MASHA
Mas Masha acabara de se deitar.
Tanto ela como Innokenty tinham mantido o silêncio na viagem de regresso do hospital. Masha precisava de interiorizar a palestra do Dr. Gluzman durante algum tempo. Era uma loucura, uma fantasia impossível. Mas o impossível e o fantástico encaixavam tão bem no padrão que Masha já reconhecera nos homicídios. Era lógico de um modo louco. O estudo de Masha dos assassinos em série ensinara-lhe que justificações loucas e lógicas em simultâneo eram o seu forte. Olhou fixamente a Circular do Jardim que voava pela janela. Precisava de entrar na cabeça do assassino. «Quem é, Sr. Jerusalém Celestial?»
Carros caros passavam a grande velocidade. Ah, Moscovo. Era uma cidade que nunca dormia. Os restaurantes também passavam a voar, tal como as luzes dos clubes de strip de luxo. O último trólei da noite arrastou-se, parecendo um dinossauro herbívoro ao lado dos Jaguars com os seus sorrisos de predador. Estava cheio de gente muito diferente do condutor do Porsche descapotável que os esperava no semáforo. Masha franziu a testa ao ver a sua cara arrogante.
– Aposto que o nosso homem não teria dinheiro para um Porsche – disse Innokenty, parecendo ler-lhe a mente. – Talvez seja motorista de autocarro. Por outro lado, se ainda não o apanharam, terá estudos.
Masha estremeceu, recordando o arquiteto com aquela medalha espetada na pele. «E será cruel», pensou. «Imaginará a riqueza reluzente da Nova Jerusalém à sua volta. Ouvirá o coro dos anjos, abafando os gritos das vítimas. Será tão frio como o jaspe e as esmeraldas nas muralhas.»
Innokenty estacionou o carro que Masha partilhava com a mãe na garagem e acompanhou-a até à porta.
– Boa noite, Mashenka – disse, gentilmente, olhando-a com uma espécie de tristeza terna.
Masha sorriu, beijou-o na face e deu-lhe um abraço rápido. Não queria mesmo nada dormir sozinha naquela noite. Mas pensar em dormir com Innokenty era ridículo.
*
Masha entrou silenciosamente no apartamento e despiu o casaco sem acender a luz do átrio. Não queria incomodar a mãe e o padrasto. Ouvia a respiração serena e contida dos dois no quarto das traseiras e, pela primeira vez, sentiu alívio por haver um homem em casa. Enfiou-se na cama e encolheu-se em posição fetal. Aqueceu um pé de cada vez, tentando banir as imagens terríveis da sua cabeça. Os seus sonhos, quando chegaram finalmente, foram incrivelmente belos.
Sonhou com Moscovo na Idade Média, com uma igreja em cada encruzilhada. As paredes das igrejas estavam decoradas com hera e outras plantas, com flores e pássaros, e Masha inclinou a cabeça para trás e fitou uma cúpula que refletia o sol. Caminhava sobre um passadiço de tábuas, olhando avidamente em todas as direções. Viam-se flores a toda a volta. Ouvia galos e pássaros cantando e vacas mugindo. E o ar cheirava a erva acabada de cortar. Para onde quer que se virasse, Masha conseguia ver as ameias de tijolo vermelho do Kremlin, alongando os seus dentes sobre as margens verdejantes do Moskva. No seu sonho, Masha viajou sem esforço da Colina de Borovitsky, onde se erguia o Kremlin, para as terras baixas da margem oposta do rio e mais para sudoeste, até à Colina de Shvivaya. Tudo o que via estava fresco como no início do mundo, quando os seres humanos ainda não tinham sido criados... E, no entanto, havia já jardins e catedrais com incontáveis cúpulas flutuantes. E tudo parecia muito lógico e correto. Todas as ruas convergiam nos portões do Kremlin. As torres das velhas muralhas concêntricas, Kitay-gorod, Bely Gorod e a Skorodom, eram mais altas e mais numerosas quanto mais próximas estavam do próprio Kremlin. E, quando Masha deu consigo subitamente sentada no Campanário de Ivan, o Grande, uma vista de tirar o fôlego alastrava-se por baixo dos antigos mosteiros, dançando em círculos ancestrais.
Masha acordou com uma sensação de deleite que não a visitava desde a infância, como a sensação de abrir os olhos e saber que havia prendas debaixo da árvore e que o amor incondicional da família nos envolvia calorosamente. No duche, a sensação começou a dissipar-se um pouco. Pensou, algo envergonhada, que a Rússia do sonho era a imagem falsa a que os nacionalistas fanáticos se apegavam. Agiam em nome do céu azul, das cúpulas douradas, das crianças de bochechas rosadas e das donzelas com trajes tradicionais. Mas percebeu que uma coisa no seu sonho fizera sentido: tudo fora belo, bom e simples até onde a vista alcançava porque não havia pessoas presentes.
Quando saiu do chuveiro, ocorreu-lhe uma nova pergunta: que aspeto teria Moscovo na mente do assassino? Poderia realmente ser assim tão sentimental, pingando mel? «Não», pensou Masha com confiança. O seu assassino sabia tudo o que havia para saber acerca das pessoas. Não as perdoava. Matava-as.
Dirigiu-se para a mesa da cozinha. O padrasto piscou-lhe o olho sobre a chávena de café, mas a mãe manteve as costas voltadas para a filha. Fazendo um alarido terrível junto ao fogão. Masha sorriu. Era a forma como Natasha proclamava que, como qualquer mãe decente, gostaria de saber alguma coisa sobre a vida pessoal da sua filha. Quando Masha voltava para casa depois da meia-noite, que poderia a mãe presumir além de algum encontro romântico? «Oh, mamã», pensou Masha, enchendo uma chávena com o café sempre excelente de Belov. «Se soubesses!»
Podia ter esclarecido facilmente o mal-entendido, informando-os de que não houvera qualquer romance na noite anterior? Mas teria de fazer uma afirmação semelhante no dia seguinte e no dia a seguir a esse. E Masha odiava falar de si. A sua mãe culpava o secretismo irritante que tinha herdado do pai.
– Estás linda, mamã! – elogiou Masha, enquanto se levantava e dava um beijo na cabeça da mãe, notando a pintura habilidosa do cabelo.
– A sério? – Natasha virou-se, satisfeita.
– É como te dizia! – ouviu o padrasto dizer enquanto se dirigia para a porta com passo ligeiro.