não há uma imagem na televisão, mas você pode dizer que ela está ligada. É assim que parece. Mas eu nunca vi alguém entrar nesse lugar antes.
— Bem, ele entrou — disse Neeve, afastando a tigela. — Você disse que isso não é tudo. O que mais daria para ver?
Maura respondeu:
— Canais que não aparecem na conexão básica.
Neeve bateu os belos dedos na madeira, apenas uma vez, e então disse:
— Você não me contou sobre isso antes.
— Não parecia relevante — respondeu Maura.
— Um lugar onde rapazes podem desaparecer parece algo bastante relevante. A habilidade da sua filha também parece relevante — disse Neeve, nivelando um olhar eterno em Maura, que se afastou do balcão e se virou.
— Tenho que trabalhar hoje à tarde — disse Blue por fim, quando se deu conta de que a conversa tinha morrido. O reflexo das folhas lá fora ondulou lentamente na tigela, uma floresta tranquila, porém obscura.
— Você vai trabalhar desse jeito? — perguntou Maura.
Blue olhou para suas roupas. Elas envolviam algumas camadas finas de camisas, incluindo uma que ela havia customizado usando um método chamado retalhamento.
— O que tem de errado com as minhas roupas?
Maura deu de ombros.
— Nada. Eu sempre quis uma filha excêntrica, só não tinha percebido como meus planos diabólicos estavam funcionando bem. Até que horas você trabalha?
— Até as sete. Quer dizer, provavelmente até mais tarde. A Cialina tem que trabalhar até as sete e meia, mas ela falou a semana inteira que o irmão dela conseguiu ingressos para ver Evening e se pelo menos alguém desse uma força e assumisse a última meia hora...
— Você pode dizer não. O que é Evening? É aquele filme em que todas as garotas morrem a machadadas?
— Esse mesmo.
Enquanto Blue tomava seu iogurte ruidosamente, dispensou um rápido olhar para Neeve, que ainda franzia o cenho para a tigela com suco afastada um pouco além de seu alcance.
— Ok, fui.
Ela empurrou a cadeira para trás. Maura estava calada daquele jeito pesado que era mais alto que uma conversa. Blue se demorou jogando a embalagem do iogurte no lixo e largando a colher na pia ao lado da mãe, então se virou para subir a escada e calçar os sapatos.
— Blue — disse Maura finalmente —, não preciso dizer para você não beijar ninguém, não é?