ANDREY
Andrey deixou Gerasimov à espera junto ao placar lá fora e entrou na igreja de Basmanny. Masha tinha-lhe dito que aquela igreja era nova. Mas, tanto quanto Andrey percebia, não havia diferença. Tinha a mesma cúpula dourada pontiaguda, as mesmas paredes brancas.
Mas só conseguiu dar dois passos no terreno da igreja antes de o seu caminho ser bloqueado por um homem barbudo com um fato cinzento e uma camisa saída do folclore russo. O homem perguntou-lhe quem era, num tom formal, mas perfeitamente cortês. «Compreensível», pensou Andrey. Comparado com os Velhos Crentes, afinal, era provável que parecesse suspeito, barbeado e estranho. Andrey mostrou-lhe o crachá e o homem barbudo acenou bruscamente com a cabeça e sugeriu que conversassem numa porta ao lado.
Andrey surpreendeu-se por descobrir que havia um café decorado à maneira dos Velhos Crentes mesmo ao lado da igreja e olhou em redor, desconfiado, quando entraram. A decoração incluía paredes de tijolo, mesas simples com bancos de madeira escura e um ícone da Virgem Maria na parede.
O homem barbudo fechou a porta e sentou-se à frente do seu visitante inesperado numa mesa ao canto.
– Chamo-me Yakov.
Os olhos de Yakov pareciam pregos martelados por baixo do sobrolho ossudo. – Ovechkin não está na igreja agora. Mas cuido do café e da banca de recordações. Talvez possa ajudar?
Andrey voltou a olhar o espaço mal iluminado, que cheirava talvez apenas um pouco a incenso. Passara a manhã com fome e não resistiu a perguntar ao seu anfitrião:
– Que tipo de comida servem aqui?
Surgiu um sorriso atrás da barba de Yakov e pediu desculpa, mas o café estava fechado no início da semana e não podia servir-lhe nada. Mas, nos outros dias, as pessoas podiam comer ali a preço razoável, escolhendo pratos que não violavam qualquer preceito religioso. Nada de carne ou lacticínios durante a Quaresma, claro, mas, no resto do ano, serviam pratos tradicionais. Empadas de carne, sopa de couve, lapshennik...
Andrey acenou com a cabeça e, apesar de nunca ter ouvido falar de lapshennik, sentiu ainda mais fome que antes.
– Deixe-me dizer-lhe o que me traz aqui – disse, receando que o seu estômago roncasse. Yakov inclinou a cabeça para um lado, preparado para ouvir. – Investigamos um suspeito específico. Pensamos que poderá estar relacionado com os Velhos Crentes.
Yakov estremeceu.
– Acredita que o seu suspeito é membro da nossa comunidade? Posso perguntar-lhe em que baseia essa crença?
– Não. – A negação pareceu rude, mas Andrey não queria explicar-lhe toda aquela história confusa de Jerusalém. – Pensamos que será um homem de meia-idade, bem constituído, bem-educado. Um médico, um professor, um soldado ou... – forçou um sorriso – um polícia. É provável que conduza um automóvel azul-escuro. Agradeceria se pudesse informar-me se algum dos seus paroquianos se encaixará nessa descrição. Especialmente os que tiverem uma tendência para o fanatismo.
Yakov suspirou e franziu a testa.
– Veio aqui por acreditar que os Velhos Crentes são fanáticos religiosos, não é?
Andrey não respondeu.
Yakov manteve o silêncio desconfortável, tamborilando com as unhas rentes no tampo da mesa de madeira escura.
– Sabe – começou. – Nos anos setenta, geólogos soviéticos encontraram um batatal cultivado nas profundezas da taiga. Os Velhos Crentes que cultivaram esse campo viveram aí durante cinquenta anos, completamente isolados do mundo secular. Estavam longe de tudo neste mundo moderno, mas nunca sentiram que lhes faltasse alguma coisa. Para mim, fazer parte da família... e é isso que chamamos a nós mesmos, uma família... é semelhante a esse batatal. Um brilho de civilização na imensidão selvagem habitada por bestas perigosas. Se este suspeito de que fala tiver cometido um pecado horrendo... – Parou e fixou os olhos pequenos e intensos em Andrey. – Isso significará que não aprendeu a viver com a besta. Reage-lhe. Essa besta, essa besta humana, assusta-o. Aprendemos a sentir medo, compreende? À nossa volta, o mundo tem mudado desde mil seiscentos e sessenta e seis, esse ano diabólico do nosso cisma com os tiranos e os inovadores religiosos. Todos os vossos reality-shows, com todas aquelas caras vulgares e corpos nus pecaminosamente espalhados em milhões de ecrãs em cada lar, não são mais perigosos para nós do que os comissários medievais, czaristas ou comunistas com as suas ideias novas e heréticas. A nossa comunidade viu tudo isto antes. Queimaram-nos as casas à nossa volta, mas nunca respondemos na mesma moeda, compreende? Tudo o que fizemos foi resistir.
– Então nunca recebem novos convertidos? – perguntou Andrey, cético.
– Há quem nos procure – admitiu Yakov. – Mas são pessoas que procuram as suas raízes. Por mais que a Rússia tenha sofrido, por mais que as almas das pessoas tenham sido forçadas a mudar de direção com o vento, por mais que as nossas mentes tenham sido projetadas em direções diferentes, virando-se primeiro para o comunismo e depois para o capitalismo galopante... – Yakov abanou a cabeça com tristeza. – Mesmo assim, há jovens que desejam refugiar-se nas profundezas da tradição. Ninguém está mais próximo da tradição do que os Velhos Crentes. Também saberá que o povo russo é afligido por uma podridão. Tudo aqui está tão podre como a vara que usam para nos atormentar. Pense nisso! Em toda a história, só numa ocasião o povo russo disse não ao estado e aos tiranos. O nosso povo manteve a sua dignidade durante toda a perseguição, as execuções e a tortura. Sobrevivemos há quatro séculos. E veja o tipo de cegueira que o Senhor enviou para nos amaldiçoar! A nossa história está repleta de sofrimento e de coragem milagrosa, mas ninguém vê nada além da obsessão religiosa!
Yakov bateu na mesa com o punho e, com a mesma rapidez, voltou a acalmar-se e passou a mão pela barba.
– Vá com Deus e não procure o seu fanático entre os Velhos Crentes. Há muito tempo que nenhum de nós pega na espada. Recolhemos às nossas celas ou abandonamos esta vida. É o que fazemos.
– Então não há uma cruzada pela pureza? Nunca vos aparece alguém que queira limpar este país podre? – insistiu Andrey.
– Jovem – começou Yakov, baixando a voz –, esqueceu o significado da palavra «dignidade». Mas não o censuro. O esquecimento tornou-se um traço nacional. – Virou-se para o ícone na parede.
Andrey ergueu-se e despediu-se do seu interlocutor barbudo. Yakov não o tinha convencido de nada e, obviamente, se Andrey quisesse obter informações sobre a igreja, teria de procurar outra fonte. Saiu para fumar um cigarro. Duas noites antes, sentada naquele parapeito de janela e aninhada no seu braço, Masha contara-lhe que aqueles cismáticos não fumavam e nem sequer bebiam café ou chá e muito menos álcool. Sabia isso graças a Kenty, que tinha partilhado com ela as suas histórias dos Velhos Crentes desde a infância. «Costumavam guardar uma garrafa cheia de vodca em casa», partilhou Masha. «Apenas para mostrar que o homem da casa não bebia.»
Teria sido uma boa escolha na sua casa de infância, pensou Andrey. Talvez o seu pai tivesse sobrevivido um pouco mais. Havia outras famílias que também poderiam ter beneficiado, claro. As faces pequenas e pálidas de Petya e Kolya surgiram-lhe diante dos olhos.
De repente, o cigarro pareceu-lhe amargo. Atirou-o a um caixote do lixo por perto.