ANDREY

 

 

 

Tochinovka revelou ser o tipo de aldeia que se veria num documentário sobre o moribundo meio rural russo. Mais de metade das casas tinha portas e janelas entabuadas e as que continuavam habitadas pareciam estar a anos-luz da glamorosa capital e não a meros noventa e seis quilómetros. Enquanto os jovens moscovitas privilegiados tweetavam nos seus smartphones em aulas na universidade e aprendiam a forma correta de comer ostras importadas, injetando botox nos maxilares para não rangerem os dentes branqueados à noite com o stresse da vida moderna, aquele sítio tinha uma latrina fedorenta atrás de cada pequena cabana, como algo saído da Idade Média, e os aldeões traziam água de um poço distante, aquecendo-a sobre fogareiros de propano. A distância entre essas duas realidades poderia ser medida em séculos. As pessoas falavam a mesma língua, mas não se compreendiam umas às outras. Ninguém em Tochinovka sabia alguma coisa sobre ostras, botox ou o Snapchat. A única pessoa ali que tinha visto alguma coisa do mundo e dos paradoxos do século xxi fora Yelnik. Era como um agente duplo. E tinha sido assassinado.

Andrey sentou-se e fumou, pensando, sem qualquer azedume, numa qualidade notável que todos os russos pareciam partilhar: o completo desdém por uma existência comum e decente. Desprezo das pessoas no poder por todos os outros, durante pelo menos quatro gerações. A pobreza abjeta daquelas pessoas, que tinham sido as bestas de carga do socialismo, cobrindo o país com fios elétricos sem lhes ocorrer pedir água quente ou uma rede de esgotos. Como se as coisas tivessem de ser assim. Como se fosse inevitável que precisassem de se arrastar pela neve para satisfazer necessidades fisiológicas no inverno, limpando o rabo com um pedaço de jornal rasgado e lavando as mãos com água de um velho balde ferrugento.

Que raio esperara Yelnik encontrar ali? Estava suficientemente bem na vida. Quando saiu da prisão, podia pagar, pelo menos, uma casa de banho aquecida.

A porta da casa degradada de Yelnik estava trancada e Andrey, procurando uma chave nos sítios habituais, puxou o tapete e passou os dedos à volta das portadas pesadas das janelas. Nada. A propriedade não era grande, mas tinha sido bem tratada. Havia uma horta com alguns canteiros, um batatal e até uma estufa. A porta desta estava aberta e Andrey entrou. Ao contrário da horta saudável, a estufa tinha sido muito negligenciada, o que fazia sentido, já que o hortelão desaparecera durante o inverno. O ar estava quente e bafiento, mas não cheirava, como se esperaria, a pepinos e tomates. Não. Cheirava a morte e a podridão. Andrey estremeceu. Havia um grande pássaro morto caído no chão, com os seus ossos finos e brancos brilhando através de penas pretas imundas. «Terá voado para aqui durante o inverno e, como ninguém voltou a abrir a porta, não conseguiu sair», pensou Andrey. Significava que o assassino de Yelnik tinha as mãos sujas também com o sangue de uma ave.

– O que torna as pessoas diferentes dos pássaros? – questionou Andrey em voz alta enquanto se erguia no alpendre, indeciso, brincando com as moedas no seu bolso. – As pessoas sabem abrir portas.

Pressionou uma moeda do bolso com firmeza na palma da mão. Também guardava no bolso um clipe precisamente para ocasiões como aquela. Olhou à sua volta, furtivo. Não viu vivalma.

– Compreendes, não compreendes, Yelnik? É porque cresci nas ruas, porque a minha família era pobre, por todos os maus exemplos na minha vida – murmurou Andrey enquanto endireitava o clipe. – Os males das mentes desocupadas e isso tudo!

Andrey foi até ao carro e abriu o porta-bagagens, cantarolando alegremente enquanto erguia uma estreita chave de boca. Saltitava um pouco com cada passo enquanto regressava à porta da casa. Voltou a olhar em redor. O silêncio mantinha-se. Encaixou a chave na parte inferior da fechadura e introduziu o clipe na parte superior, com a ponta apontada para cima. Girou lentamente o clipe, contando os contactos: «Um, dois... cinco.» Ouviu-se um estalido ligeiro com cada movimento circular. Andrey olhou encantado para o céu de verão, polvilhado com alegres nuvens brancas. Empurrou suavemente a porta e fê-la abrir-se sem sequer chiar.

– Alguém em casa?

Mas tudo o que obteve em resposta foi silêncio completo e escuridão impenetrável.

Procurou um interruptor de luz com a mão. Com um ligeiro estalido, acendeu-se um enorme candelabro completamente deslocado na aldeia empobrecida.

Andrey assobiou. Nada ali dentro se enquadrava em Tochinovka. O candelabro, de vidro de Murano laranja berrante, pendia no alto, sobre ele, e Andrey precisou de um momento para perceber que não havia segundo piso. Os seus olhos perceberam o espaço surpreendentemente grande, interrompido apenas por traves de madeira pintadas de castanho-escuro.

A sala era quadrada, com um chão de tacos de carvalho de aparência nobre perto da entrada e uma grande carpete turca mais para dentro. Sobre a carpete, um sofá de couro branco, um par de poltronas de aspeto futurista e uma mesinha estreita. Mais além, a luz era refletida por uma cozinha repleta de cromados, como as que se veem nas revistas de decoração. Cortinas pesadas de veludo cobriam as janelas.

Andrey forçou-se a olhar para fora. Com efeito, Tochinovka continuava lá, pobre e cinzenta. «Surreal», pensou, abanando a cabeça enquanto explorava. Primeiro, um quarto, branco e minimalista, com um armário enorme repleto de roupas caras (calças de ganga italianas e fatos ingleses). Depois, um quarto de hóspedes no mesmo estilo. E uma grande casa de banho com um chuveiro elegante feito de pedra porosa bege e uma sanita moderna. Andrey girou a torneira do chuveiro, desconfiado. A água começou imediatamente a correr. Quente e com pressão espantosamente elevada. Yelnik gozara de todos os benefícios da civilização, não num qualquer subúrbio luxuoso, mas ali mesmo, na pobre Tochinovka. Tentaria esconder-se entre os velhos bêbados e as velhas meio cegas? Se o ex-assassino tinha realmente deixado de matar, ganharia dinheiro de alguma outra forma. E, avaliando pela sua casa, não ganharia pouco. Certamente, não sustentaria tudo aquilo cultivando batatas.

Voltando à sala, Andrey olhou a lareira com inveja. Era esguia, moderna e alguns centímetros acima do chão. O assassino Yelnik tinha bom gosto. Talvez tivesse contratado um bom decorador. Como descreveria o trabalho? «Faça-me um palácio dentro desta cabana miserável?» Mas porquê? Se tivesse havido um decorador e Andrey conseguisse encontrá-lo, faria ideia da origem do dinheiro do seu cliente tresloucado?

Andrey saiu, sentou-se no alpendre e acendeu um cigarro. Estava completamente confuso. Quando se preparara para vir ali, quase se convencera de que Yelnik, envolvido como estava no negócio das mortes por contrato, teria ficado do lado errado de algum acordo antigo. Mas aquela casa tresandava a dinheiro novo e às últimas tendências, se pudesse pôr a questão nesses termos.

O telefone no bolso do seu casaco deu sinal. Uma mensagem de texto. «O companheiro de cela do Yelnik chamava-se Zitman. Chamam-lhe Doutor.» Fiável Arkhip! O Doutor, soldados à paisana, negócios recentes, homicídio por afogamento, meio ano num congelador, um cadáver sem entranhas, atirado novamente ao rio Moskva...

– Olá!

Andrey ergueu a cabeça.

Um homem baixo com síndroma de Down, talvez com vinte anos, erguia-se à sua frente. Esboçava um sorriso tímido e os seus olhos pequenos eram inocentes e bondosos.

– Olá – respondeu Andrey.

– És o novo dono? – O homem tinha começado a aproximar-se do alpendre.

– Não – respondeu Andrey com franqueza, deslizando sobre o degrau para lhe dar espaço.

– Sou o Andreyka – disse o seu novo amigo. – Tens um cigarro?

– Claro, amigo. Temos o mesmo nome. – Andrey passou-lhe o maço de tabaco.

Andreyka tirou alguns e prendeu-os atrás de uma orelha. Passaram vários minutos a fumar em silêncio.

– O Igor não volta – disse Andreyka, subitamente, com uma voz estranha e aguda como a de uma velha. – Não, não volta!

– Porque dizes isso? – perguntou Andrey, incomodado por aquele contorcionismo verbal.

– Foi-se embora! O amigo veio buscá-lo. Um homem simpático. Com um carro azul.

– Ah sim? – Andrey sentiu o corpo ficar tenso, como se preparasse o salto sobre a presa. – Que tipo de carro?

– Azul. – Andreyka olhou Andrey como se o achasse estúpido. – Disse: «Vai, Andreyka. Já não preciso da tua ajuda.» Porque lhe limpava a neve com a pá no inverno. Disse: «Chegou o meu amigo. É um homem importante. Devo-lhe a vida. Chegou a hora de pagar as minhas dívidas.»

– Como era esse homem?

– Era um homem. Importante. Percebes?

– E os olhos ou o cabelo? Lembras-te?

– Escuros. E tinha um casaco preto. E um carro azul.

Andrey percebia que não obteria mais nada ali. Bateu à porta de algumas casas pequenas, mas nenhuma das velhas tinha visto um desconhecido de olhos escuros e não recordavam quaisquer carros azuis. Voltou a dar a volta à casa e à horta, daquela vez observado pelo olhar amistoso do outro Andrey. Depois, foi para casa, pretendendo enviar alguns peritos forenses para fazerem uma busca na casa de Yelnik. Mas desconfiava que já teria descoberto tudo o que haveria para descobrir sobre o homem do carro, o misterioso salvador de Yelnik.

Não encontrariam mais nada de interessante ou substancial.