INNOKENTY

 

 

 

– Ouça, já disse aos detetives tudo o que sei – afirmou o nadador a Innokenty enquanto atirava a toalha molhada para um banco. – Se a investigação estiver num impasse ou coisa parecida, isso não quer dizer que possa vir fazer perguntas pela vigésima vez, não é?

Innokenty não respondeu. Tinha passado uma hora à espera que aquele tipo acabasse o seu treino, espreitando por uma janela do balneário enquanto o nadador deslizava pela água de um azul nada natural, para trás e para diante, sem se cansar. A sua cabeça parecia pequena sobre a superfície lisa da água e perfeitamente hidrodinâmica, desaparecendo e reaparecendo com intervalos regulares. Innokenty, que preferia trabalho mental, ficou hipnotizado por aquela espantosa concentração, por aquela subordinação da mente ao corpo.

Mas uma hora inteira à espera, inspirando o odor a cloro e suor, era suficiente para lhe azedar a disposição. Finalmente, estavam frente a frente, um deles com um fato de tweed cinzento e um par de calças de bom corte e o outro quase nu, expondo a musculatura generosa dos ombros e a face de linhas surpreendentemente definidas, com nariz pontiagudo e queixo saliente.

– Não lhe tomarei muito tempo – disse Innokenty, num tom autoritário, mesmo sem elevar a voz.

Tinham a mesma altura. O nadador tentou avaliá-lo e, a seguir, abanou a cabeça como um cão molhado. Algumas gotas salpicaram a camisa de Innokenty e baixou o olhar, irritado, enquanto as gotas ensopavam o tecido.

– Desculpe – disse o nadador, estendendo finalmente a mão. – Nikolay Snegurov.

Sentaram-se ali mesmo, nos bancos de madeira. Não havia mais ninguém por perto.

– Era amigo e colega de Solyanko. Pode dizer-me que tipo de homem era?

Snegurov olhou Innokenty. O azul da piscina parecia congelado nos seus olhos.

– Há uma coisa que tem de perceber – começou. – O Solyanko não era meu amigo. Talvez os escritores ou os cientistas possam ser amigos, mas, no desporto, não acontece. Temos de vencer. Ou de ficar em terceiro, na pior das hipóteses. E não temos muito tempo. Somos como bailarinos. Mais próximos da aposentação com cada ano que passa. Esfalfamo-nos durante uns vinte anos, no máximo, as lesões amontoam-se e vamos para o duche. Quando ouço pessoas falarem de «concorrência saudável», dá-me vontade de vomitar. Não somos uns oficiais da marinha mariconços sentados atrás de secretárias no Almirantado. Aqui, se não formos aos Jogos Olímpicos, treinamos mais quatro anos e talvez aconteça. Sabe porque lhe digo isto tudo? Porque o Solyanko era um monte de merda. Estou-me nas tintas para o respeito pelos mortos. Era um miúdo quando comecei a nadar. Nem sequer tinha dez anos e estava sempre ocupado, sempre em campos de desporto para jovens. Não lia livros, não corria atrás de raparigas. Abdicámos das nossas vidas inteiras. Tudo por um objetivo mais elevado, percebe?

– Não sei se percebo – disse Innokenty, cuidadoso.

– Não? Talvez não tenham tomado nota disto antes por não acharem que fosse importante. Ou talvez tenham verificado o meu álibi. Graças a Deus, é sólido. O Solyanko e eu éramos os líderes da equipa russa. Todos achavam que a medalha iria ou para o Solyanko ou para o Snegurov, que um deles defenderia a honra do país. Até nos chamavam Equipa SS por causa das nossas iniciais. Por isso, naturalmente, treinávamos como se estivéssemos possuídos. Éramos jovens, percebe? Estávamos no auge. Era a nossa grande oportunidade. O Solyanko e eu mal falávamos nesse tempo. Não só porque nunca gostei dele, mas porque estávamos ocupados de mais a treinar. E começaram a circular rumores. De que o Solyanko tomava EPO.

– Tomava o quê?

– EPO. Eritropoietina. É uma droga que melhora a resistência. Aumenta o oxigénio no sangue ou algo assim. Pode melhorar o desempenho até quinze por cento, basicamente.

– Então é doping.

– Uuuu, assustador, não é? O lobo mau! Doping no desporto! – A expressão de Snegurov tornou-se ameaçadora.

Innokenty congratulou-se, subitamente, por Masha não estar com eles. O tipo parecia realmente monstruoso.

– Estou tão cansado disso, foda-se. Sabe porquê? Porque é tão... qual é a palavra? Hipócrita. Estes burocratas todos, todos tão sérios, dizendo «Oh, nunca permitiríamos doping nos nossos jovens campeões!». Mas todos o fazem, percebe? Todos! Todas as competições, hoje em dia, estão cheias de atletas dopados. Furosemida, EPO, hormonas de crescimento para a massa muscular... Somos informados de testes «surpresa» com uns dias de antecedência ou os resultados das análises desaparecem ou usamos sangue tirado uns dias antes. Por isso, as análises nunca encontram nada. E sabe porque lhe digo isto? Todos aqui experimentaram pelo menos uma vez. E todos acham que a Federação Internacional de Natação é demasiado rigorosa. Mas os representantes do governo... Por um lado, querem desesperadamente que ganhemos. Por outro lado, a Rússia precisa de fingir que luta contra o doping tanto como qualquer outro país, talvez mais ainda. E, além de tudo isto, todos ouvimos o que o presidente disse sobre o doping nos Jogos Olímpicos de Sochi. E foi então que encontraram um pacote no meu cacifo. Alguém passou a informação a um dos jornais desportivos nesse mesmo dia e, porque a federação não conseguiu encobri-lo, decidiram fazer de mim um exemplo. De repente, era como se estivéssemos em mil novecentos e trinta e sete. Uma enorme purga, foda-se. Há presunção de culpa, percebe? Fui banido da competição durante dois anos e falhei os Jogos Olímpicos. Enquanto o meu advogado tentava provar que o pacote não era meu, perdi o meu ouro.

– E as drogas não eram realmente suas? – perguntou Innokenty.

Snegurov fungou tristemente.

– Já não tenho motivo nenhum para mentir a esse respeito. Mas sei de alguém que poderia ter beneficiado com a minha desgraça, que poderia ter informado a imprensa e que poderia ter colocado lá o pacote, sem problemas. Mas, como sabe, o Solyanko nunca chegou aos Jogos Olímpicos. Aquele homicídio desvairado não esteve relacionado com o doping, claro, mas perguntou-me que tipo de homem era. Um monte de merda.

Snegurov levantou-se e Innokenty fez o mesmo. Apertaram a mão um ao outro.

– Não somos atletas olímpicos – disse o campeão falhado, abanando a cabeça. – Somos gladiadores, pagando com o nosso suor e sangue pelo direito de sobreviver.

Kenty pensou que Snegurov teria encontrado tempo, finalmente, para ler alguns livros.

– Quem venceu o seu evento? – perguntou, quando as costas largas do nadador tinham já passado a porta.

– Um chinês qualquer. – Snegurov olhou para trás e esboçou um sorriso de lobo. – Uns anos mais tarde, apanharam o treinador dele com uma pasta cheia de hormonas de crescimento.