ANDREY

 

 

 

«Que monte de merda», pensou Andrey enquanto dirigia olhares ocasionais à vizinha que fora forçado a aceitar. Sergey tinha escolhido o pior momento para ficar de baixa por doença. Se ali estivesse, teriam empurrado a fedelha para outra pessoa.

Dizia-se que o amor à primeira vista não existia. Andrey não achava que alguma vez tivesse sentido tal coisa. Mas o que sentia naquele momento era o exato oposto. Ali estava ela, aquela Maria... Karavay, não era? Até o seu apelido soava estúpido! Sentada à secretária como se tivesse todo o direito de ali estar. Era alta, o que, por acaso, estava na moda naquele momento (Andrey não gostava de raparigas altas por princípio... o princípio fundamental, naquele caso, era a sua própria altura). Tinha o cabelo liso, olhos de uma cor clara difícil de definir e um nariz irritantemente proporcional em relação à face. Nunca conseguiria trabalhar com ela ali sentada, irritando-o. Tudo nela o irritava! A sua cara, limpa de maquilhagem. As mãos com as unhas rentes e os dedos sem anéis. A T-shirt preta, as calças de ganga pretas e os mocassins. Ficou ali sentada, olhando-o e esperando. «O quê?», pensou ele.

– Perdoe-me – disse a rapariga. A sua voz era delicada e ondulante. – Sei que serei um fardo. – Andrey sentiu-se corar e a sua maçã de adão deu um salto. – Mas... acha que poderá atribuir-me uma tarefa qualquer?

«O que é isto? O infantário? O bebé precisa de uma tarefa? Ótimo», pensou Andrey, esboçando-lhe um sorriso que achou que estaria carregado de significado.

– Não é um fardo, estagiária Karavay. Quanto a uma tarefa... Terá de ser alguma coisa que complemente a sua pesquisa académica, não? – E sorriu mais ainda, parecendo um crocodilo. – Porque não recolhe informações, por exemplo num relatório estatístico, de todos os homicídios arquivados como mortes acidentais nos dois últimos anos?

A rapariga franziu a testa.

– Precisa mesmo disso?

Andrey suspirou e esboçou-lhe outro sorriso amarelo.

– No trabalho que fazemos, estagiária Karavay, tudo poderá ser útil. Até com água poderemos embebedar-nos.

Nesse momento, o telefone tocou. Era urgente. A polícia tinha encontrado um corpo na baixa, retirado do rio Moskva, praticamente à frente das muralhas do Kremlin.

– Vou a caminho! – Andrey empurrou a cadeira para trás com ruído e pegou no casaco de ganga.

A rapariga fixou nele olhos brilhantes de esperança. Obviamente, imaginava já como poderia escapar à sua tarefa. «Aluna exemplar da Estatal de Moscovo, uma ova.» Andrey sorriu e fingiu não reparar.

 

*

 

Precisou de estacionar a alguma distância do local do crime cercado pela fita de demarcação e abriu caminho entre a multidão de mirones. Havia já uma ambulância presente para levar o cadáver. Estavam à sua espera. Andrey olhou o corpo e percebeu imediatamente que a vítima, um homem de meia-idade, faria muito exercício. Uma tatuagem prisional num braço musculado captou-lhe a atenção: uma serpente formando um anel.

– Esteve preso – confirmou um perito forense jovem.

Andrey tirou algumas fotografias com o seu telefone, para uso próprio. Fotografou os braços do homem e o esgar fixado na sua face. A seguir, acenou com a cabeça aos homens que esperavam por perto, fumando. Enquanto o cadáver era colocado na ambulância, a cabeça do homem virou-se de repente e Andrey viu um número rapado no cabelo acima da nuca: «14.»

– Esperem! – Andrey aproximou-se rapidamente e tirou outra fotografia. Foi nesse momento que reparou na presença de dois miúdos, talvez com catorze anos. A rapariga aninhava a cara no pescoço do rapaz, que se mantinha de pé, desconfortavelmente, com a cara pálida como um lençol.

«Testemunhas. Pobres coitados.» Andrey suspirou. Estavam ali, enlevados pelo primeiro amor, num encontro romântico, e, do nada, um morto na água. Que doces memórias teriam.

A seguir, recordou o seu primeiro amor e franziu a testa. Teria preferido um cadáver. Andrey aproximou-se do casal jovem.

– Encontraram-no?

O rapaz acenou com a cabeça.

– Viram alguma coisa?

– Não.

Não esperava outra coisa. Andrey esboçou-lhe o que esperou que fosse um sorriso encorajador, como uma espécie de comissário Maigret jovem. Anotou os seus números de telefone e autorizou-os a irem à sua vida. Viu o rapaz envolver docemente a cintura da rapariga com o braço. Andrey grunhiu e voltou para os peritos forenses.

– E então? Encontraram alguma coisa? – perguntou, mesmo que o instinto lhe dissesse já que não haveria nada para encontrar. Se o assassino tivesse deixado algum vestígio, o rio Moskva tê-lo-ia arrastado.

O cadáver estava polido como um seixo na praia.