ANDREY
Andrey ponderou os mistérios do universo no mesmo local onde a maioria da humanidade o fazia: sentado na sanita. Pensou na casa de banho de Yelnik, na sanita, no autoclismo e no piso de mármore, tudo escondido naquela aldeia perdida. E ali, sob os pés de Andrey, não havia nada além de tábuas desniveladas. A sua latrina era praticamente medieval. «Até um aldeão comum terá uma fossa assética hoje em dia», censurou-se Andrey. E que tinha ele? Saneamento ao estilo soviético, com folhas de jornal penduradas de um prego na parede.
Que monte de merda. Literalmente. E o jornal... Quando voltou para dentro, lá estava, o omnipresente MK. No tempo em que Andrey apanhava o comboio para casa, comprava-o, por vezes. O MK era o tipo de jornal que não exigia grande esforço ao cérebro. Ali, por exemplo, estavam os mais recentes relatos de crimes chocantes. Algo lhe arrepiou a memória, algo sepultado, como uma moeda poeirenta que tivesse rolado para debaixo do sofá. Tinha lido alguma coisa, não a ficha de um caso ou um romance... algo sobre a mãe de um soldado cujo cadáver lhe tinha sido enviado para casa, achando-o surpreendentemente leve porque lhe tinham sido retirados o coração, os rins e o fígado. A versão oficial era que o soldado se tinha suicidado. «As moedas!» Catorze delas no ventre vazio de Yelkin.
Andrey apressou-se para casa, onde Marilyn Monroe o esperava com uma expressão tão exigente que ninguém teria adivinhado que, depois da ração da noite anterior, também tinha convencido Andrey a dar-lhe meia dúzia de salsichas que comprara para si.
– Achas que és um cão? – perguntou Andrey enquanto vestia as calças e calçava as botas, bebendo café morno. – Não, Marilyn. És um porco. Vou enxotar-te para morreres na rua, percebes?
Mas Andrey não conseguia convencer-se, pensou, enquanto corria para o carro. Parecia metade de um casal velho. Podia gritar tanto quanto quisesse, mas não conseguiria livrar-se de Marilyn.
Quando chegou finalmente ao gabinete, depois de lhe parecer que tinha passado horas no trânsito, fez questão de não reparar na expressão da sua estagiária, que sugeria algo secreto e importante. Em vez disso, sentou-se diante do computador e acedeu ao site do MK. Os especialistas em marketing teriam considerado que o site do jornal forçava os limites do mau gosto, mas Andrey não procurava estilo. Precisava de um artigo que teria uns dois anos. Começou a pesquisar, introduzindo dois ou três termos de cada vez (órgãos suicídio soldado, exército, órgãos roubados e assim sucessivamente) até encontrar. Ali estava. O suicídio do soldado D., cadáver enviado para casa, etc., etc., etc... Ali. General Ovcharov nega rumores de roubo de órgãos e classifica alegações como provocação deplorável... Muito bem, nada de interessante depois daquilo. Mas, pelo menos, passara a ter um apelido. Escreveu o nome do general no seu bloco, juntamente com o nome do repórter.
O telefone tocou e Andrey e Masha deram um salto em simultâneo. Anyutin chamava-o para partilhar pormenores da investigação. Andrey sentia-se tão agradado consigo mesmo naquela manhã que convidou simpaticamente a estagiária para o acompanhar. Era a sua oportunidade para ver como trabalhavam os verdadeiros profissionais, tipos que não tinham medo de sujar as mãos. Nada como o palavreado de rapariguinha que estava habituada a ouvir na sua faculdade fina.
– Preciso mesmo de falar consigo – disse-lhe ela no elevador.
– Mais tarde – respondeu Andrey, empenhado no seu papel de herói severo.
A estagiária calou-se. Mas, quando bateram à porta do coronel e entraram, foi a vez de Andrey se calar.
Anyutin não estava sozinho. Katyshev também estava sentado no gabinete. Andrey mal teve tempo para pensar no que se passava quando Anyutin, demonstrando toda a hospitalidade de um anfitrião polido, sentou a estagiária à direita do procurador todo-poderoso, empurrando Andrey para uma cadeira um pouco mais distante, à esquerda.
– Então como se estão a dar? – começou Anyutin, enquanto Katyshev se aproximava muito de piscar o olho à sua queridinha.
Andrey sentiu uma pontada de raiva a crescer outra vez dentro dele. A sensação ficou ainda mais forte quando a pequena idiota sorriu e disse:
– Muito bem!
– E então, capitão? Como avalia o contributo da estagiária Karavay até agora?
– Dou-lhe um Excelente – disse Andrey, com voz tão repleta de desdém que até um surdo teria percebido. – Ainda bem que o Senhor Katyshev está connosco. É o homem com quem queria falar hoje.
– Ao seu dispor – disse o procurador com um aceno da cabeça grisalha.
– Investigo um assassino contratado chamado Yelnik. Talvez se lembre dele... Foi acusado de homicídio, mas acabou absolvido no caso Nungatov. Foi o procurador responsável.
– Sim, lembro-me – disse Katyshev, voltando a acenar com a cabeça. – Não é uma história muito agradável. Os detetives conseguiram encontrar apenas indícios pouco sólidos e o advogado de defesa, Tishin, creio, distorceu os factos até que, no final, deixou de se perceber quem tinha matado quem. Yelnik cumpriu apenas alguns anos por se recusar a colaborar. Que fez ele desta vez?
Andrey estava pronto para aquilo e encheu o peito com orgulho.
– Na verdade, Yelnik foi assassinado e investigo a sua morte. Depois de sair da prisão, regenerou-se. Mudou-se para a aldeia de Tochinovka para criar galinhas e cultivar batatas. Mas a casa dele, que parece uma cabana degradada de fora, é uma moradia de luxo lá dentro.
– Tinha um mandado de busca, Yakovlev? – interrompeu Anyutin.
– A porta estava aberta. Mais ou menos – disse Andrey. – Mas este é o pormenor estranho. Quando esteve preso pela última vez, o companheiro de cela de Yelnik foi um tipo chamado Zitman, também conhecido como Doutor. O Doutor tornou-se famoso por viajar por regiões pobres do mundo, convencendo as pessoas a vender os seus órgãos... e por tostões, por comparação com o preço corrente internacional. Quando Zitman saiu da prisão, mudou-se para Israel. Mas tenho uma fonte que me diz que Yelnik foi visitado várias vezes por oficiais militares não identificados. E a lista de chamadas inclui telefonemas curtos múltiplos, durando apenas alguns segundos, para um número do Ministério da Defesa. – Andrey olhou cada um dos membros do seu público atento. – Entretanto, há um par de anos, os corpos de soldados começaram a ser enviados para casa... sem os seus órgãos internos. É esta a minha teoria: Yelnik foi inspirado por Zitman, mas decidiu seguir uma abordagem mais direta. Em vez de tirar um único rim, levava os dois, juntamente com o coração e o fígado. Basicamente, tudo o que conseguisse vender. Um soldado jovem e saudável podia valer-lhe bom dinheiro, mesmo depois de o dividir com os enfermeiros e os comandantes. Talvez recorde que Yelnik era célebre por fazer os seus homicídios parecerem suicídios. Provavelmente, os seus contactos militares localizariam algum recruta estúpido, um órfão ou alguém de família pobre, alguém cujo suicídio não causasse escândalo, passando essa informação a Yelnik. Mas terá enganado alguém, algures, e vieram cobrar o que lhes devia. Foi por isso que os seus órgãos tinham desaparecido. Decidiram cobrar a dívida em géneros!
– Alguém? Algures? – repetiu Anyutin. – Uma teoria muito pouco sólida, não lhe parece, capitão?
Mas a expressão radiante do chefe traía a dúvida nas palavras. Agradava-lhe especialmente que o próprio Katyshev estivesse presente para ver o trabalho notável da sua gente.
– Coronel Anyutin – disse Andrey com um sorriso. – Já tenho o nome de um general e de um jornalista que escreveu um artigo sobre os soldados, há um par de anos. Não será muito difícil chegar ao fim disto.
– Então, se percebi bem – disse Katyshev, cruzando as pernas –, este homicídio não tem qualquer ligação com a minha antiga acusação contra Yelnik? Isso preocupar-me-ia. É então um crime completamente isolado?
– Desculpe, mas não me parece que seja isolado – disse uma voz jovem e cristalina.
«Mas que raio?!» Andrey virou-se para olhar a estagiária com desagrado. Fixava os olhos no chão, com teimosia súbita na face.
– Diga-nos mais, estagiária Karavay – pediu Katyshev com um formalismo exagerado na voz, olhando a cara pálida da rapariga. Andrey achou que explodiria de fúria a qualquer momento.
«Não lhe parece? Esta fedelha de merda, toda embrulhada nos seus livros e assassinos em série. Não lhe parece!»
– Só tenho uma teoria muito vaga, por enquanto – começou Karavay. – Mas parece-me que isto tem um padrão. Uma série de homicídios que começaram há quase dois anos na velha central elétrica.
– Ah sim? Ouçamos uma explicação – disse Anyutin.
– Lamento – disse Masha, erguendo o olhar –, mas ainda não estou preparada para uma explicação completa.
«Inacreditável», pensou Andrey. Que esperavam que dissesse depois daquilo? Anyutin parecia surpreendido. Se tivesse sido outro membro qualquer da sua equipa, alguém além daquela rapariga que ali estava como favor a alguém que sabiam muito bem quem era... Que raio era aquilo?
Andrey ergueu-se com um grunhido e dirigiu a Katyshev uma ríspida despedida militar. Enquanto saía, viu que Katyshev olhava a estagiária. Era um olhar atento e cheio de apreço. Mas havia outra coisa nele. Katyshev olhava-a com admiração.