MASHA
Masha estava sentada no chão do seu quarto no apartamento vazio, ouvindo uma e outra vez as entrevistas que fizera e as de Kenty. Os livros empilhavam-se à volta da cama, sobre a cadeira, cobrindo totalmente a sua secretária. Estava demasiado cansada para ler e, por isso, passara a ouvir, pensando que haveria algo na entoação das suas vozes, nas pausas entre as palavras, na modulação subtil das vozes que poderia revelar um segredo. Uma pista que lhe permitiria perceber aqueles malditos números escritos com sangue, cortados na pele, rapados em cabeças. Uma medalha partida. Pulseiras num pulso morto. Masha quase conseguia ouvir o assassino que colecionava pecados sussurrando-lhe sobre o ombro: Sete, oito, nove, dez... Pronta ou não, aqui vou eu!
Abanou a cabeça pesada como um cavalo a tentar afastar uma mosca e rebobinou a cassete até à primeira gravação.
– Mas acho que o Slava não teve nenhuma namorada antes de mim. Não era assim tão atraente. Era brincalhão. Magro, um fracote. Não tenho um instinto maternal no que diz respeito a homens...
Masha olhou para a fotografia na parede. O seu pai devolveu-lhe o olhar com a sua habitual ternura serena.
– Passou mais um ano, papá – sussurrou Masha. – E ainda não percebi. Para que sirvo eu? Tenho-me esforçado tanto.
*
Aos doze anos, Masha guardara as bonecas e começara a brincar com psicopatas e monstros. A jovem Masha tinha um caderno pautado de noventa e seis páginas, mas não o enchia com letras de canções, fotografias de estrelas pop ou flores secas. Não continha juras de amizade ou nomes de rapazes giros da escola.
Em vez disso, tinha um desenho de Gilles de Rais. Tinha sido o primeiro assassino em série do mundo condenado, um companheiro de armas de Joana d’Arc e a inspiração do Barba Azul. Torturou e matou mais de cento e quarenta crianças no seu castelo medieval. A seguir, uma reprodução de uma encantadora aguarela de Darya Saltykova com um toucado de renda. Era uma viúva religiosa a quem agradava usar ferros de frisar quentes para espancar os criados. Também tinha um retrato de Ted Bundy, o assassino em série americano que violou, torturou e matou mulheres entre 1974 e 1978, alguém que praticamente tornou os assassinos em série mediáticos, e do jovem e adorável David Berkowitz, que atuou entre 1976 e 1977.
Os soviéticos também lá estavam: Chikatilo, Slivko e Golovkin, célebres pela sua aparência comum. Tinha recortes de jornal, sites impressos, tabelas com anotações cuidadosas classificando patologias mentais, análises de perfis criminais e excertos de memórias de agentes do FBI especializados em apanhar assassinos em série. Masha copiara os excertos, ponto por ponto, quando tinha catorze anos. 1) Veja-se como um caçador.
2) Torne-se um psicólogo para descobrir como a sua vítima pensa. 3) Formule o plano perfeito para atrair a vítima para terreno seguro. 4) O caçador não pode dar-se ao luxo de errar.
E havia muitas páginas de citações. Citações do interrogatório de Chikatilo. Citações de Robert Ressler, o detetive real que se dizia ter inspirado O Silêncio dos Inocentes. Citações de Richard von Krafft-Ebing, cujo inovador Psychopathia Sexualis fora publicado em 1886. Havia até citações de Sherlock Holmes ligeiras por comparação com as restantes. A sua citação preferida era: «A singularidade é quase invariavelmente um indício. Quanto mais banal e comum um crime parecer, mais difícil será desvendá-lo.»
Duas teorias. Houvera duas teorias acerca da morte do seu pai. A primeira e mais provável dizia que teria sido um assassínio encomendado. Fyodor Karavay tinha um brilhantismo e um sentido de humor que lhe tinham permitido sair vencedor até dos julgamentos mais complicados. Havia sempre alguns advogados estelares em qualquer firmamento jurídico, mas o Karavay mais velho era, sem dúvida, o mais brilhante de todos. Costumava citar Shakespeare fluentemente quando defendia um marido ciumento. Trazia estátuas clássicas para o tribunal para demonstrar os ângulos de apunhalamento possíveis ou impossíveis de uma vítima. Educou os juízes, confundiu-os, fê-los rir. Mas, acima de tudo, Karavay ensinou-os a questionar a sua presunção de que seriam sempre favoráveis à acusação. Ensinou-lhes ética judicial. E aprenderam com ele.
Quando alunos universitários começaram a assistir aos julgamentos de Karavay, o pai de Masha sentiu-se capaz de aceitar uma categoria diferente de casos. Karavay começou a representar jornalistas acusados de difamação, famílias cujos filhos tinham sido atacados por skinheads e funcionários governamentais acusados de espionagem.
Karavay tinha inimigos, sem dúvida, e muita gente o teria matado apenas por desdém. Esse tipo de homicídio, mal disfarçado como assalto que tinha corrido mal, era, na época, uma forma muito popular de sair de situações problemáticas para determinada categoria de gente poderosa. Masha tinha ouvido junto à porta da cozinha fechada enquanto Nick-Nick tentava explicar à mãe que, mesmo que conseguissem apanhar a pessoa que tinha apunhalado o seu marido três vezes, era provável que nunca conseguissem identificar o homem que ordenara a sua morte. Era comum os assassinos contratados não saberem para quem trabalhavam. Assim, não podiam denunciar ninguém, algo que não incomodava nada a polícia. Porque quereriam remexer demasiado nos estratagemas do peixe graúdo local? Nunca chegariam a lado nenhum.
– Então há uma segunda teoria? – perguntou a mamã com voz fria e seca e a pequena Masha pressionou a orelha contra a porta com tanta força que lhe doeu.
– Bom... – Nick-Nick teria acenado com a mão em negação. – Uma teoria tonta. Indigna de consideração. Durante os cinco últimos anos, ocorreram uns quantos homicídios em Moscovo com tipos semelhantes de ferimentos. A Petrovka explora a possibilidade de ter sido obra de um assassino em série.
Masha recordou o silêncio que se instalou do outro lado daquela porta. A seguir, ouviu um banco a ser rapidamente arrastado e um copo a cair. O cheiro adocicado do Valocordin que a mamã tomava para os nervos passou por baixo da porta.
Meses mais tarde, Masha fez uma pergunta a Nick-Nick. Continuava ainda a visitá-las regularmente, tentando, sem sucesso, convencer Natasha a falar com ele. Em vez disso, acabava sempre a jogar xadrez com Masha.
– Como se apanha um assassino em série?
Nick-Nick fixara em Masha um olhar velado pelas sobrancelhas.
– Não é fácil. Os assassinos em série não são um simples problema da justiça criminal. São também um problema antropológico. – Quando viu a perplexidade na cara de Masha, sorriu. – Isso significa que não compreendemos realmente como uma pessoa pode sentir prazer com a matança. Na maior parte dos casos, os assassinos em série são mentalmente capazes e têm vidas aparentemente normais. Trabalham, amam as suas mulheres, criam os seus filhos... Então porquê? Um belo dia... ou noite ou manhã... o que leva um pai de família exemplar a pousar as palavras cruzadas e a sair para assassinar alguém? E, se não conseguirmos perceber porquê, como poderemos encontrá-lo? Que indícios teríamos? Os detetives enfrentam outro desafio importante: como podem antecipar qual será a vítima seguinte do assassino, encontrando-a entre milhões de pessoas comuns?
Foi o primeiro passo de um longo percurso. Foi o dia em que Masha encontrou o propósito da sua vida. Das duas explicações possíveis para a morte do seu pai, escolheu a segunda e menos provável. Os homicídios encomendados eram demasiado comuns no final dos anos 90. Mas, se tivesse sido um assassino em série, isso seria estranho, excecional e, de acordo com Sir Conan Doyle, haveria esperança de encontrar o assassino! Precisava apenas de o compreender. Essa compreensão ajudaria Masha a banir finalmente o horror e a mágoa que não paravam de a acordar à noite, banhada em suor frio. De cada vez que acontecia, aliviava-a perceber que fora apenas um sonho até recordar que o seu pesadelo tinha sido bem real.
Masha forçou-se finalmente a afastar o olhar do retrato do pai. Ergueu-se, guardou todos os livros da biblioteca num enorme saco de compras, pegou na chave do carro do seu padrasto e dirigiu-se para a porta da rua. De repente, virou-se e dirigiu-se apressadamente ao quarto para pesquisar uma morada no computador. Ouviu o telefone tocar, mas ignorou-o. Havia alguém que podia ajudá-la! Porque não pensara nisso antes?
*
Aproximava-se uma tempestade. Os pássaros silenciaram-se em antecipação, as velhas árvores alongavam-se para o alto como se preparassem uma batalha e o edifício hospitalar amarelo-claro nas profundezas do parque quase brilhava em contraste com a escuridão que avançava de sul. Masha correu através do ar húmido no átrio, onde o ar condicionado zumbia discretamente.
– Gostaria de falar com o professor Gluzman – disse à rececionista.
– Marcou entrevista? – perguntou a rapariga, com severidade.
– Não.
A rapariga marcou um número, ouviu por um segundo e desligou.
– Receio que o professor Gluzman não possa receber ninguém de momento.
– Preciso de falar com ele – disse-lhe Masha com firmeza. Retirou as credenciais da Petrovka da mala e fixou um olhar severo na rececionista. A mulher franziu a testa e Masha encolheu-se um pouco por ser forçada a aplicar a sua autoridade daquela forma.
– Chamarei alguém para a acompanhar – respondeu secamente a rapariga.
Uma enfermeira conduziu Masha em silêncio até ao quarto de Gluzman. Nunca teria conseguido encontrar a porta certa sozinha naquele corredor interminável, tão branco e desprovido de traços distintivos como um corredor em algum thriller de ficção científica. A enfermeira bateu à porta. Quando uma voz no interior lhes disse que entrassem, a enfermeira deu um passo ao lado e deixou Masha entrar. O quarto estava parcamente iluminado. Gluzman tinha o colo coberto com um cobertor e vestia um pijama. Sentava-se virado para a janela, sem parar de alisar o cobertor sobre os joelhos, aparentemente hipnotizado pelo que via lá fora. A chuva ainda não começara a cair, mas o vento tinha aumentado de intensidade, agitando o pó de verão.
– Boa tarde – disse Masha, fechando a porta em silêncio atrás dela. Gluzman virou-se para a olhar e, quando o fez, Masha deu um salto. Os olhos do professor pareciam completamente vazios e aterradores.
– Olá! – disse, esboçando um sorriso monstruoso que expunha a dentadura muito branca.
Masha teve de se esforçar para retribuir o sorriso. Aquele Gluzman transfigurado reconhecê-la-ia?
– Doutor Gluzman – começou, cautelosa. – Sou a Masha, amiga do Innokenty. – Viu-o assentir com a cabeça. – Da última vez que estivemos aqui, falámos sobre a Jerusalém Celestial. Lembra-se? Tinha razão. É verdade que o assassino mata pessoas que acha que são pecadores em sítios relacionados com a Cidade Celestial. Mas não consigo perceber que padrão segue. Até perceber o sistema de numeração, não conseguiremos apanhá-lo. – Parou, esperando a resposta do professor.
Gluzman olhou-a com malícia súbita e gesticulou-lhe que se aproximasse com um dedo. Masha avançou cautelosamente e curvou-se sobre ele. Ouviu um riso baixo.
– Gostava de saber... – o sussurro do professor fez-lhe cócegas na orelha – que tipo de fantasias sexuais acha que o Inno-centi tem consigo?
Masha recuou com um salto.
– Doutor Gluzman, o Innokenty e eu somos amigos desde pequenos!
Gluzman riu-se novamente, recostando-se na sua cadeira de rodas.
– Sim, claro, uma amizade de infância! Essa pequena flor sem mácula que tantas vezes oculta uma monstruosidade! – Os olhos de Gluzman deixaram de estar vazios. Ao invés, havia loucura crescendo atrás deles, intensificando-se. Masha tentou recuar até à porta, mas a cadeira de rodas girou para diante, de forma lenta mas constante, com o seu ocupante continuando a olhá-la e rindo tresloucadamente.
– E que tipo de fantasias são as suas, minha senhora? – A sua voz parecia suave, quase delicada. – Ou a imaginação da sua geração foi castrada? Nenhuma lógica elementar, nenhum intelecto! – A voz de Gluzman aumentava de volume. – Nunca vi ninguém tão estúpido! – gritou.
Masha empurrava a porta e entravam apressadamente enfermeiros e auxiliares. Teriam esperado à porta. «Terão câmaras de videovigilância por todo o lado», pensou Masha, sentindo um estranho distanciamento dos eventos, como se tudo aquilo fosse um pesadelo.
Viu o pessoal médico conter Gluzman. Uma enfermeira tentou espetar-lhe uma seringa na veia enquanto o professor uivava, sem nunca afastar dela o seu olhar terrível.
– Os Tormentos! – gritava Gluzman.
E Masha, como se acordasse do seu sonho, correu finalmente para fora do quarto e pelo corredor adiante.
– Os Tormentos! – ouviu-o berrar enquanto corria. – Não sucumbas à fornicação e paga o preço dos teus pecados!
Mesmo com as mãos a tremer muito, Masha conseguiu abrir o carro. Bateu com a porta e ficou ali sentada durante um momento, tentando recuperar o fôlego enquanto os primeiros trovões anunciavam chuva que em breve começou a cair sobre o seu tejadilho e janelas. Fechou os olhos. Gluzman era o segundo homem em vinte e quatro horas a chamar-lhe estúpida. «Será um recorde de algum tipo», pensou. Era provável que estivessem certos. E o seu chefe tinha-lhe chamado doentia... Era provável que também tivesse razão a esse respeito. Mas talvez só uma pessoa doentia conseguisse perceber um assassino em série. Masha conseguia imaginar coisas que escapavam ao cérebro de detetive mentalmente saudável e experiente de Andrey. Conseguia visitar os caminhos sombrios da loucura alheia e procurá-lo aí, mesmo que, como resultado, acabasse no quarto ao lado do de Gluzman. Precisava de fazer aquilo. Não tinha escolha. De outra forma, todo o sofrimento com a morte do seu pai teria sido em vão.
Mais calma, Masha prendeu o cabelo num rabo-de-cavalo e acelerou pela chuva de verão cada vez mais intensa. Se tivesse olhado para trás, teria visto a silhueta de Gluzman na janela, com o colete de forças fazendo-o parecer um bebé embrulhado, vendo-a partir com tristeza.
*
A vez de Masha chegou e entregou à bibliotecária os seus formulários de requisição.
– Gostava de ver tudo o que têm sobre literatura russa medieval, sobretudo os textos fonte.
A bibliotecária olhou-a.
– Os originais não podem sair da sala de leitura.
– Não faz mal.
A bibliotecária acenou com a cabeça.
– E os textos cismáticos? Também a interessam?
– Provavelmente – respondeu Masha, sem saber ao certo. – Claro que estarão desatualizados.
– Todos os textos medievais estão «desatualizados», não é? – recordou a bibliotecária. – Mas, antes da revolução, os Velhos Crentes constituíam trinta por cento da população. Ainda existem nos nossos dias.
Masha ergueu o olhar cansado.
– A sério? Sempre pensei que tivessem passado à história.
A bibliotecária fungou.
– Também quero requisitá-los, por favor – disse Masha.
Encontrou um lugar para se sentar ao lado de algumas mulheres de aspeto erudito com penteados antiquados, preparando-se para uma longa espera. Alguém lhe tocou no ombro e Masha virou a cabeça. Tinha adormecido. A bibliotecária empilhava livros sobre a mesa. O Livro da Fé de Zachariasz Kopysteński. Um Livro de Horas. E havia mais...
Assinou mecanicamente a sua receção e a bibliotecária afastou-se, dirigindo-lhe um último olhar de piedade. Teria considerado que Masha seria uma estudante universitária a enfrentar dificuldades académicas. Masha limpou os olhos com determinação e leu o título do primeiro livro na pilha.
Ainda dormiria? A sala de leitura parecia girar sob os seus pés.