ANDREY

 

 

 

Andrey pusera o jornalista na ordem. Tinha conseguido tudo o que pretendia, incluindo a morada de Alma Kutiyeva. Naquele momento, abria caminho por outro engarrafamento moscovita. A viagem não era uma tortura apenas por ser lenta. Sabia que encontrar-se com Alma Kutiyeva, a mãe do soldado cujo cadáver tinha voltado para casa oco, não seria fácil. Andrey era uma das muitas pessoas no mundo que não sabiam expressar a sua solidariedade. Gaguejava, corava e sentia-se horrível, tinha lágrimas nos olhos e um aperto na garganta, mas nunca conseguia encontrar as palavras certas. Que podia dizer a uma mãe que tinha perdido o filho? Que tinha sido morto por um profissional e que, provavelmente, não teria sentido dor? Ajudaria dizer-lhe que o seu rapaz tinha sido vingado e que o assassino parecia ter sido executado por um psicopata, afogado sob o gelo do Moskva segundo alguma tradição russa?

Andrey recordou uma e outra vez a conversa com Karavay e o seu namorado janota e tentou encontrar uma discrepância que provasse que nada daquilo tinha algo a ver com histórias assustadoras inspiradas pelo misticismo medieval. Talvez fosse apenas dinheiro sujo, política suja, paixão suja, os três pilares que habitualmente suportavam a lógica do homicídio. Mas aquelas banalidades não batiam certo com o gelo, o congelador, as línguas cortadas na central elétrica, o braço cortado em São Basílio, a mulher do governador esquartejada em Kolomenskoye. Do outro lado, o profeta João e o seu Apocalipse? Ivan, o Terrível? Encaixavam na perfeição. Não queria envolver-se com aquele disparate. Mas Masha já o fizera mergulhar por um buraco no gelo, até um sítio onde não havia peixes nem plantas, apenas água suja repleta de insanidade. Teria de encarar aquilo se pretendia travar os crimes.

«A lógica de um assassino é mortal», pensou Andrey, fazendo trocadilhos maus na sua cabeça. Por fim, saiu da Circular movimentada.

 

*

 

A casa de Alma Kutiyeva situava-se nos arredores da cidade. O apartamento parecia um acampamento de ciganos, com o espaço limitado cheio de gente, todos a falar alto. Alma trancou-se com Andrey na casa de banho para poderem falar. A divisão estava cheia de roupa molhada e havia tecido vermelho flutuando numa banheira de espuma rosada. Andrey sentiu repulsa, a princípio, até perceber que era apenas lixívia barata.

Alma ofereceu-lhe um banco baixo e sentou-se num canto da banheira.

– Desculpe isto – disse, indicando a porta com a cabeça. O clamor de vozes múltiplas de uma família numerosa continuava fora do seu refúgio. – Que queria perguntar-me?

– Bom... – começou Andrey, retirando uns papéis da pasta –, investigo um caso que pode estar relacionado com a morte do seu filho.

– Retalharam outro soldado? – perguntou Kutiyeva com uma gargalhada amarga. – Ou tem a ver com o dinheiro?

– Qual dinheiro? – perguntou Andrey, franzindo a testa.

– Já me ofereceram dinheiro – disse Alma, erguendo a cabeça. – Acho que se terão sentido mal.

Andrey não disse nada, preocupado.

– Não sabia? – Alma enfiou uma mão no bolso do seu velho roupão verde. – Um detetive veio falar comigo, alguém do gabinete do procurador militar. Tinha uma pasta. Pediu-me, muito delicado, que esquecesse tudo, mas o meu irmão e eu pusemo-lo na rua. Não vendemos os nossos mortos.

Andrey via que apertava a mão com força por baixo da flanela esfarrapada.

– Trouxeram o meu rapaz para casa sem entranhas! Estripado como uma galinha! Depois, disseram que se tinha matado! Achavam que vivíamos na província e nunca viríamos a Moscovo lutar por justiça? Achavam que a sua mãe não perceberia? Que ninguém falaria em defesa dele? – Alma tinha começado a gritar.

Fora da casa de banho, por oposição, as coisas tinham ficado surpreendentemente calmas. Andrey imaginou-os todos à escuta. Voltou a franzir a testa, intensamente.

– Encontrei outras mães! Os filhos tinham estado nos mesmos sítios onde esteve o meu. Também eram rapazes sem pais! Quem os protegerá? Eu. Já estou em Moscovo há seis meses e convenci-as a contratar um detetive para esclarecer o caso. Alguém de Khabarovsk como nós.

Andrey puxou por uma fotografia de Yelnik e passou-a a Alma.

– Será este o vosso detetive, o do gabinete do procurador militar?

Alma sossegou por um momento e tirou lentamente a mão do bolso. Aceitou a fotografia e devolveu-a a Andrey, como se olhá-la a deixasse agoniada.

– É ele – disse, com voz subitamente cansada.

– Muito bem – disse Andrey. – Estava mais alguém em casa quando cá veio?

– Só eu. – Alma pensou por um momento. – Depois, o meu irmão chegou. Como disse, pusemo-lo na rua.

– Muito bem – repetiu Andrey. Depois, abruptamente, pegou-lhe na mão. – Sinto muito.

Alma sobressaltou-se e afastou rapidamente a mão, fazendo Andrey arrepender-se. Era uma mulher muçulmana e ele era um desconhecido, sentado com ela naquele espaço exíguo. Uma casa de banho cheia de roupa molhada! Andrey levantou-se e guardou a fotografia de Yelnik.

– Desculpe. Obrigado. Vou andando.

Conduziu-o em silêncio para fora da casa de banho, passando pelos parentes no corredor e despedindo-se com um «adeus» tão desprovido de emoção como o som da porta a fechar-se atrás dele.

Andrey deixou-se ficar sentado num banco diante do prédio e fumou. Mais uma peça do puzzle encaixava. Yelnik viera ali pessoalmente. Porquê? Andrey olhou, pensativo, as amargoseiras que dançavam com a brisa. Alguém as plantara à volta da lixeira do bairro e floresciam cedo naquele ano. Depois de ler no jornal que uma das mães tinha percebido e que vinha para Moscovo fazer barulho, Yelnik veio ali para a comprar... e para a matar se recusasse o dinheiro. Mas o irmão de Alma tinha chegado e Yelnik não pôde levar o plano até ao fim. Depois, alguém o matou a ele. Alma escapou à morte graças a alguém que apreciava enigmas medievais. Andrey atirou a beata do seu cigarro para o caixote do lixo e esfregou os olhos.

Chegara o momento de ir para casa, onde o esperava a companhia de Marilyn Monroe.