MASHA

 

 

 

Masha olhou os homens que Anyutin tinha escolhido para os ajudarem. Passaram a ter uma equipa, o Grupo Investigativo do Colecionador de Pecados, mas Masha ainda não se libertara do seu medo de ser ridicularizada por aqueles detetives céticos, até fugir do gabinete por vergonha. Por isso, pediu a Andrey que os informasse acerca da Jerusalém Celestial. Enquanto expunha a teoria, os pormenores tresloucados pareciam encaixar, de alguma forma, e ninguém levantou qualquer dúvida. Alguns dos homens chegaram mesmo a tomar notas, o que deixou Masha ainda mais envergonhada. Também a assustava. Era como se, antes de o nome se tornar oficial, antes de terem uma equipa dedicada a caçá-lo, o Colecionador de Pecados tivesse existido exclusivamente na imaginação de Masha, independentemente dos seus crimes muito reais. «Como um vampiro ou o Abominável Homem das Neves», pensou Masha. Se alguém visse o Bigfoot, seria louco. Mas, quando um grupo numeroso de homens sérios da Petrovka puxavam pelos blocos de notas, tornava-se real.

– Acredito – dizia Andrey – que precisamos de voltar às primeiras vítimas. Se um deles conhecesse pessoalmente o suspeito, poderá ter inspirado os homicídios todos. Olhemos com maior atenção para Dobroslav Ovechkin. O seu pai era pregador na igreja dos Velhos Crentes de Basmanny. E a história das portagens, como saberão – Andrey sorriu por estar bastante seguro de que nenhum deles teria ouvido alguma vez falar daquilo – é um texto dos Velhos Crentes. São fundamentalistas. Ouviram as histórias. – Andrey fez uma pausa, percebendo o olhar mordaz de Masha. – E agora – continuou Andrey, gesticulando grandiosamente como um mestre-de-cerimónias circense anunciando o número seguinte –, a estagiária Maria Karavay informar-nos-á sobre o seu perfil do suspeito.

Masha apertou as suas notas, nervosa. A sua voz tremia um pouco enquanto falava.

– Vou distribuir cópias de uma tabela com as localizações correspondentes aos homicídios. Temos um consultor externo a trabalhar connosco, um historiador. Fez uma lista de locais que já identificámos com certeza e outros locais com potencial porque poderão ter-nos escapado algumas vítimas e também precisamos de presumir que o nosso suspeito pretende continuar a matar. A segunda página contém alguma informação que poderá ajudar-nos a compreender o suspeito. É um assassino em série, aparentemente muito organizado. Como sabem, este tipo de criminoso carateriza-se pelo seu autocontrolo. Tem um plano claro para perseguir e seduzir as suas vítimas.

Masha fez uma pausa e engoliu em seco. Os detetives continuavam a ouvi-la atentamente.

– Se um plano cair por terra, este assassino é capaz de adiar o seu crime um dia. Comporta-se de modos socialmente aceitáveis. É provável que viva com alguém, mas, na sua vida doméstica, poderá ser instável ou violento. Geograficamente, é móvel. Acompanha as notícias. Regressa ao local do crime para verificar o progresso da polícia. É provável que conduza um carro grande e que o use para transportar os cadáveres.

Parou para recuperar o fôlego e olhou Andrey de soslaio. Encostava-se a uma parede, olhando-a com ternura indisfarçada e um orgulho quase paternal. Masha precisou de esforço para não lhe retribuir o sorriso. Em vez disso, olhou os outros homens sentados à sua frente.

– Gostava de discutir convosco outro aspeto deste perfil. Poderão ver alguma coisa que nos tenha escapado.

– Espera mesmo que isto ajude? – Um jovem levantou-se. – Gerasimov – apresentou-se. – Quem quer saber da tríade homicida ou lá como se chama? Que diferença faz se o tipo mijava a cama em criança? A sério. É só masturbação intelectual. Um monte de balelas estrangeiras.

Andrey já se tinha endireitado para vir em defesa de Masha, mas esta antecipou-se.

– Se o modelo psicológico bater certo, ajudar-nos-á a identificar o culpado e, mesmo que não encaixe, poderá, pelo menos, ajudar-nos a eliminar alguns suspeitos da lista. Pensem no número de pessoas que a polícia prendeu devido a indícios falsos antes de apanhar Chikatilo.

– Os nossos investigadores não acham que seguir um perfil seja má ideia e não falarias com eles dessa forma – acrescentou um detetive grisalho, olhando o jovem com desagrado. – Continue, menina.

– O Colecionador de Pecados é um missionário maníaco. – Masha voltou a olhar em redor. – Escolhe as suas vítimas com cuidado porque, para ele, não é o homicídio em si que é importante e sim a mensagem que transmite à humanidade. Portanto, comecemos pelas características gerais de personalidade. Que poderemos acrescentar, baseando-nos nos incidentes ocorridos?

– É pedante – disse Andrey, dando o exemplo.

Masha agradeceu-lhe com um olhar.

– Execuções elaboradas como estas exigem muitos preparativos, o que significa que será muito organizado, como disse – contribuiu o detetive grisalho.

– Controla o local do crime por se sentir frustrado com a sua vida? – acrescentou Fomin, um tipo ruivo e sardento à sua esquerda.

– Não – contrapôs Masha. – Não se trata de frustração. É mais uma questão de controlo. Controlo do pecado e punição pelos pecados.

– Como se fosse Deus?

– Não – disse Masha, abanando a cabeça. – Não se vê como Deus e sim como um demónio, um cobrador de portagem. Portanto, não se considera livre de pecado. – Masha calou-se. Enfrentou o olhar de Andrey e percebeu que pensava o mesmo.

– Talvez tenha estado preso? – sugeriu Andrey. – É daí que vem o conhecimento íntimo sobre a aplicação da lei? Além disso, conhecia o Yelnik, um tipo cruel.

Masha acenou com a cabeça. Precisaria de pensar um pouco mais sobre aquilo e manipular mentalmente a possibilidade. Prosseguiu.

– E quanto a hábitos? Talentos? Alguma ideia?

– É provável que mantenha a casa e o carro muito limpos. Praticamente desinfetados. Por ter um fascínio tão grande pela limpeza e pureza, de todas as formas – sugeriu Gerasimov.

Masha concordou com um aceno de cabeça, surpreendida pela mudança de ideias tão rápida do jovem.

– Concordo.

Outros membros do grupo avançavam com ideias.

– Conhece o trabalho policial de dentro para fora porque nunca deixa rastos.

– É forte. Ou como teria conseguido esquartejar aquela mulher?

– É provável que esteja na meia-idade, entre os quarenta e os cinquenta e cinco. Confiante, competente. As pessoas confiarão nele.

– Onde vive? – perguntou Masha. A seguir, respondeu à sua própria pergunta. – Tem uma área de ação muito definida, o interior das velhas muralhas de Bely Gorod, onde atualmente se situa a Circular. Só deixa cadáveres aí, em plena baixa. Mas, como todos sabem, a sua escolha de vítimas e locais baseia-se no padrão religioso que identificámos e não na conveniência. Mesmo assim, vendo como conhece bem a área, parece-me que o nosso suspeito viverá e talvez trabalhe na baixa.

– E quanto a educação? – recordou-lhe Andrey.

– Decididamente um curso superior. Inteligência acima da média. Quanto a profissão... – Masha olhou os seus apontamentos. – É provável que o seu trabalho envolva tomada de decisões, algo em que possa ter a certeza de nunca errar. Existem várias ocupações que lhe dariam essa sensação de poder absoluto...

– Professor! – exclamou Gerasimov, como o aluno problemático ao fundo da sala.

– Físico ou matemático.

– Não, historiador!

– Talvez médico? – sugeriu Fomin. – Um cirurgião! Sabe desmembrar pessoas.

– Um general aposentado que não sabe o que significa amor e está habituado a dar ordens a toda a gente.

Andrey ergueu uma mão para os acalmar.

– Penso que haverá uma boa probabilidade de trabalhar no sistema de justiça criminal.

Os homens pareceram crédulos. E assustados.

– Um de nós? A sério? – murmuraram.

– Chegou com demasiada facilidade à mulher do governador e também a outras pessoas poderosas – continuou Andrey, quase como se falasse consigo mesmo. – Não temos indícios suficientes. Na verdade, não temos indícios nenhuns. Tudo é circunstancial. Talvez tenha um carro azul. Talvez tenha voz aguda.

– A esse respeito, não me parece que seja verdade – disse Masha, franzindo a testa. – Penso que recita coisas da história das portagens às suas vítimas antes de morrerem. Mas isso faz parte da sua assinatura. Quando está em pleno ritual, poderá sentir-se outra pessoa. Ou – corrigiu-se – poderá sentir-se um demónio. E, se acreditar que os demónios guincham e uivam, isso significará que tornará a sua voz mais aguda.