PRÓLOGO

 

 

 

Que frio! Vera, também conhecida como Monte de Roupa Suja, erguia-se no centro da Praça Vermelha. Mesmo sendo uma vagabunda veterana, aquele frio era demasiado até para ela. Nunca gostara de praças, mas odiava particularmente aquela. Sentia-se pequena e sozinha, exposta. Dizia a si mesma que eram apenas os polícias à espreita que a deixavam nervosa, mas um qualquer instinto animal insistia que o perigo se escondia no alto. Quando alguém se erguia no centro da Praça Vermelha, na muralha elevada à volta do Lobnoye Mesto, no sítio exato onde todos diziam que costumavam fazer as execuções públicas, era como se oferecesse a própria vida à Providência.

Vera olhou em redor e recriminou-se a si mesma. Porque coxeara até ali? Era demasiado cedo para os estrangeiros que, por vezes, lhe davam cem rublos. Não se via, sequer, nenhum dos funcionários dos armazéns GUM. Havia alguns estudantes voltando para casa depois de noitadas, mas nunca acontecia nada de bom com eles.

E estava frio, tanto frio! E o vento soprava. Vera sentia-se tão profundamente sozinha naquelas manhãs taciturnas que só lhe apetecia embebedar-se. Mas não tinha dinheiro nem uma forma de o conseguir.

E então, de repente, parecia-lhe que Deus lhe acenava com um dedo do alto, dizendo-lhe alguma coisa. Alguma coisa como: «Vera, serva de Deus! Não passas de pó, claro, e cinzas, mas não faz mal... Aqui tens algo que te ofereço!»

Ali, perto da cerca que rodeava a Catedral de São Basílio, estava um grande e magnífico saco de plástico branco com o símbolo da GUM. Vera quase tremeu de excitação. Dentro do saco, estava o presente que Deus lhe oferecia. Tinha a certeza! Virou-se para a catedral, benzeu-se, agradecida, e apressou o passo para reclamar o seu prémio. O saco continha algo embrulhado em papel branco com manchas castanhas. Vera descalçou as luvas rasgadas e desembrulhou algo longo, pálido e coberto com pelos pretos escassos. Terminava em dedos fechados com força, segurando um tipo de imagem pequena. Uma pintura. Representava uma árvore escura e de aspeto estranho recortada contra um céu azul-escuro. E uma vaca com olhos humanos fitava diretamente a alma de Vera.

Passaram-se alguns segundos enquanto ponderava o que via. A seguir, Vera gritou uma nota longa como uma cantora de ópera.

Enquanto caía de bruços sobre o antigo e poderoso empedrado da Praça Vermelha, conseguiu ver ainda, antes de sucumbir ao abismo, dois polícias a correr na sua direção.