ANDREY
Andrey conseguiu reunir coragem para convidar Masha só depois de parar o carro diante da porta dela.
– Se quiseres – disse, soprando fumo pela janela aberta do seu velho Ford –, podemos ir para minha casa?
Poderia ter dito: «Vamos para minha casa e apresento-te o Marilyn Monroe.» Ou: «Mostro-te o tipo de casa que um polícia que não aceita subornos consegue pagar. Mostro-te o plástico sobre a mesa lá fora, gasto até se ver o tampo por baixo. Ou as cadeiras desirmanadas que chiam, a toalha manchada pendurada ao lado da bacia ferrugenta, o papel de parede inchado e desnivelado com o último nevão. Sim, tenho tanta coisa para te mostrar, coisas como nunca viste. Não há antiguidades preciosas lá!»
Por que motivo, perguntara a si mesmo muitas vezes quando pensava no que era necessário para conseguir levar uma rapariga para casa, era preciso recorrer ao pretexto de lhe mostrar alguma coisa que não vinha nada a propósito? Como uma coleção de velhos discos de blues ou qualquer coisa parecida. Olhou Masha e corou.
– Mas só se prometeres não deixar que a minha desarrumação te assuste – acrescentou em voz alta.
Masha virou para ele a face pálida élfica e permitiu-lhe ver os seus olhos, que pareciam quase transparentes na escuridão.
– Vamos – disse ela, apertando-lhe a mão com força.
E, fazendo guinchar os travões (era naquilo que o seu motor reforçado era bom!), afastou-se do passeio antes de mudar de ideias, dirigindo-se para um sítio onde a escuridão faria desaparecer as diferenças entre eles. Mais depressa. Precisava de ir mais depressa. As possibilidades da noite diante deles fizeram o sangue subir à cabeça de Andrey e sentiu-se aquecer apesar da brisa que entrava pelas duas janelas abertas.
Manobrou habilmente o carro, como se jogasse um jogo de computador ou como se consumisse drogas. Estava realmente sob efeito de alguma coisa, mas era totalmente natural. Aquela euforia deixou-lhe a visão mais nítida e os reflexos mais rápidos. Masha encolhia-se no seu banco, olhando a estrada como se também ela forçasse mentalmente o carro a ir mais depressa.
Tinham passado a Circular que envolvia a cidade e viraram para uma autoestrada que seguia para o campo, seguindo-se uma estrada local, com casas escuras e silenciosas dos dois lados. O ar cheirava a erva cortada e areia molhada. Por fim, parou o carro, desligou o motor e suspirou. Voltou a dizê-lo como se lançasse um feitiço.
– Não deixes a minha desarrumação assustar-te.
Mas Masha já tinha saído do carro. Espreguiçou-se como um gato, inspirou fundo, sorriu-lhe e pegou-lhe na mão. Andrey abriu o portão e caminharam até ao alpendre. No interior, Marilyn Monroe implorava pela liberdade, ladrando e ganindo alegremente. Quando Andrey abriu finalmente a porta, o cão saltou sobre ele, quase atirando-o ao chão e fazendo a dança feliz de um cão que sabia que, finalmente, estava prestes a jantar e a brincar lá fora.
– Olha, amigo! Esta é a Masha! É a Masha! – disse-lhe.
Marilyn olhou uma única vez e, sem cerimónias, enfiou-lhe o focinho por baixo da saia antes de pressionar a cabeça peluda contra a mão dela e de lhe roçar uma pata pelo joelho exposto.
Andrey alimentou o mendigo e deixou-o correr no jardim. A seguir, pela primeira vez desde que chegara a casa, virou-se para Masha, com a euforia substituída pela trepidação. Onde raio estavam todas as coisas que deveria ter à mão para um romance? Velas? Uma garrafa de vinho bom? Lençóis de seda, foda-se? Tinha a certeza absoluta de que Kenty teria tudo isso preparado.
– Queres chá? – perguntou-lhe. – Não tenho comida, mas...
Masha abanou a cabeça sem dizer nada e deu um passo em frente. Andrey puxou-a bruscamente para perto e, com uma mão atrás da cabeça dela, encostou-lhe os lábios ao pescoço, perto da orelha, inspirando avidamente o seu perfume e aquele cheiro, tão certo e tão dela, desligou-lhe imediatamente o cérebro. Em vez de pensar nos lençóis (além de não serem de seda, nem sequer estavam muito limpos), passou a agir por instinto. Quem precisava de vinho ou de velas?
«Maldição, Masha Karavay», pensou, «como é possível que sejas tão suave em todos os sítios que os meus dedos e os meus lábios conseguem alcançar?» Cada curva do seu corpo parecia feita para a sua mão. O seu joelho exposto, o seu ombro acetinado, os seus seios pequenos e macios, a depressão suave do seu estômago. Como podia ter-lhe parecido distante quando tinham sido feitos um para o outro? Magoava-a quando a abraçava com tanta força? Os seus dedos estavam sedentos. O que tocariam a seguir? «Masha, Masha, que me fazes? Olha para mim, Masha! Olha-me nos olhos!» Mas os olhos dela estavam fechados com força e contorcia-se debaixo dele, gemendo com o derradeiro espasmo de prazer, pressionando o seu corpo quente contra o dele. Andrey não conseguiu conter-se mais e também fechou os olhos, sucumbindo à descarga de toda a tensão acumulada.
*
Andrey teria dado quase tudo por um cigarro, mas a cabeça de Masha repousava-lhe no ombro e receava mover-se. O som de uma chuva noturna suave entrou pela janela entreaberta. Os lençóis estavam húmidos, mas Andrey sentia o suor secar lentamente no seu peito. O quarto começara a arrefecer. Puxou o cobertor sobre ela. Ouviu a chuva e os passos de Marilyn Monroe no exterior, deleitando-se com o seu passeio muito adiado. Andrey estava tão cheio de felicidade, tão cheio como o velho barril de metal que tinha deixado lá fora no dia anterior, esperando juntar alguma água da chuva.
Não foi o estalar das tábuas sob as patas do cão a acordá-los, nem os raios de sol que se infiltravam teimosamente pela janela sem cortinas e nem mesmo o clamor matinal dos seus vizinhos. Foi o toque suave de um telefone. Andrey suspirou de alívio porque não era o seu, o que significava que não seria um telefonema de trabalho. Mas Masha levantou-se, permitindo a Andrey um olhar ao seu posterior gracioso e começando a vasculhar entre as pilhas de roupa no chão.
– Sim, mamã – disse ela, com voz ensonada, quando encontrou finalmente o telefone. – Leste a minha mensagem? Sim, está tudo bem. – O murmúrio do outro lado transformou-se num soluçar e Masha sentou-se, puxando um cobertor até ao peito. – O que foi, mamã? O que aconteceu? Porque choras? – Ficou ali sentada, à escuta, arqueando as sobrancelhas e acenando com a cabeça. – Pode ser qualquer coisa, não é? Pode ter perdido o telefone ou pode ter decidido dormir em casa de um amigo. Quem sabe? Ou talvez um dos pacientes tenha tido uma crise. Há uma primeira vez para tudo. Estamos no fim de semana. Talvez tenha bebido uns copos e... – Ouviu-se mais choro do outro lado da linha. – Mamã! Podes esperar um pouco? Vou já para aí, está bem?
Desligou e virou-se para Andrey, parecendo abalada.
– O meu padrasto desapareceu. Tenho de voltar para Moscovo.
Andrey segurou a cara de Masha entre as mãos. Emoldurada pelos seus dedos, parecia uma rapariguinha assustada e preocupada. Beijou-a na testa, no nariz, nos lábios quentes e na face, onde ainda se notava um vinco da almofada.
– Bom dia! – disse-lhe. – Veste-te. Vou fazer café.
Ergueu do chão a camisa do dia anterior, cheirou-a rapidamente e prometeu a si mesmo que a trocaria por uma camisa lavada. Mesmo que esse plano pudesse fracassar, admitiu Andrey a si mesmo enquanto entrava na cozinha, se não conseguisse encontrar uma camisa lavada. E teria café a sério? O suficiente para duas chávenas, pelo menos? Ou mesmo para uma?
Afastou o cão irritante do caminho com um pé enquanto colocava sobre a mesa o conteúdo do armário, aprendendo algumas coisas sobre si mesmo enquanto o fazia. Por exemplo, descobriu que tinha canela. Pelo menos, era o que dizia o rótulo desbotado. Enquanto movia o pacote nos dedos, pensou se seria possível pôr canela no café. Ou bebê-la em vez de café? A seguir, descobriu uma embalagem de esparguete e um saca-rolhas ferrugento, uma lata de metal de conteúdo incerto (consumível de preferência até ao fim de outubro do ano anterior) e algumas bolachas de água e sal moles. Mas nem um único vestígio de café além da porcaria instantânea. Irritado, atirou a lata misteriosa ao lixo, mesmo que, normalmente, tivesse arriscado abri-la, dividindo generosamente o que tivesse dentro com Marilyn.
O cão olhou-o com censura, enquanto o pequeno tacho que tinha colocado sobre o velho bico de gás à espera do café inexistente começava a ferver e a inclinar-se. Sem pensar, Andrey segurou na pega de alumínio, guinchou de dor e praguejou enquanto Masha Karavay surgia diante dele. Estava totalmente pronta para ir e fixou nele um olhar cético.
– Hmm – disse Andrey. – Desculpa. Nada de café na cama hoje. Nada de café em qualquer sítio, na verdade. A não ser que queiras instantâneo. – Como um imbecil, pegou no frasco de Nescafé e mostrou-lho.
– Talvez chá? – pediu Masha, inocentemente, animando-o desmedidamente. Porque tinha um pouco de Lipton.
Abraçou-o, escondendo o sorriso no peito jovem e forte de Andrey.
– Estou malcheiroso e nojento – sussurrou-lhe ele ao ouvido, envergonhado.
– Não faz mal. – Olhou-o e sorriu. – Se conseguir chá, estou disposta a aguentar.
Começou a beijá-lo e não demoraram a deixar-se levar. Marilyn Monroe olhou-os, analisando a situação, sem estar ainda pronto para abandonar a esperança de conseguir pequeno-almoço.
Até o toque do telefone de Andrey ecoar pela cozinha.
– O que foi? – perguntou bruscamente ao telefone.
Estacou e Masha também.
«Outra vez?», questionaram os olhos dela, perdendo num instante todo aquele brilho sonhador.
«Não sei», respondeu Andrey com um olhar, apertando-lhe o ombro como se agarrasse o único ponto sólido que conseguia encontrar naquele pesadelo.
*
Não falaram pelo caminho. Masha olhava fixamente pela janela e Andrey semicerrava os olhos com força, concentrando-se na estrada por onde seguiam. Acabara de ordenar à estagiária Karavay que fosse para casa, para junto da mãe e para se ocupar de assuntos familiares, tranquilizando a progenitora, localizando o padrasto ausente e assegurando que fariam as pazes. Disse-lhe também que não precisava de pensar em homicídios durante o fim de semana.
Masha ficou ofendida, o que Andrey compreendeu muito bem, mas não podia levá-la consigo. Fomin, que tinha sido o primeiro a chegar ao local do crime, tinha dito que era horrível e que nunca vira nada assim. Esse era um bom motivo. O outro era um sentimento estranho, nas profundezas do seu estômago, que desistira de sussurrar e passara a gritar-lhe ao ouvido: «Não deixes a Masha aproximar-se deste!»
Chegaram ao prédio dela e Masha abria a porta para poder sair sem dizer uma palavra, mas Andrey puxou-a para dentro e beijou-a, mesmo que resistisse como um pequeno pássaro orgulhoso. Andrey esperou que o beijo o aguentasse durante um dia que sabia que seria longo e terrível. «Pobre rapariga», pensou enquanto a via afastar-se. «Belo namorado que arranjaste. Nada de velas, café na cama e nem sequer chá no alpendre. Amou-te e deixou-te... Trocou-te por um cadáver por identificar.»
*
O local do crime era um apartamento alugado dentro dos limites das antigas muralhas de Bely Gorod, uma linha no mapa que Andrey via, por aqueles dias, como uma barreira de sangue e chama. Quando chegou, custou-lhe abrir caminho pelas escadas cheias de gente. Mesmo que não fosse um dia de semana, todos os membros da equipa investigativa tinham vindo e erguiam-se por ali, fumando e falando em voz baixa, esperando que os peritos forenses terminassem. Andrey cravou um cigarro a Fomin enquanto o detetive descarregava informação sobre ele com um sussurro excitado. O cadáver tinha sido encontrado numa espécie de caixão com a forma de uma boneca enorme, com pregos afiados cravados no interior oco. O assassino tinha fechado a vítima no interior e os pregos tinham-lhe furado os braços, as pernas, o estômago, os olhos...
– Nem dá para o ver bem! – disse Fomin a Andrey, com olhos arregalados e sérios. – Sangue por todo o lado! O pobre coitado tentou soltar-se e só cravou mais os pregos. – Fomin inspirou fundo. A recordação parecia não lhe agradar.
– Quem chamou a polícia? – perguntou Andrey.
– Uns três vizinhos diferentes, cada um por si. Parece que o assassino lhe bateu na cabeça para o deixar inconsciente e enfiou-o naquela boneca. Mas o tipo acordou e começou a gritar. – Fomin voltou a empalidecer, imaginando os gritos.
Andrey disse-lhe e a Gerasimov que questionassem os vizinhos e subiu para visitar o apartamento. Ergueu-se ao lado do perito forense e curvou-se sobre o cadáver. Era realmente difícil vê-lo, todo coberto de sangue. E a cara... Olhar durante demasiado tempo para aquela cara, paralisada e distorcida num espasmo de terror, estava completamente fora de questão.
– Alguma coisa nos bolsos? – perguntou Andrey com voz rouca, forçando-se a afastar o olhar dos dentes brancos no esgar hediondo do morto.
– Aqui está.
Alguém lhe passou uma bolsa de plástico transparente contendo uma fotografia de um homem sorrindo alegremente enquanto abraçava uma mulher. O homem era, obviamente, o mesmo que jazia à frente deles, modestamente coberto com um lençol. Andrey indicou com um gesto que podiam levar o corpo. Mas a mulher... a mulher na fotografia... parecia estranhamente familiar. Quando lhe ocorreu que os seus lábios eram tal e qual os de Masha, sentiu um aperto no estômago. Quão apaixonado estaria para ver a cara dela em tudo o que olhasse? Depois, recordou a cara atrás da porta da casa de Masha. «A Masha não está. Os livros também não estão. Estará na biblioteca.» Era a mãe de Masha na fotografia e o tipo teria de ser o padrasto desaparecido. O que significava que seria o pobre coitado que tinha passado a noite na dama de ferro. «Masha!» As pernas de Andrey cederam e tombou pesadamente sobre uma cadeira. Voltava tudo a Masha, outra vez. Poderia ser uma coincidência? Até a pergunta parecia ridícula. O Colecionador de Pecados tinha escolhido aquela vítima apenas por estar tão próxima de Masha. E, claro, porque o padrasto de Masha encaixara de alguma forma naquela maldita tabela que a própria Masha tinha fotocopiado para os membros da equipa.
Andrey retirou a folha do bolso de trás das calças de ganga. O padrasto de Masha não desaparecera muito antes e, supondo que o assassino seguia uma ordem, o pecado dele seria pior ainda que o do pedófilo Minayev. Havia apenas duas portagens na lista depois da portagem da sodomia: a dezanove e a vinte, heresia e crueldade. O padrasto de Masha, tanto quanto Andrey percebia pela conversa de Masha com a mãe naquela manhã, era médico. Talvez tivesse sido demasiado ríspido com um dos seus pacientes? Ou, cruelmente, poderia não ter percebido a dimensão da doença de um deles? Um doente mental seria mais fácil de culpar pelo crime do que um Velho Crente. Não era uma má teoria, mas precisava de ser trabalhada. O padrasto de Masha poderia, com a mesma facilidade, ter sido um batista, o que seria considerado heresia para os fiéis ortodoxos. Assim, encaixaria na penúltima portagem.
Teria de contar a Masha. Teria de lhe ligar, interrompendo o procedimento doloroso e humilhante que a ocuparia e à mãe naquele momento, ligando a todos os hospitais para perguntar se teria sido admitido, ligando a todos os amigos e parentes para perceber se teria passado a noite com eles. Mas que era essa humilhação comparada com a verdade: era um cadáver frio cheio de buracos e com uma fotografia da mãe de Masha no bolso. Não. Andrey precisava de mais alguns minutos antes de marcar o número que já sabia de cor. Mais alguns minutos para pensar.
Voltou a ler a tabela, franzindo a testa. Parecia-lhe que o suspeito se tinha enganado na ordem, saltando sobre portagens. Era como se, depois de perceber que a polícia descobrira o seu método, tivesse deixado de se dar ao trabalho. A ordem avançava e recuava como se fosse um jogo de crianças. E havia outra coisa: porque tinha o assassino posto uma fotografia de família no bolso da vítima? Seria porque a mãe de Masha estaria, de alguma forma, envolvida no seu enredo? Andrey suspirou audivelmente e, com coração pesado, puxou pelo telefone. Precisava da ajuda de Masha. Por mais horrível que fosse, deixara de ser apenas uma detetive envolvida na investigação. Passara a ser também uma testemunha. Era como se o assassino quisesse envolvê-la em cada parte do processo, da teoria à prática, da investigação à prova, da prova... Andrey não conseguiu impedir-se de completar o pensamento... à cumplicidade.
*
Fomin sentava-se diante da vizinha do andar de baixo, uma mulher com uma palidez pouco saudável. A cor da sua pele explicava-se pelo odor a tabaco velho entranhado no pequeno e pobre apartamento e pela sua profissão. Era tradutora técnica. Na sua cozinha, que também funcionava como escritório, havia um velho computador portátil e uma pilha de manuais de instruções para tipos variados de engenhocas de cozinha topo de gama: micro-ondas e panelas de pressão, máquinas de fazer pão, batedeiras e fritadeiras. A única máquina visível na sua cozinha minúscula era um velho frigorífico tremendo num estado de exaltação senil. Embrenhada como estava na palavra escrita, a mulher tinha poucas oportunidades para falar com seres humanos e mostrava-se ávida por uma boa conversa, mesmo que tivesse de ser com um polícia.
Fomin já tinha desistido de fazer perguntas. Porquê dar-se ao trabalho se a mulher lhe contaria tudo sem precisar de se esforçar? E fazia um bom trabalho, falando com precisão e sem se deixar distrair pelos pormenores. Poderia ser um dia de sorte para o ruivo. Fomin classificava cada circunstância da sua vida de duas formas possíveis: ou o ruivo tinha sorte ou não tinha. De forma suficientemente conveniente, essas duas categorias tinham sido tudo aquilo de que precisara nos vinte e seis anos anteriores. Namorada nova? O ruivo tinha sorte. Sem sítio onde construir uma família? Azar do ruivo. A rapariga troca-o por outro tipo qualquer? Provavelmente sorte do ruivo, pois o que faria com ela sem sítio onde viver? E assim sucessivamente.
O apartamento por cima do dela, disse a vizinha, tinha estado praticamente vazio, sendo usado exclusivamente para folguedos de amantes. Foi a palavra que usou: «Folguedos.»
– Tem a certeza? – perguntou Fomin.
– Sem qualquer dúvida – disse a tradutora. – Ouve-se tudo. O casal vinha, por vezes à hora de almoço, por vezes à noite. E faziam sexo. – Cuspiu a palavra. – Basicamente – continuou a mulher, acenando com a cabeça –, há cerca de um ano, um casal muito sofisticado alugou-o. Ele parecia um professor. – Fomin ficou com pele de galinha, recordando o homem dentro da boneca de madeira. – E ela parecia a aluna preferida. Muito mais nova que ele, muito bonito. Era a história habitual. Um homem mais velho atraído por carne fresca. – A tradutora soltou um ronco de censura, esperando obter algum tipo de reação, mas Fomin não alinhou, limitando-se a acenar calmamente com a cabeça para a encorajar a continuar.
Aquelas pessoas de aspeto sofisticado faziam amor de uma forma nada sofisticada, gemendo e gritando, incomodando a vizinha de baixo (e os vizinhos do lado, como referiu), enquanto tentava cozinhar, tomar banho ou ver o noticiário da noite. Os arrufos apaixonados por cima faziam abanar o velho candelabro checo da tradutora, levando-a a fumar nervosamente e a pensar na sua condição de mulher solteira. Mas a parte mais engraçada era que, por vezes, se cruzava com eles nas escadas parcamente iluminadas ou no elevador e, de alguma forma, nunca tinha conseguido dizer-lhes uma palavra. Era o benefício de se parecer tão sofisticado. Intimidava as pessoas. De qualquer forma, seria inútil repreendê-los. Os seus encontros não eram frequentes, não acontecendo mais de uma vez por semana, e os gemidos vindos de cima eram mais fáceis de tolerar do que o casal jovem com o bebé recém-nascido que nunca parava de discutir e já tinha deixado a água da banheira transbordar e chegar à casa da tradutora em três ocasiões. Com as pessoas do andar de cima, pelo menos, havia a excitação e o suspense da paixão secreta.
– Mas ontem... – A vizinha franziu a testa. – Tudo começou como era habitual. Ele chegou primeiro, provavelmente pelas quatro horas. Percebo que era ele pelos sapatos pesados. Ela calçava uns saltos finos. Ouvi-o girar a chave na fechadura e a porta abriu e fechou. Mas ela nunca chegou. Não ouvi saltos nas escadas, nem o elevador a parar no andar de cima.
Fomin riu-se para si mesmo. O romance secreto tinha interessado muito mais a vizinha do que queria admitir.
– Talvez tenha passado uma hora. Começava a fazer o jantar, quando a porta voltou a abrir e fechar. Pensei que o homem se teria cansado de esperar e se teria ido embora, mas, não. Era outra pessoa a entrar no apartamento.
– De certeza que não era a mulher? – perguntou-lhe Fomin.
– Não! – respondeu a tradutora, cheia de entusiasmo. – Não ouvi barulho nas escadas. E o elevador faz um barulho terrível. É impossível não ouvir. Não. Era alguém que desceu do andar de cima.
– Então essa pessoa tinha estado à espera? – perguntou Fomin, pensativo.
– Talvez. – Acenou afirmativamente e levou a mão ao seu maço de cigarros. – Ouvi a campainha tocar durante muito tempo e a seguir ouvi uma voz masculina.
Fomin focava toda a sua atenção na vizinha.
Viu-a soprar fumo de cigarro pela pequena janela aberta, com a tinta a sair e as dobradiças tortas. Hesitou.
– Pareceu-me que o ouvi dizer...
– Sim? – incitou Fomin.
A tradutora voltou a olhar Fomin e, pela primeira vez, pareceu assustada.
– «Abre! Sou eu!»