— Última parada — disse Ronan, puxando o freio de mão. — Lar, merda de lar.

No escuro, a casa pré-fabricada da família Parrish era uma caixa cinza melancólica com duas janelas iluminadas. Uma silhueta na janela da cozinha abriu as cortinas para olhar para o BMW. Ele e Adam estavam sozinhos no carro; Gansey tinha dirigido o Camaro do hospital até a Rua Fox, então o levou de volta para Monmouth. Era um acerto bastante cômodo; Adam e Ronan não estavam brigados, e ambos estavam sobressaltados demais pelos eventos do dia para começar uma nova briga.

Adam buscou no banco de trás a pasta a tiracolo, o único presente que ele havia aceitado de Gansey, e apenas porque ele não precisava dela.

— Obrigado pela carona.

Outra silhueta, distintamente o pai de Adam, havia se juntado à primeira na janela. O estômago de Adam gelou. Ele apertou os dedos em torno da alça da pasta, mas não saiu do carro.

— Cara, você não precisa descer — disse Ronan.

Adam não comentou a oferta; não ia ajudar. Em vez disso, perguntou:

— Você não tem dever de casa para fazer?

Mas Ronan, o mestre das observações irônicas, era à prova delas. Seu sorriso era implacável no brilho do painel.

— Sim, Parrish. Acho que tenho.

Adam, contudo, não saiu. Ele não gostou da agitação da silhueta do pai. Mas era pouco inteligente se demorar no carro — especialmente naquele carro, inegavelmente de Aglionby —, ostentando suas amizades.

— Você acha que eles vão prender o Whelk antes da aula amanhã? — perguntou Ronan. — Porque, se eles prenderem, não vou precisar ler nada.

— Se ele aparecer para a aula — respondeu Adam —, acho que a leitura vai ser a menor das suas preocupações.

Houve um silêncio, então Ronan disse:

— É melhor eu ir dar comida para o pássaro.

Ele olhou para baixo, para o câmbio, com os olhos perdidos e prosseguiu:

— Eu fico pensando no que teria acontecido se o Whelk tivesse atirado no Gansey hoje.

Adam não insistira nessa possibilidade. Sempre que seus pensamentos chegavam perto de tocar a quase perda, surgia algo escuro e afiado dentro dele. Era difícil lembrar como a vida em Aglionby havia sido antes de Gansey. As memórias distantes pareciam difíceis, solitárias, mais povoadas por noites tardias em que Adam se sentava nos degraus da casa pré-fabricada, piscando lágrimas dos olhos e se perguntando por que se importava. Ele era mais jovem naquela época, apenas pouco mais de um ano atrás.

— Mas ele não atirou.

— É — disse Ronan.

— Que sorte que você ensinou aquele gancho para ele.

— Eu nunca ensinei ele a quebrar o polegar.

— Esse é o Gansey. Aprende o suficiente para ser superficialmente competente.

— Perdedor — concordou Ronan, voltando a ser ele mesmo.

Adam anuiu, buscando coragem.

— Nos vemos amanhã. Obrigado de novo.

Ronan desviou o olhar da casa para o campo escuro, e sua mão mexeu na direção. Algo o estava frustrando, mas com ele não dava para saber se ainda era Whelk ou algo completamente diferente.

— Tudo bem, cara. Nos vemos amanhã.

Com um suspiro, Adam desceu do carro, bateu no capô do BMW e Ronan arrancou lentamente. No céu, as estrelas eram enormes e brilhantes.

Quando Adam subiu os três degraus para entrar em casa, a porta da frente se abriu e a luz jorrou sobre suas pernas e pés. Seu pai deixou a porta aberta e parou no vão, encarando o filho.

— Oi, pai — disse Adam.

— Não me venha com “oi, pai” — ele respondeu, já esquentado. Ele cheirava a cigarro, embora não fumasse. — Chegando em casa à meia-noite. Tentando se esconder das suas mentiras?

Com cuidado, Adam perguntou:

— O quê?

— A sua mãe esteve no seu quarto hoje e encontrou algo. Você faz ideia do que seria?

Os joelhos de Adam começaram a derreter. Ele fazia o melhor que podia para manter a maior parte de sua vida na Aglionby escondida do pai, e ele podia pensar em diversas coisas a respeito de si mesmo e de sua vida que não agradariam a Robert Parrish. Não saber exatamente o que havia sido encontrado era agonizante. Ele não conseguia olhar o pai nos olhos.

Robert Parrish segurou o colarinho de Adam, forçando seu queixo para cima.

— Olhe para mim quando estiver falando com você. Um holerite. Da fábrica.

Ah.

Pense rápido, Adam. O que ele precisa ouvir?

— Eu não entendo por que você está bravo — disse Adam, tentando manter a voz o mais equilibrada possível, mas, agora que ele sabia que a questão dizia respeito a dinheiro, não fazia ideia de como sair da situação.

O pai puxou o rosto de Adam para bem perto do seu, de maneira que o garoto pudesse sentir as palavras, além de ouvi-las.

— Você mentiu para a sua mãe sobre o seu salário.

— Eu não menti.

Aquilo foi um erro, e Adam soube disso tão logo as palavras deixaram sua boca.

Não olhe na minha cara e minta para mim! — gritou seu pai.

Mesmo sabendo que o golpe estava vindo, o braço de Adam foi lento demais para proteger o rosto.

Quando a mão do pai o atingiu, foi mais um som que um sentimento: uma batida como um martelo distante acertando um prego. Adam lutou para se equilibrar, mas o pé errou a beirada da escada e seu pai o deixou cair.

Quando o lado da cabeça de Adam acertou o corrimão, foi uma catástrofe de luz. Ele viu todas as cores se combinando para fazer o branco em um único momento.

A dor sibilava dentro da cabeça.

Adam estava no chão junto à escada e não conseguia se lembrar daquele segundo entre acertar o corrimão e o chão. Seu rosto estava coberto de poeira, até a boca. Adam tinha de colocar em funcionamento os mecanismos de respirar, abrir os olhos, respirar de novo.

— Ah, vamos lá — disse o pai, cansado. — Levanta. Sinceramente...

Adam se levantou devagar, apoiando-se nas mãos e nos joelhos. Ele se agachou, os joelhos firmes no chão, enquanto os ouvidos zuniam, zuniam, zuniam. Quando o barulho parou, não havia nada além de um lamento crescente.

A meio caminho da estrada, ele viu as luzes de freio do BMW de Ronan.

Apenas vá, Ronan.

— Não acredito que você está fazendo esse jogo! — disparou Robert Parrish. — Não vou parar de falar sobre isso só porque você se jogou no chão. Eu sei quando você está fingindo, Adam. Não sou idiota. Não acredito que você ganharia esse dinheiro todo e jogaria fora naquela maldita escola! E todas as vezes que você ouviu a gente falar sobre a conta de luz, de telefone?

Seu pai estava longe de ter terminado. Adam podia ver sua perturbação, pela maneira como ele erguia os pés a cada passo quando desceu a escada. Adam trouxe os cotovelos para junto do corpo, escondendo a cabeça e querendo que seus ouvidos clareassem. O que ele precisava fazer era se colocar no lugar do pai e imaginar o que precisava dizer para apaziguar a situação.

Mas ele não conseguia pensar. Seus pensamentos se chocavam explosivamente na terra à sua frente, no ritmo do coração. A orelha esquerda gritava com ele, tão quente que parecia úmida.

— Você mentiu — rosnou o pai. — Você disse pra gente que a escola estava te dando uma bolsa de estudos. Você não me disse que estava ganhando — ele parou tempo suficiente para tirar um pedaço de papel castigado do bolso da camisa — dezoito mil, quatrocentos e vinte e três dólares por ano!

Adam arfou uma resposta.

— Como é que é? — Seu pai se aproximou, pegou o colarinho do filho e o puxou para cima, tão fácil quanto levantaria um cão. Adam ficou de pé com dificuldade. O chão estava fugindo, e ele tropeçou. Ele teve de lutar para encontrar as palavras de novo; algo havia se quebrado dentro dele.

— Parcial — Adam respirou com dificuldade. — Bolsa parcial.

Seu pai berrou algo mais para ele, mas foi na orelha esquerda, e não havia nada a não ser um rugido daquele lado.

Não me ignore — rosnou o pai. E então, inexplicavelmente, ele desviou a cabeça de Adam e gritou: — O que você quer?

— Fazer isso — Ronan Lynch respondeu rispidamente, acertando o punho no rosto de Robert Parrish. Atrás dele, o BMW estava parado, com a porta do motorista aberta e os faróis iluminando nuvens de poeira na escuridão.

Ronan — disse Adam. Ou talvez apenas pensou. Sem seu pai o segurando, ele cambaleou.

O pai de Adam agarrou a camisa de Ronan e o jogou na direção da casa pré-fabricada. Mas Ronan precisou de apenas um momento para voltar a ficar de pé, e seu joelho encontrou a barriga de Parrish. Dobrado ao meio, o homem lançou o braço na direção de Ronan. Seus dedos passaram sobre a cabeça raspada do garoto sem lhe causar dano. Isso o fez recuar apenas meio segundo, e Parrish bateu com a cabeça no rosto de Ronan.

Com o ouvido direito, Adam ouviu sua mãe gritando para eles pararem. Ela estava segurando o telefone e acenando o aparelho para Ronan, como se isso fosse fazê-lo parar. Mas havia apenas uma pessoa que poderia parar Ronan, e a mãe de Adam não tinha esse número.

— Ronan — disse Adam, e dessa vez ele estava certo de que dissera em voz alta. Sua voz soava estranha para ele, obstruída com algodão. Ele deu um passo e o chão sumiu de seus pés completamente. Levante-se, Adam. Ele se apoiou com as mãos e os joelhos. O céu parecia o mesmo que o chão. Adam se sentia todo quebrado e não conseguia ficar de pé. Só conseguia observar seu amigo e seu pai se agarrando a alguns metros de distância. Adam era um par de olhos sem corpo.

A luta era suja. Em determinado momento, Ronan foi ao chão e Robert Parrish deu um chute forte no rosto dele. Os antebraços de Ronan se ergueram por puro instinto para se proteger. Parrish investiu para abri-los à força. A mão de Ronan avançou como uma cobra, trazendo Parrish para o chão com ele.

Adam viu alguns trechos da briga: seu pai e Ronan rolando, se agarrando e socando. Luzes estroboscópicas brilhantes, vermelhas e azuis, ricocheteavam nas paredes da casa pré-fabricada, iluminando os campos por um segundo de cada vez. Eram os policiais.

Sua mãe ainda estava gritando.

Havia barulho por toda parte. Adam precisava ficar de pé, caminhar, pensar, e então ele poderia parar Ronan antes que algo terrível acontecesse.

— Garoto? — perguntou um policial, ajoelhando-se ao seu lado. Ele cheirava a zimbro. Adam pensou que ia sufocar com aquilo. — Você está bem?

Com a ajuda do policial, Adam se levantou cambaleante. Outro policial arrastou Ronan para longe de Robert Parrish.

— Eu estou bem.

O tira soltou seu braço e então, tão rapidamente quanto, pegou-o de novo.

— Rapaz, você não está bem. Você andou bebendo?

Ronan deve ter ouvido a pergunta, pois, do outro lado do terreno, gritou uma resposta que envolvia uma série de palavrões e a frase bate até quase matar.

A visão de Adam sumia e voltava, sumia e voltava. Ele conseguia distinguir Ronan vagamente. Chocado, perguntou:

— Ele está sendo algemado?

Isso não pode acontecer. Ele não pode ser preso por minha causa.

— Você andou bebendo? — repetiu o tira.

— Não — respondeu Adam, com as pernas ainda frouxas; o chão ondulava a cada movimento de cabeça. Adam sabia que parecia bêbado. Ele precisava se aprumar. Naquela tarde mesmo, ele havia tocado o rosto de Blue. A sensação que tivera era de que qualquer coisa era possível, como se o mundo decolasse à sua frente. Ele tentou canalizar aquela sensação, mas ela pareceu apócrifa. — Eu não...

— Eu não o quê?

Não escuto nada com o ouvido esquerdo, pensou Adam.

Sua mãe estava parada na varanda, observando o filho e o policial, com os olhos estreitados. Adam sabia o que ela estava pensando, pois eles haviam tido aquela conversa muitas vezes antes: Não diga nada, Adam. Diga para ele que você caiu. Na realidade foi um pouco sua culpa, não foi? Vamos lidar com isso em família.

Se Adam entregasse o pai, tudo desmoronaria à sua volta. Se Adam o entregasse, sua mãe nunca o perdoaria. Se Adam o entregasse, ele nunca mais poderia voltar para casa.

Do outro lado do terreno, um dos policiais colocou a mão na nuca de Ronan, guiando-o para dentro da viatura.

Mesmo sem escutar com o ouvido esquerdo, Adam ouviu a voz de Ronan claramente:

— Eu disse que não preciso de ajuda, cara. Você acha que nunca andei num desses antes?

Adam não podia ir morar com Gansey. Ele havia feito tanto para ter certeza de que, quando saísse de casa, seria de acordo com seus termos. Não com os de Robert Parrish. Não com os de Richard Gansey.

De acordo com os termos de Adam Parrish. Era isso ou nada.

Adam tocou o ouvido esquerdo. A pele estava quente e dolorida, e, sem a audição para lhe dizer que seu dedo estava próximo da cavidade da orelha, seu toque parecia imaginário. O ruído no ouvido havia diminuído e agora não havia... nada. Nada mesmo.

Gansey dissera: “Você não vai cair fora por causa do seu orgulho?”

— O Ronan estava me defendendo. — A boca de Adam estava seca como a terra à sua volta. A expressão do policial se concentrou nele enquanto ele prosseguia. — Do meu pai. Tudo isso... é por causa dele. Meu rosto e meu...

Sua mãe o encarava.

Ele fechou os olhos. Adam não conseguiria olhar para ela e dizê-lo. Mesmo com os olhos fechados, ele sentia como se estivesse caindo, como se o horizonte se movesse, como se sua cabeça pendesse para o lado. O mal-estar de Adam lhe indicava que seu pai havia conseguido acertar algo vital.

E então ele disse o que antes não conseguia dizer. Adam perguntou:

— Posso... posso dar queixa?