KATYA

 

 

 

Primeiro, tocou à campainha. Era pouco provável que Natasha estivesse em casa, mas era melhor ter a certeza. Depois disso, Katya usou a sua chave para abrir a porta, inspirou fundo e entrou, sorrindo ao sentir os cheiros familiares. Enquanto descalçava as botas, pareceu-lhe ter ouvido alguém na cozinha.

– Natasha? – chamou. Mas não havia ninguém. Ouvia apenas o tiquetaque de um relógio e o barulho da máquina de lavar na casa de banho.

Katya parou diante do espelho do outro lado da porta. Gostava de se ver naquele espelho, como se fosse a dona da casa. Parecia-lhe completamente natural. A luz dourada ténue do candelabro mantinha o mesmo efeito mágico que recordava da infância. Voltava a ser uma princesa, não uma pobre rapariga camponesa, e todos os outros deviam sair-lhe da frente. Katya moveu-se em bicos de pés pelo apartamento. Havia um cobertor novo sobre o sofá da sala. Macio. Provavelmente de caxemira.

Um novo frasco de creme hidratante estava sobre a prateleira da casa de banho. Seria de Natasha. Masha nunca se preocupava com coisas desse tipo. Katya arquivou mentalmente o creme para mais tarde.

No quarto de Masha, tudo parecia parado no tempo. O sol de verão entrava pela janela.

– Está abafado aqui dentro – disse Katya em voz alta, abrindo a janela para arejar.

Demorou-se um pouco mais no quarto de Natasha, erguendo-se diante do seu armário. Notou os saltos altos cor de chocolate e o fato formal às riscas com o surpreendente forro com padrão de leopardo. Inspirou profundamente. Natasha mudara outra vez de perfume. A mãe de Masha não conseguia manter-se leal a apenas um. Estava sempre a fazer experiências. Katya gostava disso. Jogava um jogo com os perfumes de Natasha, tentando decidir qual seria melhor para ela e concluindo que todos serviriam perfeitamente.

Dirigiu-se à cozinha e espreitou o interior do frigorífico. Mas isso arruinava sempre a sua diversão. Era impossível, ali, fingir que era a sua casa porque a verdadeira dona daria pela falta de meio queijo (Katya adorava aquele queijo holandês e era muito caro) ou de um cacho de uvas. Por isso, devorou o conteúdo do enorme frigorífico apenas com os olhos, como um simplório pobre da província olharia para uma natureza-morta rebuscada no Hermitage.

Katya queria desesperadamente tomar um banho, mas era demasiado arriscado. Seria demasiado difícil explicar se a apanhassem numa banheira cheia de espuma e óleos perfumados. Um duche, talvez. Katya tinha o álibi pronto. «Oh, Natasha, caí numa poça, passei por baixo de um tubo de escoação de águas, um Mercedes passou por mim a grande velocidade e salpicou-me!» Katya sabia que Natasha o permitiria. Beberiam um chá depois e Natasha questioná-la-ia sobre os muitos admiradores de Masha. Queria sempre saber isso. Às vezes, quando havia indícios de que Masha andava de olho em alguém (tentativas ousadas, mas amadoras, de maquilhagem, por exemplo), Natasha chegava mesmo a incumbir Katya de a espiar.

E Katya saía-se bem. Numa ocasião, descobriu que o «alguém» fazia parte da turma de Masha e que se chamava Petya, um filho respeitável de pais ricos. Conduzia um Porsche e, quando Katya avistou esse Porsche, quase deu um salto. Mas Masha, a tonta, disse que não ficava impressionada. Com todos os utilitários desportivos enormes na estrada, não se via nada pela janela de um pequeno carro desportivo. Nunca foi claro o que Petya via em Masha. Katya achava que não havia muito para ver. Supôs que teria sido o cabelo volumoso ou talvez os olhos. Teria mesmo dito alguma coisa a Masha a respeito desses dois traços, certa vez. Masha riu-se e chocou Katya com a citação de algo em francês sobre pessoas que elogiam os olhos de uma mulher quando o resto dela não é muito bonito. E era inteligente, sem dúvida, mas, para os homens, isso era uma desvantagem. O que cativara Petya? Podia ter sido o apelido: Karavay. Muito elegante e bastante célebre em alguns círculos. O advogado morto e isso tudo.

Katya recordava como todos se tinham preocupado com Masha depois da morte do pai, incluindo a sua própria mãe, como se não tivesse nenhum alvo melhor da sua piedade. A pobre criança, perdendo o pai tão nova! Que tragédia!

Katya respondeu: «Então e eu? Nunca tens pena de mim? O meu pai abandonou-me antes de nascer!»

A sua mãe disse que também tinha pena dela, a sério. Passou a mão pela cabeça de Katya e disse-lhe que não tivesse ciúmes porque isso não era bonito. Mas Katya não conseguiu evitar. Pensava que deveria ter nascido com esse sentimento dentro dela. Era o que sentia quando olhava da sua janela no primeiro andar e via a rapariga do casaco colorido às cavalitas do seu pai risonho, ouvindo as velhas louvarem-no dos seus bancos. «Que bom pai é aquele Fyodor Karavay», costumavam dizer. «E é importante!» Sentia-o também quando via Fyodor com Natasha, que parecia tão jovem e que vestia o tipo de roupa que a mãe de Katya não podia, sequer, sonhar comprar. E sentia-o de cada vez que via o retrato dele num jornal, ilustrando um artigo sobre algum julgamento célebre. Katya quis desesperadamente ser amiga de Masha, mas também quis arrancar-lhe os olhos com as unhas. Era uma sensação estranha, preocupante e terrível, que a mãe de Katya identificou corretamente só dez anos mais tarde.

No ano em que as duas raparigas completaram treze anos, a mãe de Katya, Rita, recebeu uma oferta muito generosa pelo seu apartamento T1 na baixa. Podiam usar o dinheiro para comprar outro com o dobro do preço num bairro menos na moda. A sua mãe ficou feliz. O comprador tratou de tudo por elas e até as ajudou na mudança e Rita ficou tão grata, sabendo que nunca teria conseguido sozinha. Disse a Katya que teriam quartos separados e também uma divisão adicional, uma sala de estar («E, um dia, talvez possa ser o quarto de uma criança, Katya!»)

«Não será», ripostou Katya. Estava determinada a casar com um homem rico.

Mas ficou feliz com a mudança. Podia finalmente afastar-se da cara feia de Masha. Meros meses depois, Katya percebeu que morria de solidão no tédio do novo bairro. A vida sem Masha era aborrecida. Era como se lhe tivessem arrancado uma espécie de motor da cabeça, um motor que dera impulso emocional à vida de Katya. E não era parva. Sabia que não podia falar com as suas novas vizinhas como falara com Masha. Aquelas raparigas só falavam de rapazes, maquilhagem e roupa, os três assuntos que ela e Masha nunca discutiam.

A princípio, entreteve-se folheando as páginas amarrotadas das edições da Vogue das raparigas. Depois, voltou a sentir-se sozinha, recordando os tipos da escola especial de matemática e física onde Masha andava, que costumavam visitá-la. Nem sempre percebia as coisas de que falavam, mas esses rapazes eram muito mais interessantes do que os que faziam babar as suas novas vizinhas. Katya sonhava com um casamento com um desses rapazes da matemática e física, desde, claro, que ganhasse muito dinheiro e não trabalhasse como um investigador aborrecido algures, como a sua mãe.

Por isso, decidiu restabelecer o contacto com Masha, apesar das dez estações de metro que as separavam. Sabia, lá no fundo, que o seu ciúme a norteava como a agulha de uma bússola, que Masha continuaria a ascender até à nata da sociedade e que Katya precisava de apanhar a sua boleia.

E assim, um ano depois de se mudar, Katya marcou o número dos Karavay, tão nervosa como alguma vez se sentira. Masha ficou surpreendida por ter notícias suas, mas foi uma surpresa agradável, felizmente. Convidou Katya para a visitar.

Quando Katya saiu da estação de metro da Bolshaya Polyanka e inspirou o cheiro a gasolina no ar, sentiu que tinha finalmente voltado para casa. A sensação intensificou-se mais ainda no apartamento de Masha, tornando-se tão intensa que não soube o que fazer. Era o apartamento dos seus sonhos, o apartamento onde passara metade da infância, o sítio que considerava ser o seu verdadeiro lar. Sentou-se à mesa da cozinha com Masha à sua frente e sentiu um aperto na garganta.

– Que se passa? – perguntou Masha.

– Tive saudades tuas – respondeu Katya. E não mentia.

Katya quisera impressionar a sua velha amiga, preparando-se para a visita e aplicando a maquilhagem com muito cuidado. Mas, naquele momento, olhando a cara sem adorno de Masha e envergonhada pelas suas lágrimas (afinal, Masha não sentira suficientemente a sua falta para chorar!), Katya percebeu a verdade. Tinha perdido outra vez. Apenas porque Masha existia num nível absolutamente diferente.

Um silêncio estranho caiu sobre a mesa. Masha e Katya beberam rapidamente o seu chá, fingindo não notar o óbvio: que não tinham tema de conversa. Katya sentiu-se devastada. A amizade com Masha era o único pretexto para estar naquele apartamento.

– Sabes uma coisa? – exclamou finalmente Katya, desesperada por acabar com o silêncio. – Há um tipo com uma Harley que gosta de mim!

– Uma Harley? – perguntou Masha, confusa.

– Uma mota daquelas fixes, sabes? Já esteve preso por roubo, acreditas? Disse-me que não pareço ter mais de dezasseis anos. E eu disse-lhe: «Tenho mesmo dezasseis!» E ele respondeu: «Não me tentes, bebé!» – Katya continuou a falar, com os olhos a crescer cada vez mais enquanto continuava a história, sem nunca deixar de olhar Masha.

Depois do tipo da Harley, Katya falou de Sveta, que vivia no seu novo prédio e cuja mãe lhe tinha batido por usar sombra nos olhos e batom, mesmo tendo já quinze anos, «acreditas?». Depois, havia a «Grande Rota da Seda» mesmo à frente do seu prédio, sempre cheia com as pessoas que vendiam coisas no mercado barato ao lado. E havia um soldado que tinha voltado da Chechénia com problemas de cabeça, que se sentava nos arbustos até a mãe sair para lhe dizer que todos se tinham ido embora, que a emboscada tinha acabado e que era seguro entrar para jantar.

Katya revelava ter um talento natural para contar histórias. Interpretou o papel do veterano de guerra aterrado, espreitando pelos arbustos, e, a seguir, do tipo demasiado confiante na Harley, da mãe de Sveta, gritando tão alto com ela que todos ouviam. Masha riu-se até chorar, limpando as lágrimas dos olhos e, quando Natasha voltou para casa do trabalho, Masha disse à mãe que também precisava de se sentar para ouvir. Katya repetiu a interpretação das melhores partes da história, aperfeiçoando-as e sentindo-se incrível e triunfal. Vencera! Funcionava!

Continuou assim durante anos. Katya tornou-se uma espécie de bobo da corte privativo para Masha. Com outras pessoas, Masha mantinha conversas muito intelectuais. Com Katya, descontraía e, por vezes, chegava mesmo a partilhar mexericos. Isso não incomodava Katya. Tal como não a incomodavam os olhares de soslaio dos amigos da escola de Masha. «Quem és? Onde estudas?» Percebiam imediatamente que Katya não era um deles. Mas também ela o sabia e não se incomodava, continuando a fazer-se de tonta. Masha apresentava-a sempre como a sua amiga mais antiga. «Amiga mais antiga.» Era como um título honorífico. Fosse como fosse, seria um deles, um dia. Talvez conseguisse até ser melhor do que eles. Não havia pressa. Tinha tempo... Era o que Katya pensava.

Até Innokenty. Sim. Até Katya reparar em Innokenty.