MASHA
Masha e Innokenty esperaram à porta do apartamento, ambos desconfortáveis. Masha sentia-se estranha porque sabia que estavam prestes a questionar um dos conhecidos de Innokenty no seu mundo secreto de colecionadores sobre a coisa mais vil que conheciam: o roubo. Innokenty talvez se sentisse estranho por não saber de que forma aquela visita afetaria negócios futuros.
A porta abriu-se finalmente, revelando um homem idoso e magro com uma camisa velha e desbotada e calças tão engomadas que brilhavam.
– Pyotr Arkadyevich Kokushkin – apresentou-se o colecionador. O seu hálito cheirava a salsicha barata.
Masha forçou-se a não olhar Innokenty com espanto. Enquanto isso, Innokenty parecia ter perdido o olfato de que tanto se orgulhava. Uniu a sua mão à do homem, com veias escuras visíveis e contorcida com artrite, sacudiu-a com vigor e apresentou Masha. Kokushkin murmurou uma palavra de acolhimento e convidou-os a entrar. A escuridão era completa no apartamento e o único som que ouviram foi produzido pelo velho enquanto fechava a porta e corria, pelo menos, dez trincos. A seguir, Masha sentiu um toque delicado nas costas. Tateando, avançou pelo corredor escuro.
O apartamento tresandava à fragilidade da velhice: medicamentos, pó, bolas de naftalina. Por fim, Kokushkin acendeu uma luz, uma única lâmpada pendurada no centro do corredor, e Masha não conteve uma exclamação de espanto. Cada parede estava coberta com quadros, tão próximos que era impossível ver o papel de parede por baixo. Litografias, aguarelas, desenhos a lápis e cenas teatrais elaboradas com guache. Viu assinaturas famosas: Dobuzhinsky, Somov, Bakst. Masha estacou diante de um esboço para o Balé Russo antes de sentir outro empurrão. Virou-se.
– Isto é para L’après-midi d’un faune de Nijinsky, não é?
– Sim, sim – resmungou Kokushkin em assentimento e Innokenty piscou-lhe o olho. Masha esperou que isso significasse que tinha causado boa impressão.
A sala onde entraram não era menos claustrofóbica. A janela tinha vista para outro edifício e estava coberta com uma grade de metal. Não havia sinais de qualquer esforço para tornar o local acolhedor. Nada de cortinas ou flores no parapeito. Uma estante erguia-se no canto, contendo volumes sobre arte. Havia uma poltrona e um pequeno serviço de jantar dos anos setenta. O sítio era como um hotel distante, na província, antes da perestroika. Mas as paredes! Tal como no corredor, estavam cobertas com arte. Masha viu-se diante de uma parede, fascinada. Viu colagens fotográficas de Rodchenko, naturezas-mortas clássicas de Robert Falk, Nathan Altman e Aleksandr Deyneka e originais de ilustrações para livros elaboradas por Vladimir Lebedev e El Lissitzky. Masha não era especialista em arte russa vanguardista ou surrealismo, mas até ela percebia que havia uma fortuna ali pendurada. Innokenty olhava-a, visivelmente agradado. O velho arrastou-se até à cozinha, onde uma chaleira já silvava.
Regressou pouco depois, ouvindo-se o som dos seus chinelos de feltro batendo no chão, e verteu o chá em velhas chávenas de aro lascado. Masha bebeu um gole do preparado quase transparente. Sabia a palha velha. De alguma forma, Innokenty tinha conseguido trazer uma caixa de doces escondida e puxava por ela com um floreado.
– Cerejas bêbadas? – Kokushkin sorriu, encantado, avançando para rasgar o invólucro brilhante da caixa.
Innokenty sorriu.
– As tuas preferidas.
– Ah, lembraste-te! Sabes como agradar a um velho! – A face enrugada de Kokushkin transformou-se numa máscara de doce enlevo que não se adequava minimamente à sua fisionomia. Pegou num pedaço e enfiou-o na boca. – Nunca compro chocolate para mim. Só amei duas coisas na minha vida: arte e doces. Precisei de sacrificar uma pela outra. Na verdade, sacrifiquei tudo, não apenas os doces!
A sua maçã de adão deu um salto e engoliu um pouco de saliva adocicada. A seguir, voltou-se para olhar Masha com um pouco mais de tolerância agora.
– Jovem como é, pensará: aqui estou, um velho sentado sobre uma fortuna e nem sequer compro doces. Um verdadeiro avarento, não? Não acreditaria nas pessoas que me visitaram. Abutres do banco, idiotas que acreditam que seria divertido investir em arte. Bah! Não resta ninguém com miolos na Rússia! Nem honra ou gosto! Tivemos arte, outrora. Tivemos um momento de grandeza e desapareceu, graças em grande parte ao Pai das Nações, esse paladino do realismo, com todos aqueles Repins e Surikovs e os outros da sua igualha! Mandei esses miseráveis embora. Mandei-os investir nos seus Aivazovskys e Makovskys, por amor de Deus! Mas que afastassem as mãos dos meus queridos! É isto o que tenho para eles!
A mão velha e ossuda de Kokushkin contorceu-se num gesto obsceno e ergueu-a orgulhosamente no ar. Masha abriu a boca de espanto, alarmada e envergonhada pela fúria do homem e pela saliva tingida pelo chocolate que lhe passava entre os lábios.
Exausto por aquela explosão, Kokushkin começou a tossir. Kenty precisou de lhe bater nas costas magras e curvas, erguendo a chávena do homem até aos seus lábios. O anfitrião bebeu a água quente e deixou-se cair, arfando, sobre a poltrona, coberta com flores delicadas e com rasgões menos delicados.
– Um daqueles pequenos imbecis preocupava-se comigo. Dizia ser psicólogo. Este afirmava ter escrito uma dissertação sobre a forma como os colecionadores pensam de modo diferente. Tinha mesmo formulado um sistema para nos classificar, o idiota!
– A sério? – perguntou Innokenty, sorrindo.
– Achava que colecionamos devido a traumas de infância. Que precisamos de colecionar alguma coisa, qualquer coisa. Como se nem me importasse com o que coleciono! Selos, papéis de rebuçado, tchotchkes, qualquer coisa. Tchotchkes! «Sim ou poderia colecionar asnos», disse-lhe, mas não percebeu a dica. «Para si, Sr. Kokushkin», disse-me este asno, «colecionar é uma necessidade psicológica ditada pelo seu medo da morte.» Terá ido buscar a ideia a Freud, esse velho charlatão. «Colecionar coisas protege-o do futuro e preserva-lhe o passado.» Por amor de Deus, que tipo de passado tenho eu que queira preservar? Os meus pais mortos a tiro? Os dois anos que passei no gulag? E o futuro! No futuro, disse este furador de cabeças, teremos mais e mais colecionadores investidores. Já sabem o que penso deles.
Masha ouviu a diatribe sentada, sentindo-se desconfortável. Mesmo enquanto falava, Kokushkin ia esvaziando a caixa de chocolates. Quando parecia completamente vazia, Innokenty piscou novamente o olho a Masha e ergueu a folha de papel grosso, expondo outro nível de doces. O velho sorriu e pegou noutro pedaço, virando-o com deleite nos dedos.
– Esse tolo também falou de um tipo de colecionador que se interessa sobretudo pelo aspeto social da coleção. Como miúdos estúpidos, percebem? Disse que, quando um casal coleciona as mesmas coisas, é menos provável que se divorciem. Balelas! Tive um único caso amoroso na vida, quando caminhava para os cinquenta anos, e não era uma velha tolinha. Nunca me censurou por não lhe oferecer meias de seda, nada disso. Mas, quando lhe disse que queria comprar uma miniatura fascinante de Somov, a mulher atirou-se a mim com um fervor reacionário! Disse-me que tinha um fetiche com arte burguesa. A tonta!
Kokushkin virou-se para Masha.
– E você, minha jovem? Gosta de Somov?
– Sim, muito – respondeu Masha, com franqueza. Mas, mesmo que não gostasse, mesmo que concordasse com a amante há muito perdida que Somov era ligeiramente pequeno-burguês, não teria a coragem de o admitir.
– Aí têm – disse Kokushkin, estalando os lábios. – Há uma nova geração. Talvez tenham melhor gosto. E o seu sistema de classificação tinha uma última parte. – Outro de uma longa sequência de chocolates deixou o seu ninho confortável e dourado. – Este imbecil da universidade disse-me que as pessoas colecionam arte quando já têm tudo o resto. Uma casa, um jardim, fatos de Savile Row. Sabe o que dá cabo de mim, minha jovem? A noção de que a arte será apenas uma forma de decorar os palácios exibicionistas deles na Rublyovka ou em qualquer outro subúrbio rico. Sabe como comprei os meus primeiros quadros? Era ainda um aluno universitário e trabalhava como assistente laboratorial. O meu salário era uma piada. Não podia comprar sapatos. Muito menos uma propriedade. Foi quando comprei o meu primeiro Lebedev... por tostões. Mas, mesmo assim, passei duas semanas sem comer. Bebi kefir barato, pedi pão a amigos, andei por aí com buracos nas meias. Deixei a barba crescer para não ter de comprar lâminas. Tudo o que fazia para me divertir era vaguear por antiquários e fazer recados a velhas que, mais tarde, me vendiam telas preciosas a preço de amigo. Em breve, todos sabiam quem era e sabe o que me chamavam? Pierrot Louco, como o palhaço! Agora, não paro de receber telefonemas da Galeria Tretyakov, convidando-me para as suas festas. Acham que, se conseguirem embebedar-me o suficiente com champanhe barato, talvez lhes deixe a minha coleção em testamento. Mas estes quadros são como meus filhos. Não me resta muito tempo de vida. Em quem confio o suficiente para cuidar deles?
Subitamente, o azedume desapareceu e o velho mostrou-se sentimental e com a vista turvando-se. A transição foi chocante. «Este homem conseguiria reduzir o público a lágrimas», pensou Masha. O seu desempenho era digno de Stanislavsky.
Em voz alta, disse:
– Não se preocupe, Senhor Kokushkin. Terá tempo para pensar no assunto. Ainda está em muito boa forma! Na verdade, o Innokenty e eu viemos falar consigo sobre o Chagall que perdeu há algum tempo.
– Venham comigo. – Kokushkin ergueu-se com um silvo e cambaleou para fora da sala.
Kenty e Masha trocaram um olhar e seguiram-no pelo corredor fora.
Kokushkin abriu a porta de uma divisão estreita e Masha e Kenty deram consigo a olhar em silêncio uma sanita, com o assento de plástico amarelecido pela idade.
– Estão a olhar para o sítio errado – gemeu o velho. Apontou o outro lado da porta. Aí, pendurado ao nível dos olhos para quem se sentasse na sanita, havia uma paisagem representando uma aldeia bielorrussa da autoria de Marc Chagall. Masha abriu a boca de espanto. Kokushkin ficou claramente agradado.
– Isso mesmo. Os oligarcas podem mijar em sanitas de ouro, mas eu tenho um Chagall à frente da cagadeira! Quanto mais velho fico... e já devem ter percebido que deixei de me envergonhar com estas coisas... mais aumenta o número de vezes por dia que tenho a honra e o prazer de olhar para este meu pequeno Chagall e por muito tempo de cada vez. – Kokushkin fechou a porta. – É deste quadro que querem falar?
Masha acenou afirmativamente.
– Sim.
Kokushkin voltou para a sala e sentou-se na poltrona com movimentos hirtos.
– Roubaram-mo. Estou sempre a ser roubado. É a cruz que muitos colecionadores precisam de carregar. Há seis meses, levaram aquele Chagall e, no mês seguinte, a polícia devolveu-o. Lembro-me de pensar que teriam finalmente aprendido a fazer o seu trabalho. Não fiz perguntas. Limitaram-se a entregá-lo, graças a Deus. Há alguns anos, testemunhei contra um filho da mãe que me roubou e a alguns dos meus amigos. Safou-se, acreditem ou não! Ali estava ele, com a expressão fria como um tijolo, aquele cabrão! Pensei que o tramaria por ter levado o meu Zinochka... tinha ficado sem um estudo maravilhoso de Zinaida Serebriakova... Pensei que o porco apodreceria na prisão! Mais tarde, Ardov disse-me... e perdeu dez quadros, mais ainda que eu... que o ladrão tinha sido contratado por um desses multimilionários para enriquecer a sua coleção. O tipo era muito seletivo. Sabia o que o patrão queria. E também sabia como conquistar o tribunal.
Kokushkin acenou com a cabeça para si mesmo durante algum tempo e Masha aproveitou a pausa para retirar da mala um dossiê cheio de fotografias.
– Senhor Kokushkin, tenho um favor estranho para lhe pedir. Mas acho que, com a memória visual de um profissional, talvez... – Masha mostrou-lhe várias fotografias ampliadas do braço encontrado na Praça Vermelha no inverno anterior.
– Vejam só. – O velho pôs uns óculos quase tão velhos como ele, que só um adesivo mantinha intactos. Olhou as imagens durante algum tempo, franzindo a testa com repulsa. – Reconheço-o. Sem dúvida. É ele. O que roubou o meu Zinaida.
Masha susteve a respiração por um instante.
– De certeza? – perguntou, não acreditando na sua sorte.
Kokushkin afastou as fotografias, impaciente.
– Ouça, jovem. Tenho artrite, osteoartrite, má circulação e tensão alta. Mas ainda não estou senil! Na cabeça, não tenho problema nenhum! O miserável chamava-se Samuilov. Tinha duas tatuagens nos dedos. Enquanto testemunhava, mexia nas orelhas com estes dedos. Parece-me que já não conseguirá fazê-lo!
– Não, não conseguirá – disse Masha em voz baixa, imaginando um cadáver sem um braço apodrecendo numa ravina algures. Juntou as fotografias e voltou a guardá-las na mala. – Muito obrigada, Senhor Kokushkin. Não imagina o quanto nos ajudou.
– Consigo imaginar, sim. – Kokushkin continuava a resmungar, mas era evidente que se sentia lisonjeado.
Após alguma cerimónia junto à porta, Masha partiu finalmente com Innokenty.
– Não há ninguém como este velho! – disse Kenty com entusiasmo enquanto desciam as escadas. – Conheci alguns colecionadores, mas Kokushkin é lendário. Poderia ser rico como Creso. Ou, no mínimo, ter dinheiro suficiente para a luz, para se abastecer na mercearia e até para os seus preciosos doces. Só se separa de um quadro quando o pode trocar por outro que deseje mais. Nem sequer viste o quarto ou a despensa. Tem telas alinhadas aí em filas e sabe onde está cada uma. Pega num que lhe agrade, ilumina-o um pouco, limpa-lhe o pó e pendura-o... talvez na casa de banho.
– É verdade que nos ajudou, Kenty – respondeu Masha. – Agora, sabemos que o braço que encontraram com o Chagall roubado pertencia a um ladrão profissional.
– Podíamos ter chegado a essa conclusão sozinhos, sabendo que o quadro era roubado.
– Sim, mas, agora, podemos investigar um pouco mais o tipo e...
– Talvez, minha querida – disse Kenty, encolhendo os ombros. – Mas parece-me que o braço será mais um símbolo do roubo. Temos tentado perceber porque foram assassinadas estas pessoas específicas, não é? Com este Samuilov, parece mais óbvio que os outros, não é?
Masha acenou com a cabeça, continuando a pensar.
*
De volta a casa, Masha desligou o telefone, chocada. A mãe de Katya acabara de lhe dizer, com um sussurro estranho e forçado, que Katya estava morta. Tinha chocado contra uma barreira de betão na Rua Nikolskaya. A morte foi mediata. O funeral seria na sexta-feira.
A mãe de Masha entrou e perguntou, irritada, onde tinha Masha deixado o carro daquela vez. Quando a filha se virou para ela, Natasha percebeu, sobressaltada, que algo estava terrivelmente mal.
– Que aconteceu? – perguntou, pegando na mão suada da filha.
Masha não disse nada. Limitando-se a olhar fixamente a mãe como costumava olhar fixamente o pai, em súplica. «Por favor, faz o meu escaravelho de estimação voltar à vida! Por favor, não deixes o lobo comer a Capuchinho Vermelho! Por favor, diz-me que tu, entre todas as pessoas no mundo, nunca morrerás... Por favor!»
– Mashenka. O que aconteceu? O que foi, querida?
– A Katya morreu – sussurrou Masha, sentindo a garganta apertar-se para conter as lágrimas.
– Oh, meu Deus. Como é possível? – A mãe elegante de Masha torcia as mãos como uma babushka provinciana. Deixou-se cair pesadamente no sofá. – Quando?
– Ontem – disse Masha, baixando a voz. – A culpa é minha.
– Que dizes, querida? A culpa é tua?
– Mamã! – disse Masha, olhando-a com dor nos olhos. – A Katya pediu-me o carro emprestado. Veio, levou as chaves... e chocou contra uma parede. Desculpa, mamã, o teu carro...
Natasha retirou importância àquele pormenor com um gesto da mão e virou-se para a janela.
Katya. Parecia estar ali com elas naquele preciso momento. A pequena Katya, encantada pelos brinquedos e livros ilustrados de Masha. A Katya adolescente, tentando, sem grande sucesso, integrar-se nos amigos intelectuais de Masha. Katya, a universitária com dificuldades, usando demasiada maquilhagem e fazendo imitações engraçadas dos seus vizinhos.
Natasha sentou-se no chão e chorou em silêncio, limpando as lágrimas. Masha aproximou-se e deitou a cabeça no colo da mãe. Katya fora a sua amiga mais antiga e nem era tanto uma amiga e sim alguém da família, uma irmã. Engraçada, descomplicada e diferente de qualquer outra pessoa. Além disso, Katya conhecera o seu pai. Katya conhecera Masha como era antes do homicídio do papá. Era uma Masha completamente diferente, uma rapariga que lia Jane Eyre debaixo dos cobertores à noite. Masha ria-se mais com Katya do que com qualquer outra pessoa porque era apenas com Katya (e, por vezes, com Kenty) que conseguia esquecer a procura constante da entidade misteriosa que tinha levado o seu pai, a sua infância, a sua vida inteira.
– O funeral é sexta-feira – gemeu.
– Pobre Rita – disse Natasha, triste. – Pobre Rita.
*
Choveu no dia do funeral. Masha sentiu uma estranha tontura. Não era a efervescência agradável que um copo de champanhe poderia trazer, mas um tipo de dormência parcialmente consciente. Não podia correr o risco de conduzir. O seu padrasto levou-a e Masha não disse uma única palavra durante todo o caminho.
Porquê? Porque perdera Katya o controlo de um carro tão pequeno e manobrável? Suicídio, talvez? Não. Masha abanou a cabeça com severidade no banco de trás, não reparando no olhar preocupado do seu padrasto pelo espelho retrovisor. Não conseguia aceitar que Katya fosse o tipo de pessoa que pudesse partir voluntariamente desta vida no Mercedes de outra pessoa. A não ser... O motivo poderia ser Innokenty? Não se apaixonara perdidamente por ele? Masha voltou a abanar a cabeça. Tudo isso pertencia ao passado! Subitamente, quis desesperadamente ver Kenty, pousar a cabeça no seu ombro e chorar. Enviou-lhe uma mensagem de texto.
A Katya morreu. Vou ao funeral. Posso ver-te hoje à noite?
A resposta foi imediata. Claro. Manda-me a morada. Vou buscar-te.
Masha escreveu a morada da vigília a que iria depois do funeral, no apartamento de Katya, naquilo a que a própria chamara o seu «subúrbio operário», um sítio onde Masha nunca tinha estado. «Porquê?», pensou. Katya sempre se mostrara ávida por vir à sua casa.
O crematório não era particularmente sombrio. A cerimónia tinha um ar pragmático, fazendo recordar um casamento civil na câmara municipal. Havia flores e um pequeno grupo de parentes. Uma cerimónia terminava e o grupo seguinte entrava. Ouvia-se uma marcha fúnebre de Beethoven e as vizinhas de Katya com os seus vestidos curtos pretos fungavam em redor. Masha e a sua mãe mantiveram-se à parte. Não conheciam nenhum dos amigos e parentes além de Rita. Masha pousou o seu ramo de margaridas sobre o caixão lacado brilhante e disse algumas palavras à mãe de Katya. Mas havia uma fila de outras pessoas ansiosas para exprimir as suas condolências e não se demorou.
Natasha partiu para outro dia comum e caótico de trabalho na sua clínica e Masha apanhou um táxi até ao apartamento de Katya. Tinha prometido a Rita que ajudaria a cozinhar para a vigília. Não era a melhor cozinheira do mundo e, por isso, decidiu levar comida de um restaurante próximo. Entrou no apartamento, pousou os sacos pesados e olhou em redor. Chegou mesmo a inspirar fundo, pensando se sentiria o cheiro de Katya. Não era um sítio atraente, tanto por falta de dinheiro como por falta de gosto. Masha não podia imaginar que fazia exatamente o que Katya fazia, por vezes, na sua casa, movendo-se em bicos de pés. As cortinas estavam corridas e o espelho tinha sido coberto por respeito pelos mortos. Desolada, tocou com um dedo numa fotografia dela com Katya, rindo-se quando eram pequenas. Havia mais fotografias. Reconhecia algumas... Tinham sido tiradas pelo seu pai. As cópias de Masha estavam escondidas em álbum, mas, ali, exibiram-se orgulhosamente durante todos aqueles anos, à vista de todos. De certa forma, Masha estivera antes naquele apartamento. Mesmo assim, o sítio parecia-lhe tão estranho que nem sequer conseguia imaginar Katya a viver ali. Parecia muito mais natural, nas recordações de Masha, emoldurada pela porta do seu apartamento.
Encontrou um avental e deitou mãos à obra. A mesa estava já posta e cobriu-a com a comida que tinha trazido: as saladas frias e ovos cozidos que Rita tinha pedido. Tirou do frigorífico uma enorme panela quente de sopa e colocou-a no fogão para aquecer. Subiu a um banco para chegar ao tabuleiro de pirozhki que Rita tinha colocado no alto dos armários, no ar quente junto ao teto, e enfiou-os no forno, pré-aquecido segundo instruções de Rita. Notou que respirava com maior facilidade. A tontura agoniante tinha desaparecido, já não sentia a garganta tão apertada e a dor no peito também tinha desaparecido. Mas, mesmo assim, um nome latejava-lhe na cabeça como um terrível metrónomo: Katya, Katya, oh, Katya...
Os convidados começaram a chegar pouco depois e, durante algum tempo, Masha esteve ocupada a servir comida a pessoas que não conhecia. Percebia que a olhavam, confusa. Quem era a rapariga que cuidava de toda a gente como se fosse uma ajudante da dona da casa? Mas parecia tão natural a Masha como a Rita. O fantasma da sua relação, por intermédio de Katya, era completamente evidente para ambas. Mas também compreendiam que essa ligação, como um fio do mais fino cristal, se despedaçaria silenciosamente quando Masha partisse.
Até isso acontecer, Masha carregava pratos sujos, ouvindo distraidamente as pessoas que brindavam à memória de Katya enquanto lavava copos sujos e os secava. Tentou mesmo lavar o tabuleiro que Rita usara para os pirozhki, mesmo que pudesse ficar de molho até ao dia seguinte. Esfregou implacavelmente, distraindo-se dos seus pensamentos terríveis, até Rita entrar na cozinha e lhe tirar a esponja da mão.
– Deixa alguma coisa para mim, está bem?
E Masha compreendeu. A mãe de Katya também precisava de uma maneira de esquecer e, de modo egoísta, roubava-lhe isso.
Trouxeram um par de bancos, escondendo-se na cozinha como um par de conspiradoras. Nem Rita nem Masha queriam voltar para a sala cheia de gente.
– Não fiz o suficiente para proteger a Katya – disse Rita de repente. Masha sentou-se agoniada pelo que viria a seguir. – Não a protegi. Sabia que tinha dentro dela aquela inveja, aquele desejo de ter o que não tinha. Desejo de ser como tu, de ter o teu apartamento perfeito, as roupas que tu e a tua mãe tinham, aquele carro... E, além de tudo isso, o desejo de saber o que sabias, da tua mente, do teu empenho na carreira. Dos teus amigos, dos rapazes que te rodeavam. Também percebi isso e senti pena dela. Mas não devia ter sentido! Devia ter-lhe arrancado isso de dentro à tareia quando era pequena! – Rita cobriu a cara com as mãos e ficou sentada em silêncio durante um segundo. – Mas senti-me tão culpada por ter trazido ao mundo esta criança sem pai. Queria tanto que a minha menina fosse feliz!
Masha aproximou-se de Rita e abraçou-a. Sentia o seu corpo estremecendo enquanto chorava.
– Sinto muito, Masha!
– Não. A culpa é minha! – As lágrimas aglomeravam-se na garganta de Masha. – Fui eu quem lhe emprestou o carro!
– O carro! – gemeu Rita. – E a tua roupa! Não vestia nada que fosse dela. Era tudo teu, Masha. Até a roupa interior! Qual era o problema dela? Porque faria uma coisa destas?
Masha preocupou-se, mas não disse nada.
– Toma. – Rita procurou no bolso do seu vestido preto, grande e sem forma e retirou um conjunto de pulseiras finas. – As únicas coisas que tinha que lhe pertenciam. Enviaram-nas para a esquadra. Usou o seu primeiro subsídio de estudante para as comprar e nunca as perdia de vista. Quero oferecer-tas. Para te lembrares dela. – Rita passou o aglomerado de pulseiras prateadas a Masha.
– Obrigada – disse Masha em voz baixa.
– Mais uma coisa. – Rita corou. – Envergonha-me dizer isto, mas a Katya não se limitou a levar a tua roupa. Encontrei isto no quarto dela. São da tua mãe, não são? – Rita passou-lhe uma caixa pequena. Masha espreitou o interior e descobriu uma pulseira de ouro reluzente e um anel. Natasha adorara aquilo, mas, durante os dez anos anteriores, preferira joias que considerasse serem mais distintas, o que revelou ser menos vistoso mas muito mais caro, cravejado de diamantes. Masha achou que a sua mãe poderia não ter percebido que aquelas peças postas de parte tinham desaparecido e calculou que poderia devolvê-las ao seu sítio sem lhe chamar a atenção. Ergueu o olhar para Rita.
– Não – disse, calmamente. – Está enganada. A Katya perguntou-me se podia levar isto emprestado.
A postura tensa de Rita descontraiu um pouco e suspirou de alívio. Acenando com a cabeça, levantou-se e estendeu a mão para tocar na face de Masha. A seguir, limpou os olhos vermelhos e saiu tristemente da cozinha. Masha voltou a sentar-se no banco e puxou pelo telemóvel.
Vem buscar-me, escreveu.
Pareceu-lhe que, no momento em que tinham admitido a sua culpa conjunta (a sua por ter deixado Katya levar o carro emprestado e a de Rita por não ter curado a filha da sua inveja terrível), mal tinham proferido aquelas palavras, Masha e Rita haviam cortado o fio que as unia. Deixara de fazer sentido a sua presença ali e, de repente, sentia-se desesperada para partir. Encontrou o casaco e, sem se despedir de ninguém, saiu. Enquanto descia no elevador, contou mecanicamente as pulseiras de Katya. Eram dez.
– Idiota! – disse a si mesma em voz alta. Os malditos números tinham-lhe afetado o subconsciente. Contava automaticamente tudo à sua volta, procurando pistas. – Basta! Chega! A Katya partiu e isso não tem nada a ver com os números naqueles cadáveres.
Sentou-se num banco na rua para esperar, olhando fixamente em diante até o carro de Innokenty parar à sua frente. O seu amigo abriu-lhe a porta sem dizer uma palavra e Masha entrou. Nina Simone cantarolava suavemente no interior.
– Vamos – disse Masha em voz baixa.
Kenty esperara uma oportunidade para perguntar a Masha o que se passava.
– Então morreu na Rua Nikolskaya? – perguntou-lhe ele. – A Via Dolorosa.
– O que é a Via Dolorosa? – perguntou Masha. A seguir, compreendeu e encolheu-se no seu banco.
– Lamento, Masha. – Lamentava realmente e parecia envergonhado. – Torna-se um tipo de jogo perverso para mim. Sempre que ouço o nome de um sítio na televisão ou na rádio, não consigo evitar. Faço os cálculos. Penso se esses sítios terão equivalência na Jerusalém Celestial ou na terrena.
– E então? Têm?
– Habitualmente, não. – Kenty esfregou a cana do nariz, pensativo. – Mas este sim. Se sobrepuseres os dois mapas do centro das cidades, a Rua Nikolskaya cobre com exatidão o percurso da famosa Via Dolorosa, o caminho por onde Jesus carregou a cruz. Começa na Porta dos Leões e segue para oeste, atravessando a cidade velha até à Igreja do Santo Sepulcro. A Rua Nikolsksya, como sabes, vai da Praça Vermelha até à Praça Lubyanka. Mas, antes de construírem a Praça Vermelha, a rua conduzia diretamente à Porta Nikolsky do Kremlin. – Kenty interrompeu-se a si mesmo. – Que montanha de disparates, não é? Porque te conto isto tudo?
Ficaram os dois em silêncio durante algum tempo e Masha pensou que a sua teoria poderia ser simplesmente uma forma de ignorarem a realidade. Talvez fosse mais fácil esconderem-se atrás de uma absurda barreira de fumo e espelhos, de alusões históricas, religiosas e místicas. Só naquele momento, ouvindo a tristeza na voz de Kenty, Masha compreendeu que também ele se sentia culpado. E que a culpa era uma forma de compensarem a ausência de outro sentimento. Talvez, se Kenty tivesse retribuído os seus sentimentos, Katya tivesse encontrado uma forma de deixar para trás a inveja da infância. E, assim, não teria levado o carro de Masha e não teria morrido na Via Dolorosa.
Talvez todos tivessem a sua Via Dolorosa.