ANDREY
Pela primeira vez na sua vida, Andrey entrou num consultório de psicólogo e, apesar do azedume que sentia, não conseguiu evitar o sorriso. «Jesus, Jesus, Jesus», teria dito a sua avó. Música baixa tocava, suficientemente lenta para ser hipnótica. Alguns peixes extremamente tranquilizantes nadavam de forma serena no aquário. Tapetes macios cobriam o chão, abafando os passos tranquilos do pessoal que por ali passava em várias direções. O sol brilhava pelas janelas altas e Andrey semicerrou os olhos, desejando por um segundo poder trocar de lugar com qualquer um dos pobres coitados sentados naquela sala de espera.
O seu dilema psicológico parecia saído de um romance clássico. Estava encurralado entre dever e emoção. Era seu dever ir diretamente até Masha e questioná-la e à sua mãe sem perdão. Mas os seus sentimentos eram tão suplicantes e insistentes como Marilyn Monroe. «Dá-lhes tempo», pediu-lhe o coração. «Deixa-as orientarem-se.» Escondida atrás daquela noção generosa, havia outra mais discreta: «Vai odiar-te e a mãe também e, mesmo que te ajude a encontrar o assassino, perderás a Masha de vez, Andrey, seu imbecil provinciano.»
Para se distrair, ergueu uma brochura da mesa na sala de espera e começou a ler. «Um psicólogo ajuda um paciente a olhar de modo diferente para um problema. Com ajuda profissional, aprenderá algo novo sobre si mesmo.» Andrey sorriu. Era verdade que esperava aprender algo novo, mas não sobre si mesmo. «Chegará a novas conclusões sobre a sua experiência e alcançará uma compreensão total dos seus problemas, acabando, finalmente, por vislumbrar o caminho para uma solução.»
«Nada mal», pensou Andrey. «Talvez devesse marcar uma consulta.»
Virou a brochura e encontrou a tabela de preços. Uma consulta com o Dr. Yury Arkadyevich Belov, cuja fotografia decorava a frente da brochura (aparentemente, o Dr. Belov dirigia o consultório), custava duzentos euros. Consultas VIP estavam disponíveis por duzentos e cinquenta euros. Então aquele sítio era demasiado fino para indicar os preços em rublos? Andrey fez uma careta. Pensou no que estaria incluído numa sessão VIP? Uma massagem para assegurar a total descontração do paciente? Subitamente, perdeu todo o desejo de terminar a leitura da brochura. A noção de sessões terapêuticas VIP fê-lo perder a fé. Além disso, mesmo que gastasse todo aquele dinheiro e alcançasse uma compreensão total dos seus problemas, novos problemas surgiriam, sem dúvida: problemas financeiros.
Uma mulher alta e imponente entrou na sala de espera. Tinha o cabelo pintado numa cor ouro velho e preso num carrapito. Olhou o pequeno grupo de pacientes, com os rostos tensos apesar do Mozart e dos peixes, identificando facilmente Andrey.
– Tatyana Krotova – disse ela, estendendo-lhe uma mão quente com unhas pintadas de rosa-claro. – Ocupo a segunda posição na hierarquia. – Tossiu e baixou o olhar. – Ou ocupava, antes de o doutor Belov... Vamos conversar no meu gabinete.
Andrey ergueu-se obedientemente e seguiu-a até uma porta com o letreiro «T. A. Krotova, Psic.». Abriu a porta para revelar um gabinete espaçoso com o divã inevitável para pacientes que se lamentariam acerca das suas vidas e a Dra. Krotova gesticulou com uma mão fluida a Andrey para que se sentasse.
– Vejamos. – Krotova esboçou um sorriso triste e sentou-se atrás da sua secretária imensa. – Pelo que sei, gostaria de me fazer perguntas acerca do doutor Belov. Mas... hmm... não sei se poderei ajudá-lo. Todos aqui o adoravam. Os colegas e os pacientes. Era um especialista no seu campo e todos lamentamos a sua perda.
Andrey moveu-se desconfortavelmente sobre o divã que era a ferramenta da profissão daquela mulher. Como podiam as pessoas partilhar ali os seus segredos mais profundos e sombrios? Não era demasiado estranho? Inspirou fundo. Era óbvio que a Dra. Krotova não pretendia partilhar com ele as coisas que mais a incomodavam. Não era ela quem estava no divã, afinal.
Andrey esperou de si mesmo começar com perguntas banais, mas, em vez disso, disse:
– O seu chefe tinha um caso no trabalho?
A Dra. Krotova pressionou os lábios, de forma quase impercetível.
– Não. O Yuri amava muito a sua família.
Andrey repreendeu-se a si mesmo. Porque questionara aquela senhora acerca do adultério? Talvez pelo retrato de família que o homem tinha no bolso? Ou pelas portagens na lista de Masha? Fosse como fosse, precisava de recolocar o interrogatório no caminho certo.
– Há quanto tempo conhecia a vítima? Tinha algum conflito com os colegas de trabalho? Ou com os pacientes? Notou algumas mudanças recentes no seu comportamento? – E assim sucessivamente, pela lista de perguntas-padrão abaixo. Mas Krotova não deu absolutamente nada a Andrey com que pudesse trabalhar.
Não esperara muito. Afinal, o Colecionador de Pecados não tinha deixado um rasto até ali. Porque haveria um daquela vez? Subitamente, Andrey sentiu-se incrivelmente cansado. Os dias anteriores tinham ficado marcados por impotência, terror e sangue e a preocupação com Masha corroía-o. Queria desesperadamente ouvir-lhe a voz para poder recordar melhor o que tinha acontecido entre eles na noite anterior. Mas tudo o que conseguia recordar era o seu beijo triste diante do prédio dela naquela manhã. Despachou rapidamente a conversa com Krotova, voltou a apertar-lhe a mão e quase passou a correr pelo enorme aquário, saindo daquele sítio onde os seus medos de infância deveriam evaporar ao som de música sentimental.
O ar parecia mais fresco lá fora. Anoitecia e a cidade cheirava a chuva e gasolina. Andrey enfiava a mão no bolso para encontrar um cigarro quando um maço inteiro se materializou diante dos seus olhos. Uma mão fina e ossuda estendia-lhe o maço. Virou-se e viu um homem a seu lado, talvez com trinta anos, alto, mas encolhido. Vestia um casaco longo sobre a sua bata branca.
– Obrigado – disse Andrey, aceitando o cigarro. A seguir, curvou-se para aproveitar a chama do elegante isqueiro de ouro, que parecia estranhamente deslocado na mão daquele desconhecido de aparência estranha.
– Timofeyev. Sou psicólogo e sexólogo aqui.
Andrey apertou-lhe a mão com cautela e tentou imaginar, incomodado, o tipo de trabalho que um sexólogo faria.
– Sexologia – explicou Timofeyev como se tivesse percebido um brilho alarmado nos seus olhos – não é o mesmo que ginecologia. Ou urologia. – Sorriu. – Trabalhamos com coisas acima da cintura e não abaixo. – Voltou a inclinar-se para Andrey e acrescentou: – Falo do cérebro.
– Hmm... – respondeu Andrey, grato pelo cigarro que lhe permitia uma desculpa para alimentar aquela conversa.
– É detetive, não é? – Andrey acenou com a cabeça e o sexólogo continuou. – Vi-o entrar no ninho da Serpente.
– Da Serpente?
– Sim. É a nossa alcunha carinhosa para a nossa odiada Tatyana. – Fez um movimento teatral no ar com o cigarro incandescente e citou Pushkin. – E chamava-se Tatyana! Outro nome que diz ter é doutora, mas isso não tem graça nenhuma.
– Não é doutorada? – perguntou Andrey. Ficou curioso. Krotova parecia perfeitamente adequada ao título que precedia o seu nome.
– Claro que é – afirmou Timofeyev, retirando importância ao assunto. – Talvez tenha comprado o doutoramento algures ou talvez tenha instalado o traseiro na biblioteca até decorar tudo. A psicologia não é uma ciência exata, compreende? Mas a verdade – aproximou a face longa ainda mais de Andrey – é que está muito feliz com a morte de Belov. Era a única pessoa neste manicómio inteiro que sabia alguma coisa e que não se limitou a decorar trechos de Carl Jung. O único que se importava realmente com os pacientes. Demasiado, por vezes. – O sexólogo riu-se.
– Que quer dizer com isso? – perguntou Andrey, sem hesitar.
– Que posso querer dizer? É claro como o dia. É um médico, um rei e um deus. E ela é uma paciente torturada pela sua psique. E bonita. É arriscado, claro, e a ética médica proíbe-o. Mas o mais importante é que é casada. Com um polícia. Do tipo que, vestindo um casaco de cabedal e rapando a cabeça, daria um rufia perfeito. Isso acontece às vezes com os seus colegas, lamento. E os olhos... bom... digamos que não eram meigos. Esse tipo de homem tão rapidamente apunhalará alguém como um Pioneiro ajudará uma velhinha a atravessar a rua.
Andrey não conseguia acreditar na sua sorte.
– Por acaso, sabe o nome desta paciente? – perguntou em voz baixa, receando arruinar tudo com o excesso de avidez.
– Não – disse Timofeyev, atirando para longe o seu cigarro. – Mas posso procurar nas fichas. Terá sido há dois anos. Vi-a entrar no carro dele depois de uma sessão e partiram. Depois disso, cancelou todas as consultas que tinha marcado.
– É por isso que acha que tinham um caso? – perguntou Andrey, fingindo incredulidade, enquanto Timofeyev abria a porta da clínica.
– Oh! – O sexólogo ergueu um dedo longo e torcido no ar. – Se tivesse visto a maneira como ele olhava para ela... E como ela olhava para ele. Acredite. Era evidente.
O apelido da paciente revelou ser Kuznetsova e Andrey também obteve a sua morada e número de telefone, que marcou ainda no gabinete de Timofeyev. Uma voz feminina monocórdica atendeu.
– Anna Kuznetsova? Boa tarde. Chamo-me Yakovlev e sou investigador policial. Gostaria de conversar consigo sobre Yury Belov. Podemos encontrar-nos? Agora mesmo?
– Com certeza – respondeu Anna em tom contido. – Venha, por favor. Tem a minha morada? O código da porta é setecentos e sessenta e nove.
– Vou a caminho – disse Andrey, desligando antes que a mulher mudasse de ideias. Quando partiu do parque de estacionamento, percebeu porque a conversa curta lhe tinha parecido tão estranha. Anna Kuznetsova não tinha parecido nem surpreendida nem assustada. Era muito estranho numa pessoa que recebia um telefonema urgente de um detetive.