MASHA
Masha abraçava a mãe, mas era evidente que os seus braços não seriam suficientes. Talvez fossem demasiado curtos ou talvez Masha fosse a pessoa errada para aquilo. Mas não havia mais ninguém. Nem o papá nem o antipapá. Natasha afundava-se, caindo como Alice pela toca funda e escura do coelho. E Masha sabia o que encontraria no fundo: a morte do papá, dor e terror e a sua própria solidão. Só tinham passado cinco minutos desde o telefonema de Andrey, mas, durante a manhã inteira, enquanto ligava para todos os sítios que lhe ocorriam, Masha soube. Sentiu-o nos ossos, da mesma forma que se sentirá a respiração de outra pessoa numa divisão escura. Era inútil. Não estava com amigos, não estava com colegas, não estava em nenhum hospital. Era tarde de mais. Estava num sítio onde as súplicas delicadas da sua mulher não conseguiriam alcançá-lo.
Por fim, Masha percebeu o que Belov, e a presença discreta dele na sua vida, tinham significado. O café perfeito de manhã, o olhar amável que continha o impulso da sua mãe para massacrar Masha com demasiadas perguntas pessoais. Até mesmo o seu número de psicólogo bondoso a ajudara a manter-se à tona, quando pensava nisso. Sentira-se ligada de forma genuína e intensa àquele homem grande e gentil. A irritação que costumava sentir com ele desapareceu.
Entretanto, o corpo de Natasha tremia, apesar da dose dupla de Valocordin administrada de urgência, e os seus dedos, apertando dolorosamente o antebraço de Masha, estavam frios como gelo. Masha tomou uma decisão. Marcou o número de um velha amiga da mãe da faculdade de medicina, que trabalhava a poucos quarteirões de distância, tentando contar-lhe a versão resumida de tudo o que tinha acontecido. O seu padrasto estava morto, a mãe estava aparentemente em choque e Masha não sabia o que fazer.
– Masha! – exclamou a amiga, com a preocupação deixando-lhe a voz trémula. – Calma, querida! Vou já para aí. Fica com ela, está bem? Deita-a na cama, se conseguires.
Masha desligou e virou-se para a mãe.
– Vamos, mamã. Vamos levar-te para a cama. A Nadya não demora. – A mãe olhou-a sem a ver realmente e Masha sentiu uma pontada de horror. Pegou na mão de Natasha e tentou levantar-se, puxando a mãe. – Vamos – repetiu, delicadamente. – Vou levar-te para a cama.
Natasha levantou-se e, com pequenos passos, como um camião puxando um reboque, saíram para o corredor. Ocorreu a Masha que seria um erro levar a mãe para o quarto que partilhara com o seu segundo marido. Por isso, abriu a porta do seu quarto.
Natasha parou junto à porta e os seus olhos ganharam vida quando se focaram em algo à sua frente. Masha inclinou o pescoço para ver o que a sua mãe olhava tão fixamente e praguejou entredentes. O seu quarto também não era uma opção segura. A fotografia a preto e branco do seu pai olhava a mulher e a filha da parede em frente. Parecia mais vivo do que as duas juntas. O impasse durou uns dez segundos até Natasha se virar para a filha e dizer, em voz muito baixa:
– A culpa é toda tua. – A seguir, levou a mão ao peito e, como se estivesse num filme, desabou no chão.
– Mamã, o que se passa? É o coração? – gritou Masha.
Nesse instante, a campainha tocou e Masha correu para abrir. Tropeçou no tapete e puxou a porta quase em queda.
– Nadya! – Já não tentava agir como se controlasse a situação. Masha sentiu que tinha recuado onze anos no tempo e ali estava, pequena e perdida, sobre o cadáver do seu pai. – Há um problema qualquer com a mamã. Acho que é o coração!
– Calma, calma – tranquilizou-a Nadya, entrando à pressa. – Natasha! – Nadya agachou-se ao lado da amiga e, com um gesto rápido, retirou um comprimido da mala e colocou-o por baixo da língua de Natasha. Envolveu o pulso da paciente com os dedos longos e sentiu-lhe a pulsação. – Natasha, tens de ser forte. Tens de te recompor, Natasha – dizia-lhe com uma voz baixa e quase musical enquanto Masha se erguia silenciosamente atrás dela, tentando não chorar. – Vou dar-te uma injeção e levar-te para a minha clínica. Tenho o carro lá fora. Vais descansar uns dias. A Masha pode arrumar as tuas coisas.
Acenou com a cabeça a Masha, que, obedientemente, deu uma volta e entrou na casa de banho, onde forçou as mãos trémulas a recolherem a maquilhagem da mãe e o roupão de banho pendurado da porta. Que mais? Uma muda de roupa interior? Masha correu pelo corredor em direção ao quarto principal, vendo Nadya espetar habilmente uma seringa no braço da sua mãe, sem deixar de lhe falar calmamente.
– Maravilhoso! Sempre tive inveja das tuas veias!
Natasha olhava para o teto.
Masha pegou no primeiro conjunto de roupa interior que encontrou e virava-se para sair quando captou o perfume da sua mãe. Sentiu um aperto na garganta. Não podia chorar! Também viu, pelo canto de um olho, uma moldura de prata vazia. Mas não parou para ver melhor. Correu de volta para o corredor. A sua mãe estava de pé, com o casaco vestido, junto à porta. Nadya aceitou o saco que Masha preparara e tocou-lhe com a mão na face.
– Vou cuidar dela durante unas dias. Ficas bem?
Masha acenou afirmativamente.
– Ótimo. Podes vir visitá-la quando se sentir melhor.
Masha voltou a acenar com a cabeça. Não conseguia afastar os olhos da face pálida e imóvel da mãe. Nadya abria a porta, levando Natasha pelo braço e orientando-a até ao elevador. Masha acenou-lhes, a porta do elevador fechou-se e voltou lentamente para o apartamento. Girou quatro vezes a chave na fechadura e virou-se para o seu reflexo no espelho.
A combinação de luz artificial e natural fazia-a parecer um fantasma, nem deste mundo nem do outro. Só naquele momento percebeu o que a mãe tinha dito antes de cair sobre os tacos de madeira no chão. A culpa era toda sua. Por algum motivo, Masha não se sentiu surpreendida. Como sempre, Natasha tinha razão.
Tudo o que acontecera à sua família fora culpa sua. Sua e de mais ninguém.